Internet espalha misoginia, enquanto ações de prevenção à violência contra mulher são escassas e sofrem resistência

Foto: Marcello Casal jr/Agência Brasil

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05 Dezembro 2025

Especialistas apontam dificuldade para adesão de prefeituras e da rede pública de educação ao debate de gênero.

A reportagem é de Carolina Bataier, publicada por Brasil de Fato, 04-12-2025.

Em menos de dez dias, quatro casos brutais nos lembraram o que os números indicam há anos: o Brasil não é um lugar seguro para as mulheres. E, embora o país conte com importantes políticas públicas de atendimento às vítimas de violência, como as Delegacias de Defesa da Mulher (DDMs), o trabalho de prevenção ainda é escasso e sofre resistência, enquanto a misoginia se prolifera na internet.

Homens de vários perfis lucram com vídeos e cursos que, nas entrelinhas ou diretamente, incentivam a violência de gênero. Enquanto isso, nos espaços oficiais de diálogo com os jovens em formação, ainda há barreiras e limitações para o debate sobre gênero e violência contra a mulher.

“A gente vê muito as iniciativas pontuais, como palestras em escolas. Isso acontece demais. Mas é diferente de estar integrado em um grupo, por exemplo, intersetorial, para tratar dos problemas e dos desafios”, avalia Silvana Mariano, coordenadora do Laboratório de Estudos de Feminicídio (Lesfem), espaço que produz e analisa dados sobre crimes de feminicídios, consumados e tentados, no Brasil.

Entre as iniciativas que propõem um trabalho contínuo, está o Maria da Penha Vai às Escolas (MPVE), que promove formação de profissionais da educação sobre a Lei Maria da Penha. De acordo com o Ministério da Mulher, o programa busca divulgar a lei e os direitos das mulheres em situação de violência doméstica e familiar para a comunidade escolar e capacitar os profissionais da educação para um olhar mais atento às crianças e aos adolescentes vítimas diretas ou indiretas da violência doméstica.

“Mas não são todos os municípios que aderem, não são todas as escolas que abrem as portas para falar com a molecada, com as crianças, os adolescentes”, avalia Lais De Conti, que trabalha no Centro de Referência da Mulher no município de Araraquara, no interior de São Paulo e é Promotora Legal Popular, acompanhando vítimas de violência.

Além disso, o programa tem como foco a identificação de sinais de violência, mas, no campo da prevenção, deixa a desejar. De Conti ressalta a dificuldade de levar o debate sobre gênero até a rede de educação, espaço que poderia funcionar como porta de entrada para as reflexões sobre os papéis de gênero na sociedade, construindo nos jovens uma percepção de igualdade e respeito.

“Quando a gente quer botar as crianças para refletir sobre quem que fica com os afazeres domésticos da casa desde muito cedo e quem que pode brincar, sabe? A menina não vai brincar enquanto não lava a louça, enquanto não arrumar a cama. E os meninos? Os meninos podem brincar livremente”, exemplifica.

Para ela, a resistência presente nos ambientes de educação formal reflete o conservadorismo da sociedade brasileira. “A gente sente uma certa resistência por medo da palavra ‘gênero’. (…) O pessoal fica com medo da reação da família”, diz.

Da internet à política, o conservadorismo se alastra pelo Brasil, criando uma rede de ataque e resistência às políticas de promoção de igualdade. Nas eleições municipais de 2024, o PL, partido de Jair Bolsonaro, foi uma das siglas que mais aumentou, saltando de 351 municípios para 511, uma alta de 160 prefeituras em comparação com o pleito de 2020.

“A gente tem cada vez mais os municípios sendo governado por setores de extrema direita. Eles absolutamente não se comprometem com nenhuma política de prevenção à violência, com nenhuma política de direitos humanos”, alerta Sônia.

4 bilhões de visualizações na ‘machoesfera’

Um relatório publicado em dezembro de 2024 revela o tamanho da chamada “machosfera”, conjunto de comunidades on-line com a proposta de tratar das dificuldades enfrentadas por eles, como relacionamentos, boa forma física ou paternidade, mas, na verdade, promovem ideias baseadas na percepção de que as mulheres são inferiores.

“Fala a verdade: uma mulher que tem filho vale o mesmo que uma mulher que não tem? Óbvio que não”. “Se você assumir uma mulher rodada e ignorar o passado dela, você vai sofrer as consequências no futuro”. Esses são exemplos do tipo de conteúdo identificado a partir da análise de 76.289 vídeos publicados em 7.812 canais no Youtube na pesquisa do relatório “Aprenda a editar ‘este tipo’ de mulher: estratégias discursivas e monetização da misoginia no Youtube”, do Laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com apoio do Ministério das Mulheres. Até 8 de abril de 2024, os vídeos analisados somavam mais de 4 bilhões de visualizações e 23 milhões de comentários.

