Deus ouve o clamor da viúva injustiçada (Lc 18,1-8). Artigo de Gilvander Moreira

Foto: Michelle Sousa Santos/Pexels

17 Outubro 2025

"Jesus nos mostra, por meio de uma parábola, a necessidade de orar sempre de forma correta, sem jamais esmorecer. E o conteúdo central dessa parábola, identificado com o desejo da viúva, é que seja feita justiça. No texto grego do evangelho, a raiz ‘justiça’ aparece cinco vezes, o que demonstra de forma enfática que a oração verdadeira é aquela que está colada umbilicalmente com a luta por justiça".

O artigo é de Frei Gilvander Moreira.

Gilvander é frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI e Ocupações Urbanas; autor de livros e artigos.

Eis o artigo.

A parábola da viúva perseverante na luta por justiça, exclusiva do Evangelho de Lucas, pode ser dividida assim: a) introdução redacional de Lucas, que apresenta o porquê da parábola (Lc 18,1); b) a parábola (Lc 18,2-5); c) aplicação da parábola feita por Jesus (Lc 18,6-8a); d) interrogação, atribuída a Jesus, sobre o desafio de manter a fé (Lc 18, 8b).

“Orar sempre, sem nunca desistir” (Lc 18,1). Jesus já havia dito aos discípulos: “Peçam, e lhes será dado! Procurem, e encontrarão! Batam, e a porta será aberta para vocês!” (Lc 11,9). Entretanto, pedir o quê? Como? Procurar o quê? Como? Bater em quais portas? Estas questões fazem toda a diferença no jeito de orar e de lutar por justiça.

As primeiras pessoas cristãs sentiam as mesmas dificuldades que muitas vezes sentimos: oramos e não obtemos o que pedimos! Qual era o núcleo da oração das primeiras pessoas cristãs? O que pediam? A resposta está em Lc 11,2-4 na Oração do Pai Nosso: “Pai, santificado seja o teu nome. Venha o teu Reino. Dá-nos a cada dia o pão de amanhã…

Na prática, porém, a vinda do Reino divino e sua implantação demoravam. A primeira geração cristã pensava que a vinda definitiva do reinado divino seria para aqueles dias. Pouco a pouco, as comunidades tiveram de descobrir que Deus parecia tardar e isso não significava que Deus tinha abandonado o seu projeto ou que nunca viria manifestar no mundo a sua justiça.

Nesse Evangelho, Jesus promete que Deus fará justiça e realça as pessoas que são as eleitas ou escolhidas de Deus. Como ele estava falando da viúva pobre, se subtende que essas pessoas preferidas do Amor Divino não se destacariam por ser dessa ou daquela nação ou etnia ou raça, e sim por serem as que, em todos os recantos do mundo, são injustiçadas.

Houve quem abandonasse a fé como hoje há pessoas que desistem de acreditar em Deus diante de tanta injustiça, guerra e violência que se abate sobre justos e inocentes, como milhares de mulheres, mães e crianças palestinas assassinadas no brutal genocídio perpetrado com requintes de crueldade pelo governo sionista de Israel. Jesus nos mostra, por meio de uma parábola, a necessidade de orar sempre de forma correta, sem jamais esmorecer. E o conteúdo central dessa parábola, identificado com o desejo da viúva, é que seja feita justiça. No texto grego do evangelho, a raiz ‘justiça’ aparece cinco vezes, o que demonstra de forma enfática que a oração verdadeira é aquela que está colada umbilicalmente com a luta por justiça.

A pessoa injustiçada tem a fé inabalável de que será atendida (Lc 18,2-5). A parábola mostra que pessoas oprimidas e opressoras habitam a mesma cidade. O juiz injusto e a viúva injustiçada estão na mesma cidade. Na perspectiva do Evangelho de Lucas, isso só acontecia nas cidades, pois nas aldeias camponesas as viúvas eram respeitadas e protegidas. Vale recordar que na Bíblia em inúmeras passagens “a viúva e os órfãos” são os mais injustiçados na sociedade. [1] De um lado, temos um juiz injusto, que não temia a Deus e não tinha consideração para com as pessoas (Lc 18,2). No caso em questão, temer a Deus significava aplicar a Lei que impedia as injustiças contra as viúvas (Ex 22,21-22; Dt 24,17). Ter consideração para com as pessoas era não fazer distinção no julgamento, favorecendo o opressor em detrimento da viúva e do pobre. O juiz devia ser imparcial: “Todos são iguais perante a lei e têm a mesma dignidade”, diz a nossa Constituição e está também na Bíblia e em todas as Constituições de países que se dizem democratas.

