10 Dezembro 2025
"Com a Gaudium et spes, um novo estilo de interação é introduzido na Igreja Católica, e isso se deve fundamentalmente à estrutura desta constituição. Como o primeiro documento magisterial da história, este texto segue consistentemente o processo de três etapas – ver, julgar e agir – em sua estrutura e em seus capítulos individuais", escreve Ursula Wollasch.
Ursula Wollasch é uma teóloga católica com doutorado em ética social. Ela trabalhou por mais de vinte anos em diversos setores sociais da Caritas alemã e e atua como escritora e publicitária independente desde 2020.
Artigo é publicado por katholisch.de, 06-12-2025.
Eis o artigo.
Quando a Constituição Pastoral Gaudium et spes do Concílio Vaticano II foi adotada em 7 de dezembro de 1965, causou sensação mundial — não apenas entre os católicos, mas também entre os cristãos protestantes, membros das Igrejas Ortodoxas Orientais e muitos adeptos de religiões não cristãs. O texto continua a inspirar pessoas com seu objetivo fundamental: a construção de um mundo mais justo e pacífico. Em 2023, o teólogo protestante Ulrich H.J. Körtner chamou a Gaudium et spes de "um grande texto da cristandade" e a incluiu em sua série de publicações de mesmo nome. Como é possível que este documento ainda fascine as pessoas hoje? Por que está entre os textos mais citados e discutidos do Concílio Vaticano II? O que explica sua aparente relevância ininterrupta quase duas gerações depois?
Gaudium et spes é a face atraente da Igreja Católica. Isso era verdade na década de 1960 e continua sendo verdade hoje. A primeira frase fez o mundo parar e prestar atenção: "As alegrias e as esperanças, as dores e as angústias dos homens desta época, especialmente dos pobres e dos que sofrem de alguma forma, são as alegrias e as esperanças, as dores e as angústias dos seguidores de Cristo. De fato, não há nada verdadeiramente humano que não encontre eco em seus corações." (GS 1) Um texto magistral que não começava com referências à revelação e à tradição, aos Padres da Igreja, à escolástica e à lei natural, mas falava de sentimentos, que capturava a essência da vida moderna em poucas palavras — isso era algo novo.
A Gaudium et spes já demonstra, em sua primeira frase, uma comunidade de cristãos que se engaja com as pessoas de seu tempo, que consegue e quer ter empatia, que desenvolve uma atitude de compaixão e solidariedade a partir do conhecimento da profunda interconexão entre todos os povos, que constrói relacionamentos profundos e, assim, lança as bases para um mundo mais humano.
É por isso que Gaudium et Spes representa uma igreja moderna
Esta nova abordagem carece do rigor e distanciamento superiores de um tratado teológico, mas revela, ao contrário, uma humildade completamente nova. Começa com a Igreja compreendendo-se como parte da sociedade moderna, reconhecendo a necessidade de explicar suas crenças e, assim, prestar-lhes contas. A Gaudium et spes contém a admissão de que a Igreja, em seu anúncio, não é apenas doadora, mas também receptora, que depende das condições políticas e sociais, que aprendeu muito com os tempos modernos e que cometeu erros no passado ao lidar com o ateísmo.
Reconhece-se também que, em última análise, são os "leigos", os homens e mulheres não ordenados, que ajudam a mensagem cristã a ser eficaz na esfera pública. Nesse contexto, a Constituição Pastoral aborda o matrimônio e a família, a cultura e a economia, as relações internacionais e a paz mundial. A ciência, a educação e os meios de comunicação são vistos como parceiros cujo trabalho pode contribuir para a construção de um mundo mais humano. Essa abertura a todos os lados é o outro lado da humildade. Juntos, eles marcam uma ruptura inconfundível com a tradição.
Com a Gaudium et spes, um novo estilo de interação é introduzido na Igreja Católica, e isso se deve fundamentalmente à estrutura desta constituição. Como o primeiro documento magisterial da história, este texto segue consistentemente o processo de três etapas – ver, julgar e agir – em sua estrutura e em seus capítulos individuais. O Papa João XXIII já havia recomendado este método alguns anos antes como uma abordagem útil para a pastoral da juventude na Igreja. Com a Gaudium et spes, o Magistério adota agora este procedimento, o que tem consequências para toda a sua proclamação. Antes de os contextos sociais serem avaliados teológica e eticamente, realiza-se uma análise objetiva da situação. Isso visa garantir que os juízos morais não estejam dissociados da realidade e que as melhorias desejadas não estejam fadadas ao fracasso desde o início. O método evita avaliações éticas que, embora conformes à "doutrina pura", carecem de potencial de mudança.
A abordagem em três etapas, baseada na mensagem bíblica e nos ensinamentos sociais da Igreja, possibilita soluções desenvolvidas a partir da experiência prática, estabelecendo assim uma prática nova e melhor. Representa uma Igreja que — como diríamos hoje — não se refugia em sua própria bolha moralista, mas se propõe a construir o futuro junto com as pessoas. No parágrafo 4 de sua encíclica Octogesima adveniens, o Papa Paulo VI, em 1971, reafirmou essa preocupação fundamental da Constituição Pastoral. Com isso, deu início a um movimento que atraiu a atenção mundial. Gaudium et spes tornou-se um modelo para as cartas pastorais na América Latina, nos Estados Unidos e na Europa. Hoje, a abordagem em três etapas é indispensável na ética social e na teologia pastoral, bem como na prática pastoral, na educação eclesial e no serviço social.
