23 Setembro 2013
O papa Francisco quer as mulheres "onde se exerce a autoridade" na igreja. Foi o que ele disse, sem rodeios, durante uma longa entrevista - seis horas divididas em três dias do mês de agosto - ao padre Antonio Spadaro, diretor da "La Civiltà Cattolica", a histórica publicação da Companhia de Jesus (na Espanha foi publicada por "Razón y Fe"): "Nos lugares onde se tomam as decisões importantes é necessário o gênio feminino".
A reportagem é de Pablo Ordaz, publicada pelo jornal El País e reproduzida pelo portal Uol, 21-09-2013.
Jorge Mario Bergoglio também submete a debate alguns usos e abusos da hierarquia eclesiástica: "Não podemos continuar insistindo só em questões referentes ao aborto, ao casamento homossexual ou ao uso de anticoncepcionais. É impossível". O pontífice argentino deseja, em troca, uma igreja que volte às origens: "Vejo a igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido se tem o colesterol ou o açúcar elevados! É preciso curar suas feridas. Depois falaremos do resto".
Por isso defende um reencontro da igreja com divorciados, mulheres que abortaram e homossexuais: "Deus nos fez livres. Não é possível uma ingerência espiritual na vida pessoal". Mas o papa Francisco, apesar da pressão que diz suportar para que atue com rapidez, pede tempo. Diz que precisa de reflexão e que, além disso, foi pela forma autoritária e rápida de tomar decisões no passado que alguns o acusaram de ultraconservador: "Certamente não terei sido a beata Imelda, mas jamais fui de direita".
Durante a longa conversa, realizada em seu austero quarto na residência de Santa Marta, o papa explica com detalhes por que, apesar das expectativas criadas, prefere atuar com prudência: "Desconfio das decisões tomadas de improviso. Desconfio de minha primeira decisão, isto é, da primeira coisa que me ocorre fazer quando devo tomar uma decisão. Costuma ser um erro". Ele conta que quando foi arcebispo de Buenos Aires adotou o costume de sempre consultar a cada passo que dava: "Isso me ajudou muito a optar pelas melhores decisões. Agora, entretanto, algumas pessoas me dizem: 'Não consulte demais e decida'. Mas eu creio que consultar é muito importante. Os consistórios e os sínodos, por exemplo, são lugares importantes para conseguir que essa consulta venha a ser verdadeira e ativa. O que é preciso é lhes dar uma forma menos rígida. Desejo consultas reais, e não formais. A consulta aos oito cardeais, esse grupo consultivo externo, não é decisão somente minha, senão fruto da vontade dos cardeais, tal como se expressou nas Congregações Gerais antes do conclave. E desejo que seja uma consulta real, e não formal."
Durante a entrevista, o papa lembra sua experiência de gestão, remontando ao tempo em que teve responsabilidades na Companhia de Jesus: "Em minha experiência como superior na companhia, para ser sincero, nem sempre me comportei assim, fazendo as consultas necessárias. E isso não foi bom. Meu governo como jesuíta, no começo, sofria muitos defeitos. Eram tempos difíceis para a companhia: havia desaparecido uma geração inteira de jesuítas. Isso fez que eu fosse provincial ainda muito jovem. Tinha 36 anos: uma loucura. Era preciso enfrentar situações difíceis, eu tomava minhas decisões de maneira brusca e pessoal. É verdade, mas devo acrescentar uma coisa: quando confio algo a uma pessoa, creio totalmente nessa pessoa. Deve cometer um erro muito grande para que eu a repreenda. Mas, apesar disso, no final a gente se cansa do autoritarismo. Minha forma autoritária e rápida de tomar decisões me levou a ter sérios problemas e ser acusado de ultraconservador. Tive um momento de grande crise interior em Córdoba. Não terei sido certamente como a beata Imelda, mas jamais fui de direita. Foi minha forma autoritária de tomar decisões que me criou problemas. (...) Tudo isso que digo é experiência da vida e o expresso para dar a entender os perigos que existem. Com o tempo aprendi muitas coisas".
Sobre o papel que a igreja deve adotar neste momento histórico, o papa Francisco é muito gráfico: "Vejo com clareza que do que a igreja necessita com maior urgência hoje é uma capacidade de curar feridas e dar calor aos corações dos fiéis, proximidade, acercamento. (...) Vejo a igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido se tem colesterol ou açúcar elevados! É preciso curar suas feridas. Depois falaremos do resto. Curar feridas, curar feridas... E é preciso começar pelo mais elementar. (...) A igreja às vezes se deixou envolver em pequenas coisas, em pequenos preceitos. Quando o mais importante é o anúncio primeiro: 'Jesus Cristo o salvou!'"
