Foi a única verdadeira reforma. Artigo de Enzo Bianchi

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12 Dezembro 2025

"O que está acontecendo tem suas raízes na eclesiologia do Vaticano II, em particular na Dei Verbum e na Lumen Gentium. Mas as formas, o estilo, com que a Igreja se constrói em koinonia são novas e diferentes até mesmo daquelas idealizadas pelo Vaticano II. Testemunhamos uma eclesiologia em devir, que redescobre e renova a tradição conciliar do primeiro milênio e se traduz em uma Igreja da escuta, como em sua vocação primária ou original no Monte Sinai", escreve Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por Vita Pastorale, 10-12-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

O Concílio Vaticano II é, sem dúvida, a maior graça que o Senhor concedeu à sua Igreja nos tempos modernos. E sem menosprezar o passado, pode-se dizer que representa a única verdadeira tentativa de reformar toda a vida da Igreja Católica, da liturgia à sua maneira de estar no mundo. Uma reforma não motivada por reações contra um inimigo, uma heresia ou um adversário do cristianismo, mas sim nascida de uma necessidade puramente evangélica: "retornar", como diz o Antigo Testamento, "converter-se", como diz o Novo, "reformar", como testemunha a história da Igreja.

À pergunta que me foi atribuída como título da minha contribuição, "Que Igreja depois do Concílio?", não é fácil de responder sucintamente, especialmente porque é preciso ter em mente que os ensinamentos do Vaticano II são muitos e nem todos com a mesma autoridade. É preciso ter em mente que o Vaticano II propôs à Igreja uma nova modalidade, sinodal ou conciliar, de abordar os problemas. E inaugurou um estilo particular tanto na vivência quanto no ensinamento.

Além disso, o Sínodo dos Bispos de 1985, vinte anos após a celebração do Vaticano II, teve um peso especial porque ofereceu uma interpretação enriquecedora do Concílio, que se tornou parte do próprio evento conciliar. A invenção no Concílio da eclesiologia da comunhão, mais do que legítima, direcionou a recepção do Concílio em uma direção particular que amadureceu nos vinte anos seguintes ao evento. E nós, sessenta anos depois daquela celebração carregada da presença do Espírito, o que conseguimos interpretar? Nós, que vivenciamos os Sínodos Gerais dos Bispos desde então e, recentemente, com o Papa Francisco, empreendemos processos sinodais que estão mudando e mudarão profundamente a Igreja (se Leão XIV concordar em continuar corajosamente e ousadamente nessa trajetória com todo o povo de Deus)?

O que está acontecendo tem suas raízes na eclesiologia do Vaticano II, em particular na Dei Verbum e na Lumen Gentium. Mas as formas, o estilo, com que a Igreja se constrói em koinonia são novas e diferentes até mesmo daquelas idealizadas pelo Vaticano II. Testemunhamos uma eclesiologia em devir, que redescobre e renova a tradição conciliar do primeiro milênio e se traduz em uma Igreja da escuta, como em sua vocação primária ou original no Monte Sinai. Uma escuta da palavra de Deus que se torna escuta entre irmãos e irmãs, porque todos são tais por serem filhos e filhas de Deus, o único Pai. É uma assembleia ordenada, conduzida por pastores, designados pelo Senhor para apascentar o rebanho; mas, sedo o rebanho de propriedade do Senhor, os pastores também deverão escutar as ovelhas. Desta forma, a assembleia-Igreja (um termo sem significado) torna-se fraternidade, escola da caridade para a humanidade. E aqui se aguarda a longa jornada da reforma papal, para que o ministério de Pedro possa ser um serviço realmente humilde a todas as Igrejas. Mas, apesar do Ut unum sint e de seu ensejo, absolutamente nada foi feito até agora, e nos encontramos em um estado de aporia, incertos sobre como seguir em frente no diálogo entre as Igrejas.