Do outro lado, temos uma viúva – símbolo das pessoas mais desprotegidas contra a ganância dos doutores da Lei (cf. Mc 12,40 e repetição em Lc 20,47: “Os doutores da Lei exploram as viúvas e roubam suas casas, e para disfarçar fazem longas orações”) – que se dirigia insistentemente ao juiz pedindo justiça contra quem a injustiçava (Lc 18,3). Quer no Primeiro Testamento bíblico, quer no tempo de Jesus, a viúva não tinha um defensor legal, ficando assim à mercê de juízes injustos (Is 1,23; 10,2; 2Sm 14,4ss). As leis que ordenavam defender as viúvas nunca foram levadas a sério. Não esqueçamos que os doutores da Lei eram peritos em legislação, a intelectualidade da época. Privatizando o conhecimento, os doutores da Lei gozavam de poder para dominar muita gente.

A força da viúva está na insistência, a ponto de azucrinar a vida do juiz. Este, não por causa da coerência de seus princípios, nem pela consciência da responsabilidade de sua função, decide fazer justiça à viúva. E o faz por duas razões: está cansado da amolação e quer evitar o escândalo de um tapa na cara em pleno tribunal ou em praça pública (Lc 18,5). Destemida na luta por justiça, a viúva tinha acampado na porta do tribunal e de lá estava decidida a não sair enquanto não lhe fosse conferida justiça. A oração da viúva era clamor por justiça.

Muito em breve, Deus fará justiça a seus eleitos (Lc 18,6-8a). A intervenção de Jesus visa aplicar a parábola aos ouvintes. Jesus chama a atenção para o gesto do juiz injusto que fez justiça para se ver livre da amolação da viúva. Se só por causa disso acabou fazendo justiça, quanto mais Deus, que se interessa pela causa das pessoas oprimidas! De fato, Deus é o protetor das viúvas (Ml 3,5), afirma e reafirma os profetas e as profetisas inúmeras vezes na Bíblia. As pessoas mais exploradas da sociedade escravocrata, as viúvas, portanto, têm a quem recorrer: “Não oprimam nenhuma viúva ou órfão… se clamar a mim, escutarei o seu clamor” (Ex 22,21-22), alerta Deus, mistério de infinito amor, por meio da profecia bíblica.

Jesus diz que Deus fará justiça “aos escolhidos”, ou eleitos. Essas pessoas eleitas são as perseguidas que não perdem a fé no mistério de amor que as envolve, encontram em Deus aquele que lhes faça justiça muito em breve. Esse clamor por justiça era peculiar aos primeiros cristãos e cristãs, envolvidos/as em perseguições por causa de sua fidelidade ao Evangelho de Jesus Cristo, ao reino divino (cf. Ap 6,10: “Até quando, ó Senhor santo e verdadeiro, tardarás a fazer justiça, vingando o nosso sangue contra os habitantes da terra?”). Deus vem ao encontro do pedido insistente dos oprimidos que perseveram na fé (dia e noite), fazendo-lhes justiça em breve (Lc 18,8a; cf. Eclo 35,18-19, onde está presente a mesma idéia da imediata intervenção de Deus em favor dos oprimidos). “A súplica do pobre penetra as nuvens e o pobre não sossega, enquanto ela não chegar até a Deus. Ele não desiste, até que o Altíssimo intervenha para fazer justiça aos justos. O Senhor não terá paciência com os injustos, enquanto não quebrar as costas dos cruéis... até quebrar o cetro dos injustos. A misericórdia é bem-vinda no templo da aflição, como as nuvens de chuva no tempo da seca” (Eclo 35,17-24).

É difícil manter-se na luta por justiça (Lc 18,8b). Tal como agiu a viúva, assim deve ser a pessoa cristã: perseverar na luta por justiça e na oração incessante para que Deus intervenha, fazendo justiça aos injustiçados/as, salvando-os. Mas a parábola termina com uma interrogação desafiadora: Quando o Filho do Homem voltar, para fazer justiça, encontrará fé sobre a terra? Encontrará pessoas que se mantiveram fiéis a Jesus, na luta pela justiça do reinado divino e na oração perseverantes? A pergunta é uma admoestação severa: é difícil manter-se na luta. É preciso crer com garra, conservando-se prontos para a doação da vida no compromisso com as causas dos pobres, pois, tanto naquele tempo (cf. 2Ts 2,3; Mt 24,12 [2]) como hoje, muitos são tentados a desanimar.