O fato de ter desaparecido temporariamente por completo dos pronunciamentos oficiais católicos e só ter reaparecido sob o Papa Francisco (Dare to Dream, 2022, 162) está paradoxalmente relacionado também à Constituição Pastoral, especificamente à sua compreensão da liberdade pessoal. Essa abordagem foi adotada pela teologia da libertação latino-americana e interpretada pastoral, social e também politicamente. Quando a teologia da libertação foi categoricamente interrompida por Roma na década de 1980, essa condenação aplicou-se não apenas ao seu conteúdo teológico, mas também à sua metodologia. Desde então, a Cúria abandonou a abordagem dos três passos. Na prática, isso representou um retrocesso aos tempos pré-conciliares, mas já não era possível deter o triunfo mundial da abordagem dos três passos. Mas qual era a intenção original da Constituição Pastoral?
A Gaudium et spes tem um coração voltado para a humanidade moderna. Isso se revela não apenas nas frases iniciais, mas ao longo de todo o documento. A Constituição Pastoral descreve a humanidade em todas as suas facetas, abrangendo tudo o que ela é e o que pode contribuir para si mesma e para a sociedade , mas também suas necessidades, suas inseguranças e vulnerabilidades, e seu potencial para causar danos ou mesmo destruição. O texto fala com força da luz e da sombra da existência humana, encontrando palavras que ainda ressoam em nós hoje e nos fazem refletir.
O que significa liberdade entre o liberalismo e o marxismo?
Naturalmente, os temas antropológicos tradicionais da condição de criatura, da filiação divina e do sermos feitos à imagem de Deus, do envolvimento com a culpa e o pecado, da necessidade de redenção, da esperança de plenitude e da comunhão com Deus não são descartados. No entanto, a Constituição Pastoral conecta conscientemente esses temas teológicos a um ethos de liberdade compreendido tanto em termos cristãos quanto humanistas modernos. Esse aspecto da compreensão cristã da humanidade tem sido negligenciado na tradição, e parece que o Magistério ainda enfrenta dificuldades com o conceito de autonomia e autodeterminação humanas. A Gaudium et spes buscou e encontrou um caminho entre a busca desenfreada da liberdade no liberalismo e a supressão da liberdade no marxismo. A Constituição Pastoral, que dedica um capítulo inteiro à liberdade (GS 17), descreve-a como uma liberdade vivida em contextos sociais. Ela se realiza na responsabilidade que as pessoas assumem umas pelas outras, especialmente em tempos de necessidade e diante da opressão e da perseguição.
Com essa compreensão da liberdade humana como uma disposição para a responsabilidade social, a Constituição Pastoral consegue preencher a lacuna com os direitos humanos, que são então descritos e apreciados em detalhes. Desde a Gaudium et spes, os direitos à liberdade, por um lado, e os direitos sociais, por outro, têm sido componentes indispensáveis da ética social da Igreja. O Concílio, como ele próprio afirma, busca “aguçar o respeito pela pessoa humana: todos devem considerar o seu próximo, sem exceção, como ‘outro eu’, tendo em mente, sobretudo, a sua vida e as condições necessárias para uma vida digna” (GS 27). Ao reconhecer o outro em sua liberdade e necessidade, a Gaudium et spes alude a algo que hoje é discutido como “ética relacional”. Com sua visão liberal-social da humanidade, a Constituição Pastoral estava muito à frente de seu tempo.
Com a Gaudium et spes, a Igreja não só se abriu à vida das pessoas modernas e buscou o diálogo com todos os atores e grupos sociais relevantes, como também adotou uma abordagem decididamente historicamente consciente, porém orientada para o futuro. Ela deixou de se limitar a proclamar os chamados valores atemporais e passou a tentar formular objetivos definidos de forma substancial. Estes, necessariamente, permaneceram muito gerais e exigiram maior especificação. Eram condicionados pelo seu tempo, provisórios e, portanto, passíveis de questionamento.
Para uma igreja que sempre se refugiou nas "verdades eternas", essa abordagem foi muito corajosa, e não tardaram a surgir acusações de crença ingênua no progresso, adaptação voluntária ao espírito da época e falta de fidelidade à tradição. Em contrapartida, essa abordagem permitiu que emergisse a visão de um mundo mais justo e pacífico. A sincera disposição de participar de sua construção "juntamente com todas as pessoas de boa vontade" pôde ser entendida como um compromisso crível.
A Gaudium et spes, como alternativa às utopias políticas da época, vislumbra uma sociedade em construção. Como as condições muitas vezes estão longe da perfeição, a constituição não se furta às críticas, mas sempre se refere às condições de vida e não às pessoas. Elas são e permanecem os irmãos e irmãs da grande família humana, à qual a Igreja Conciliar se sente profundamente ligada. Em sua impressionante declaração final, também de 7 de dezembro de 1965, o Papa Paulo VI fez um balanço e, em relação aos críticos, reiterou a posição fundamental da maioria dos Padres Conciliares:
"Sua atitude era decididamente e deliberadamente otimista. Uma onda de afeto e admiração emanava da congregação para o mundo moderno. Os erros eram rejeitados porque o amor exigia nada menos que a verdade, mas para as pessoas em si havia apenas convite, respeito e amor. Em vez de diagnósticos deprimentes, ofereciam-se remédios encorajadores; em vez de prognósticos sombrios, a congregação enviava mensagens de confiança para o mundo de hoje. Os valores do mundo moderno não eram apenas respeitados, mas também valorizados, seus esforços apoiados, seus empreendimentos purificados e abençoados."
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