Jorge Mario Bergoglio parece ter muito claro o retrato falado dos líderes espirituais de que a igreja precisa: "Os ministros do Evangelho devem ser pessoas capazes de aquecer o coração das pessoas, de caminhar com elas na noite, de saber dialogar e inclusive descer à sua noite e sua escuridão sem se perder. O povo de Deus precisa de pastores, e não de funcionários clérigos de escritório. (...) Em vez de ser somente uma igreja que acolhe e recebe, mantendo suas portas abertas, busquemos ser principalmente uma igreja que encontra caminhos novos, capaz de sair de si mesma indo para o que não a frequenta, para o que se afastou dela, para o indiferente. O que abandonou a ira da igreja às vezes o fez por razões que, se forem bem entendidas e avaliadas, podem ser o início de um retorno. Mas é necessário ter ousadia e coragem".
Como no voo de regresso do Rio de Janeiro, o papa argentino não hesita em falar daqueles a quem pensa que a igreja virou o rosto: "Durante o voo em que regressava do Rio de Janeiro, disse que se uma pessoa homossexual tem boa vontade e busca a Deus, não sou eu quem vai julgá-la. Ao dizer isto, disse o que diz o catecismo. A religião tem o direito de expressar suas próprias opiniões a serviço das pessoas, mas Deus na criação nos fez livres: não é possível uma ingerência espiritual na vida pessoal. Uma vez uma pessoa, para me provocar, perguntou-me se eu aprovava a homossexualidade. Eu então lhe respondi com outra pergunta: 'Diga-me, Deus, quando olha para uma pessoa homossexual, aprova sua existência com afeto ou a rechaça e a condena?' É preciso sempre levar em conta a pessoa. E aqui entramos no mistério do ser humano. Nesta vida Deus acompanha as pessoas e é nosso dever acompanhá-las a partir de sua condição. É preciso acompanhar com misericórdia. Quando isso ocorre, o Espírito Santo inspira ao sacerdote a palavra oportuna".
Do mesmo modo, o papa se mostra favorável a revisar a atitude da igreja em relação às novas famílias: "Esta é a grandeza da confissão: que se avalia caso a caso, que se pode discernir o que é o melhor para uma pessoa que busca a Deus e sua graça. O confessionário não é uma sala de tortura, senão aquele lugar de misericórdia no qual o Senhor nos empurra para fazer o melhor que possamos. Estou pensando na situação de uma mulher que tem nas suas costas o fracasso de um casamento no qual também ocorreu um aborto. Depois daquilo, esta mulher voltou a se casar e agora vive em paz com cinco filhos. O aborto lhe pesa enormemente, e ela está sinceramente arrependida. Gostaria de retomar a vida cristã. O que faz o confessor?" E acrescenta: "Não podemos continuar insistindo só em questões referentes ao aborto, ao matrimônio homossexual ou ao uso de anticoncepcionais. É impossível. Eu falei muito sobre essas questões e recebi censuras por isso. Mas se se fala dessas coisas é preciso fazê-lo em um contexto. Além disso, já conhecemos a opinião da igreja e eu sou filho da igreja, mas não é necessário estar falando dessas coisas sem parar".
Um capítulo especialmente interessante da entrevista é aquele em que o papa se mostra partidário de enfrentar, "hoje", o papel da mulher na igreja: "É preciso ampliar os espaços para uma presença feminina mais incisiva na igreja. Temo a solução do machismo de saias, porque a mulher tem uma estrutura diferente do homem. Mas os discursos que ouço sobre o papel da mulher com frequência são inspirados em uma ideologia machista. As mulheres estão formulando questões profundas. A igreja não pode ser ela mesma sem a mulher e o papel que esta desempenha. A mulher é imprescindível para a igreja. Maria, uma mulher, é mais importante que os bispos. Digo isto porque não se deve confundir a função com a dignidade. É preciso, portanto, aprofundar mais a figura da mulher na igreja. É preciso trabalhar mais até elaborar uma teologia profunda da mulher. Só depois de fazê-lo poderemos refletir melhor sobre sua função dentro da igreja. Nos lugares onde se tomam as decisões importantes é necessário o gênio feminino. Enfrentamos hoje este desafio: refletir sobre a posição específica da mulher inclusive ali onde se exerce a autoridade nos vários âmbitos da igreja".