Finalmente, a expressão de Lc 18,8b pode ainda ser entendida assim: será que somos pessoas de fé, ao ponto de reconhecer a presença da justiça de Deus agindo já em nosso meio ainda sob os solavancos das injustiças? Ou temos fé só para a vinda do Filho do Homem no final dos tempos? Não será agora a hora de sentirmos que Deus está fazendo justiça às pessoas empobrecidas que não perdem a fé em Deus? Essa fé se expressa nas conquistas de lutas concretas por direitos e pelo bem comum, lutas travadas por pessoas e grupos organizados contra a impunidade dos grandes criminosos, assim como a injustiça e a violência que se abatem sobre os mais empobrecidos e violentados?

“Não estou nunca sozinho. Deus está sempre comigo”, me disse sorrindo o papai José Moreira de Souza quando eu, estando na Itália para estudar hermenêutica bíblica, disse a ele que estava preocupado porque ele estava vivendo sozinho lá na roça. Oxalá cultivemos a oração como encontro amoroso com Deus, mas colada com a luta por justiça, o que faz irromper sinais do reino divino no nosso meio.

Infelizmente, atualmente, um crescente número de pessoas alimentam suas devoções particulares, oram a Deus desejosos que se coloque a serviço de seus interesses e se esquecem de quem vive em situação de injustiça, de exclusão, de sofrimento. Esta prática é uma contradição gritante com o ensinamento e a práxis de Jesus Cristo. Jesus de Nazaré subverteu a ordem religiosa, social, política e econômica, defendendo a dignidade humana, colocando a vida acima da lei, dos ritos. É anticristão praticar a cultura do individualismo, da indiferença diante da realidade que provoca tantas mortes e violências.

A exemplo da viúva desta parábola, possamos cultivar espiritualidade libertadora, que nos anima para a luta necessária por condições dignas de vida para todas as pessoas e toda a criação, que nos faz “buscar o Reino de Deus e a sua justiça”. Eis o caminho bom e santo a ser seguido.

Observação

As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.

1 - VIÚVA DO EVANGELHO QUE CLAMA POR JUSTIÇA: AVÓ MARLENE, NA OCUPAÇÃO-BAIRRO ELIANA SILVA/MLB Vídeo 14. Clique aqui

2 - Helba, viúva do fiscal Nelson: "São muitas provas que condenaram Antério Mânica. 4 mandantes livres". Clique aqui.

3 - Deuteronômio 24,17-22: "Deixe para o órfão, a viúva e o migrante". Rosa e Frei Gilvander – 23/9/2020. Clique aqui.

4 - Viúva do Evangelho e o Juiz no Acampamento Maria da Conceição, do MST, em Itatiaiuçu, MG. Vídeo 6. Clique aqui.

5 - Viúva e luta pela Justiça: Homilia de frei Gilvander/131a Festa N. Sra. Rosário/Airões/MG. Vídeo 7. Clique aqui.

6 - Ocupação Nelson Mandela, Serra/BH/MG: Viúva e mãe de 6 filhos clama por moradia digna. 29/12/14. Clique aqui.

7 - Chacina dos fiscais em Unaí: Entrevista com a viúva do Ailton, Marlene e filha Rayanne. 18/01/2013. Clique aqui.

Notas

[1] Cf. Gn 21,1; Ex 22,22; Lev 18,25; Dt 10,18; Dt 24,17; Dt 24,21; Dt 27,19; Nm 16,29; Sl 68,5; Sl 94,6; Sl 109,9; Sl 146,9; Jó 22,9; Jó 24,3; Lm 5,3; Prov 23,10; Rt 1,14; Jr 49,11; Is 10,2; Os 9,9; Ez 22,7; Zc 7,10; Mal 3,5; Mt 25,36; Lc 1,43.68.77; Jo 14,18; Tg 1,27; e inúmeras outras vezes.

[2] “A maldade se espalhará tanto, que o amor de muitos se resfriará.”

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