Mais satisfatória podemos julgar a visão da Igreja como Igreja dos pobres. Apesar das contradições, e apesar do mundo caminhar na direção oposta, a Teologia da Libertação e, posteriormente, o magistério de Francisco fizeram dos pobres não apenas os destinatários da caridade, mas os sujeitos evangelizadores, e suas Igrejas receberam um direito à eloquência que nem mesmo o Papa Leão desmente ou atenua!

Eis, em suma, uma Igreja em processo sinodal e uma Igreja dos pobres, que são a nossa Igreja hoje graças ao Vaticano II.

A recuperação da Igreja como "mistério", realidade que a teologia havia deixado nas sombras durante séculos e que na Mystki corporis Christi Pio XII tentava resgatar (porém identificando o mistério com a Igreja Católica Romana), permitirá recuperar a realidade comunitária da Igreja como povo de Deus e o sacerdócio de todos os batizados. É a partir dessa novidade que surgem avanços não só na compreensão da vida da Igreja, mas também de suas estruturas, sua ordem e os carismas com que é dotada. Passos decisivos de reforma, especialmente com Francisco

Pesa em toda a visão eclesiológica do Concílio a carência da pneumatologia que impediu um melhor ajuste na relação entre mistério e instituição, entre instituição e carismas. E, de minha parte, continuo convencido de que uma patologia, manifestada nas décadas de 1980 e 1990 com o surgimento dos movimentos eclesiais, se deve a essa carência, que permite um carismatismo desenfreado e a formação de realidades eclesiais paralelas à Igreja. E é precisamente essa carência de pneumatologia que tem dado origem várias vezes, no período pós-conciliar, a temores e desconfiança em relação à teologia da Igreja local, com a pretensão de que fosse chamada de "Igreja particular", esquecendo-se de que nela reside a sancta catholica!

Essas carências, porém, não impediram o Concílio de delinear uma Igreja em processo de renovação, ainda que se pudesse esperar uma reforma que só moveu passos decisivos com o Papa Francisco.

Nesta tentativa rápida e sumária de responder à pergunta: "Que Igreja desde o Vaticano II?", devo ao menos mencionar aquele grande documento que passou por um laborioso processo de elaboração, a Gaudium et Spes, a Constituição Pastoral dedicada à relação entre a Igreja e o mundo. É o documento mais pobre e mais "ambíguo" do Concílio, infelizmente enaltecido por muitos e talvez o documento mais comentado nas igrejas locais. Na verdade, não busca suporte nas fontes da Sabedoria divina, mas se baseia em muita ‘sophia’ humana. Há nele um otimismo sobre a relação entre os cristãos e o mundo que me questiona e sempre me questionou, gerando um meu comentário já em 1967. Como é possível todo esse otimismo? Como foi possível esquecer a mensagem do Novo Testamento, que vê os cristãos perseguidos e a inimizade do mundo? A Primeira Carta de João conclui proclamando: "O mundo inteiro jaz sob o poder do Maligno!" (1João 5,19). O arranjo deste mundo é obra do demônio e pertence ao Primaz deste mundo. Se houve inimizade entre o mundo e Jesus Cristo, haverá também inimizade entre o mundo e os discípulos de Jesus Cristo!

Não pode haver otimismo superficial, nem podem faltar a vigilância e a diferença cristã. E é significativo que este documento, Gaudium et Spes, tenha sido "ambíguo" num ponto crucial: o problema da paz. Aqui, o Concílio ficou confuso; afirmou que a paz é o bem supremo e irrenunciável, mas também disse que o equilíbrio do terror era aceitável, era uma salvaguarda para a paz... O Concílio recusou-se a simplesmente condenar a guerra e a primeira bomba atômica! Faltou a profecia, mas todo o documento é fraco, e a influência dessa fraqueza ficou evidente no pós-Concílio.

Apesar disso, hoje, graças ao Papa João XXIII e seus sucessores até Francisco e Leão, a guerra vem sendo sempre condenada, e um caminho de diálogo entre a Igreja e o mundo se abriu de forma mais profética e sem ambiguidades por meio de muitos discípulos de Cristo e Igrejas inteiras, igrejas dos pobres.

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