E, no final, o papa sempre volta a um de seus temas preferidos, as periferias do mundo: "Me dão medo os laboratórios, porque no laboratório se tomam os problemas e a pessoa os leva para sua casa, fora de seu contexto, para domesticá-los, para lhes dar um verniz. Não se deve levar a fronteira para casa, e sim viver na fronteira e ser ousados. (...) Quando se fala de problemas sociais, uma coisa é reunir-se para estudar o problema da droga em uma favela, e outra coisa é ir lá, viver lá e captar o problema de dentro e estudá-lo. Há uma carta genial do padre Arrupe aos Centros de Investigação e Ação Social (CIAS) sobre a pobreza, na qual diz claramente que não podemos falar de pobreza se não a experimentarmos, com uma inserção direta nos lugares onde se vive essa pobreza. A palavra 'inserção' é perigosa, porque alguns religiosos a tomaram como uma moda e aconteceram desastres por falta de discernimento. Mas é verdadeiramente importante".
O exemplo que Bergoglio dá é definitivo: "Pensamos nas religiosas que vivem em hospitais: vivem nas fronteiras. Eu mesmo estou vivo graças a elas. Por ocasião do meu problema de pulmão no hospital, o médico me prescreveu penicilina e estreptomicina em certa dose. A irmã que estava de plantão a triplicou, porque tinha um olho clínico, sabia o que era preciso fazer porque estava com os doentes todos os dias. O médico, que realmente era um bom médico, vivia em seu laboratório, a irmã vivia na fronteira e dialogava com a fronteira todos os dias. Domesticar as fronteiras significa não se limitar a falar de uma posição afastada, encerrar-se nos laboratórios, que são coisas úteis. Mas a reflexão, para nós, deve partir da experiência".
Autorretrato cultural de "um pecador"
"Bem, talvez pudesse dizer que sou esperto, que sei me mover, mas que ao mesmo tempo sou bastante ingênuo. Mas a síntese melhor, a que me sai mais de dentro e sinto mais verdadeira é esta: sou um pecador em quem o Senhor pôs os olhos". Assim se autodefine Francisco quando lhe perguntam quem é Jorge Mario Bergoglio.
"Fui aficionado de autores muito diferentes entre si. Amo muito Dostoievski e Hölderlin. De Hölderlin, gosto de lembrar aquela poesia tão bela para o aniversário de sua avó, que me fez tanto bem espiritual. É aquela que termina com o verso 'Que o homem mantenha o que o menino prometeu'. Impressionou-me porque queria muito minha avó Rosa, e nessa poesia Hölderlin põe sua avó junto de Maria, a que deu à luz a Jesus, ao qual ele considerava o amigo da terra que não considerou estrangeiro a nenhum vivente. Li 'Os Noivos' três vezes, e agora o tenho sobre a mesa para voltar a lê-lo. [Alessandro] Manzoni me deu muito. Minha avó me fazia, quando menino, aprender de cor o começo de 'Os Noivos': 'Esse ramal do lago de Como, que vira para o meio-dia, entre duas cadeias ininterruptas de montanhas...' Também Gerard Manley Hopkins me agradou muito".
"Em pintura admiro Caravaggio: suas telas me falam. Mas também Chagall com sua 'Crucificação Branca'...." "Em música amo Mozart, obviamente. Aquele Et Incarnatus est, de su Missa em Dó, é insuperável: nos leva a Deus! Encanta-me Mozart interpretado por Clara Haskil. Mozart me preenche: não posso pensá-lo, tenho que senti-lo. Gosto de escutar Beethoven, mas exige esforço. E o intérprete mais esforçado para mim é Furtwängler. E depois as Paixões de Bach. A passagem de Bach de que gosto muito é o Erbarme Dich, o pranto de Pedro da Paixão Segundo São Mateus. Sublime. Depois, em nível diferente, não da mesma intimidade, gosto de Wagner."
"'La Strada' de Fellini talvez seja o filme que mais me agradou. Identifico-me com esse filme no qual há uma referência implícita a são Francisco. Depois creio ter visto todos os filmes de Anna Magnani e Aldo Fabrizi quando tinha entre 10 e 12 anos. Outro filme de que gostei muito foi 'Roma Cidade Aberta'. Devo minha cultura cinematográfica sobretudo a meus pais."
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Papa Francisco gira o leme da igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU