Gentis, divertidos, comprometidos: os abusadores são homens "normais"

Foto: Nadine E/Unplash

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Eles podem ser gentis, bons colegas de trabalho, amorosos, engraçados, comprometidos com esta ou aquela causa, votar em um partido ou outro; podem ser juízes, operários da construção civil, jornalistas, médicos ou entregadores: os agressores do sexo masculino são homens "normais" com todos os tipos de qualidades, profissões e ideologias. Ao contrário da ideia ainda difundida de que existe um perfil mais ou menos específico de um homem que comete violência masculina, ou que um acesso de raiva ou doença mental esteja por trás de um assassinato, as evidências mostram exatamente o oposto.

A reportagem é de Ana Requena Aguilar, publicada por El Salto, 24-11-2025.

“Não existe um perfil de agressor, nem jamais existirá: são homens normais. Gentis, afetuosos... continuamos a transmitir a normalidade que define essa pessoa como se fosse algo incompatível com a violência de gênero, quando é o oposto, totalmente compatível com a violência de gênero”, resume o perito forense Miguel Lorente, que foi Delegado do Governo para a Violência de Gênero e dedicou parte da sua carreira ao estudo de agressores masculinos e à análise de homicídios.

Anos atrás, quando começou sua pesquisa sobre o assunto, ela lembra que era comum a mídia e até mesmo os tribunais lhe perguntarem se um homem “se encaixava” no perfil de um agressor. “Até que me cansei disso e um dia disse: sim, o perfil existe e tem três características: homem, masculino, do sexo masculino”, destaca. Porque por trás da violência de gênero não há um perfil de personalidade específico ou um nível sociocultural, afirma Olga Barroso, psicóloga especializada em violência masculina, mas sim a internalização, consciente ou inconsciente, de um padrão de pensamento, uma estrutura emocional: uma que pressupõe que a posição da mulher nas relações afetivas é subordinada à do homem.

O caso mais recente que exemplifica como continuamos a não compreender a violência de gênero e quem a perpetra é o de Alpedrete: seu prefeito, Juan Fernández Rodríguez, afirmou que o homem que esfaqueou a esposa 50 vezes “a amava” e havia “sucumbido à pressão” de suas circunstâncias pessoais. “Não vejo violência de gênero”, concluiu o prefeito, alegando que não havia “ódio” envolvido no assassinato.

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Olga Barroso, autora de Love Doesn't Abuse (Shackelton, 2024), destaca que um agressor é um homem que tipicamente demonstra violência apenas contra mulheres, "então o que a maioria das pessoas vê é um bom homem... um bom homem no contexto em que o veem". "Isso não significa que ele não esteja abusando de uma mulher. Essa é a ideia que precisamos desconstruir: com você ou naquele contexto, aquele homem pode estar se comportando bem, mas isso não significa que ele não esteja abusando de uma mulher."

A causa da violência de gênero não é doença, nem o abuso de álcool ou outras substâncias. “A causa é se relacionar com a parceira de uma forma que busca a submissão dela; é isso que leva um homem a estar disposto a usar a violência para conseguir isso. Muitos homens podem acreditar que não estão sendo violentos, mas estão: insultos, agressões físicas ou até mesmo assassinatos são o que vemos, mas o abuso não se resume a isso; é acreditar que, em um relacionamento, a mulher gira em torno dele e estar disposto a usar a agressão para colocá-la nessa posição”, explica Barroso.

Uma distorção no foco. A masculinidade se constrói sobre essa ideia de dominação. “Não é preciso ter a intenção de dominar para acabar dominando; basta ter assumido essa posição social. A cultura te coloca lá, e você precisa se esforçar para sair dessa posição”, aponta Barroso. O uso de substâncias ou a presença de transtornos psicológicos podem influenciar “a forma como a violência é exercida, mas não o ato em si”, acrescenta Miguel Lorente. Em outras palavras, substâncias ou doenças podem fazer com que o agressor se desiniba e pratique a violência com mais frequência ou intensidade, mas não são elas que levam o homem a decidir cometê-la.

“Não existe outro tipo de violência com tantos homicídios por ano, então como é possível que não gere conscientização direta? Porque temos um problema de distorção quando se trata de abordar a violência de gênero, porque um estereótipo entra em jogo: o de que é um problema de certos homens, alguns monstros, loucos ou bêbados, um problema marcado pelo contexto desses homens e não pela sua vontade de cometê-lo”, argumenta o perito forense, que insiste que o objetivo dessa violência é o controle, a dominação e a imposição. A presença dessas ideias, continua ele, significa que, em muitas ocasiões, essa violência só é identificada quando se encaixa em um estereótipo muito específico.

Sandra Burgos, advogada especializada em violência de gênero, insiste que essas noções preconcebidas sobre quem pode ser um agressor e como são as vítimas influenciam sua capacidade de buscar ajuda e ter acesso à justiça. “Acontece que a vítima não se identifica como tal porque a violência é normalizada, e ela se culpa pelo que acontece. E o mesmo vale para o agressor: aconteceu comigo recentemente em um caso com um médico bem-sucedido, um réu que defenderia qualquer pessoa. As pessoas dizem: 'É impossível'. Se eu represento um réu com má aparência, tatuagens, que usa drogas... isso o predispõe a uma condenação. Se você representa um médico ou um engenheiro, um homem que fala bem, a menos que você tenha provas médicas muito convincentes de lesões, você sabe que tem poucas chances.”

Burgos enfatiza que já se deparou com todos os tipos de homens acusados, “de todas as classes sociais, origens e históricos”, e insiste que o problema subjacente é um patriarcado generalizado que incute nos homens a ideia de controle e submissão.

Nenhum abusador abusa o tempo todo. Outra ideia errada comum sobre homens que praticam violência de gênero é que eles são permanentemente agressivos. Olga Barroso explica: “Um agressor nem sempre usa violência; o padrão é uma mistura de muitos comportamentos positivos, agradáveis e apropriados, intercalados com outros momentos em que a agressão ocorre, seja qual for a sua natureza. A agressão não tem a intenção de machucar, mas sim de colocar a vítima em uma determinada posição, então eles só a usam em momentos específicos. Se não precisam, por exemplo, porque a mulher já está nessa posição, eles não usam. Por outro lado, eles também se comportam dessa maneira para manter a vítima. É preciso ser positiva e gentil, se comportar bem, para sustentar a violência, e também porque esse homem às vezes está feliz, confortável ou quer afeto.”

Essa mistura de comportamentos faz com que as mulheres que sofrem com isso desenvolvam “dissonância cognitiva”, como define Miguel Lorente.

Contrariando o estereótipo do agressor como um homem perpetuamente violento, Miguel Lorente insiste no oposto: “Nem sempre abusam ou agridem. O objetivo deles é o controle, e recorrem à violência quando precisam mantê-lo ou recuperá-lo”. O especialista também acredita que há uma normalização da violência de baixa intensidade, o que leva a que certos comportamentos sejam socialmente ignorados e não identificados como intoleráveis, enquanto as mulheres sentem vergonha ou culpa por vivenciá-los e, ainda mais, por denunciá-los.

Ela explica que alguns homens “desencadeiam” seu comportamento com mais facilidade em certos ambientes se sentem que podem agir impunemente ou acreditam que não serão denunciados, enquanto outros “se protegem mais” ao se envolverem em atividades sexuais e as evitam se houver testemunhas. Essa proteção, aos olhos da maioria, torna quase impossível que aquele homem “normal” com quem elas compartilharam bons momentos também seja um abusador.

Partir do pressuposto de que um homem com quem estabelecemos algum tipo de vínculo – de amizade, companheirismo, ativismo ou laços familiares – seja um abusador pode ser complicado, pois desafia a nossa própria imagem, aponta Barroso, que, no entanto, incentiva a reconhecermos que isso pode acontecer: “Não nos coloca em uma posição desfavorável, não devemos nos sentir mal, mas precisamos reconhecer que isso pode acontecer, caso contrário, deixamos as vítimas sozinhas diante do seu ambiente.”

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