“Entre os vídeos, se destacam os que reforçam a ideia de que as mulheres possuem uma suposta natureza interesseira e manipuladora, atuando ativamente para prejudicar os homens”, alerta a pesquisa.

De acesso livre, esses conteúdos chegam homens de todas as idades, reforçando a percepção de inferioridade feminina, conforme avalia Sônia Coelho, integrante da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e militante da Marcha Mundial das Mulheres.

“Quando você tem uma situação em que você tem em redes sociais, o tempo todo, estimulando a violência, colocando situações de como humilhar as mulheres, de como desprezar as mulheres, essa coisa da misoginia, do ódio às mulheres, acaba tornando, a violência, o feminicídio como algo natural”, afirma Coelho, que há décadas acompanha debates sobre a violência contra a mulher.

Números revelam aumento dos casos

Em 2024, o Brasil bateu recorde de feminicídios desde que esse crime passou a ser tipificado, em 2015, com a lei nº 13.104. E, em 2025, os números seguem alarmantes.

“Está acontecendo mais violência mesmo. Acontecem mais casos”, afirma a socióloga Silvana Mariano.

Ela pondera que, com a promulgação da lei e a compreensão sobre as características desse crime – quando o assassinato envolve violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher da vítima – cada vez mais casos passam a ser classificados como tal, elevando os registros.

No entanto, os números expressam o que Mariano avalia como uma reação conservadora diante de avanços significativos para as mulheres. “Nós temos um período de ampliação de direitos, de autonomia, de liberdade, de empoderamento das mulheres. E uma das respostas, uma reação a isso é por meio da violência”, analisa a socióloga.

Em 2024, foram registrados 1.492 feminicídios no Brasil, uma alta de 1,2% em relação a 2023 e o maior número da série iniciada em 2016, quando cerca de 900 casos foram computados, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Em 2025, foram 950 feminicídios no primeiro semestre, de acordo com Lesfem, que realiza acompanhamento mensal dos casos. Somente em outubro, 177 mulheres foram assassinadas no país e outras 375 foram vítimas de tentativa de feminicídio. Outro levantamento do G1, apenas na cidade de São Paulo, de janeiro a outubro de 2025, foram 53 casos, um recorde

Os dados de feminicídios de novembro ainda não estão disponíveis, mas as notícias recentes se antecipam aos números, lembrando do perigo de se viver no país que já ocupou, em 2015, o 5º lugar entre os que mais matam mulheres no mundo, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU).

Entre as vítimas recentes, estão Allane Pedrotti e Laysa Pinheiro, assassinadas a tiros por um colega de trabalho, no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (Cefet), no Rio de Janeiro (RJ). Em Recife (PE), Isabely Gomes de Macedo morreu ao lado dos quatro filhos, em um incêndio que destruiu a casa onde viviam. Suspeito do crime, o marido dela foi preso preventivamente.

Na capital paulista, Tainara Souza Santos foi atropelada e arrastada por um quilômetro em uma via expressa, por um homem com quem tinha uma relação esporádico. Ela teve as pernas amputadas e segue internada. No sul do país, em Florianópolis (SC), Catarina Kasten foi pega em uma emboscada e assassinada quando fazia uma trilha.

“Um homem nessa mesma circunstância, correria risco semelhante?”, questiona a socióloga Mariano, sobre o caso de Kasten. A pergunta, que pode ser aplicada aos outros casos, é central no debate sobre o papel da misoginia – a ideia de que mulheres são inferiores, impulsionada nos conteúdos da machosfera – nos casos de feminicídio. “Nós já somos uma sociedade violenta. Nós já somos uma sociedade machista, patriarcal, misógina, mas aí a internet potencializa tudo isso e cria efeitos devastadores”, afirma a socióloga.

Atendimento às vítimas

No Brasil, um dos serviços de atendimento às vítimas de violência é o Ligue 180, que oferece orientação sobre leis, direitos das mulheres e serviços da rede de atendimento (Casa da Mulher Brasileira, Centros de Referências, Delegacias de Atendimento à Mulher (Deam), Defensorias Públicas, Núcleos Integrados de Atendimento às Mulheres, entre outros.

O Ligue 180 também disponibiliza informações sobre a localidade dos serviços especializados da rede de atendimento e registro e encaminhamento de denúncias aos órgãos competentes.

Na rede de atendimento às vítimas, há órgãos como as promotorias de justiça e delegacias da mulher. O site do Ministério da Mulher disponibiliza uma lista desses locais, organizada por municípios. Os Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) também são pontos de auxílio para as vítimas.

“O nosso sonho era nem precisar do tanto de política que a gente tem para depois que a violência já aconteceu, né?”, avalia De Conti. “Gostaria de falar com os jovens, com o pessoal que está vindo aí, aprendendo a se relacionar para evitar que esses casos cheguem até lá”, diz.

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