04 Fevereiro 2024
"Para compreendermos a Bíblia de forma sensata e justa é necessário ler os textos na companhia dos clamores dos empobrecidos e injustiçados da sociedade capitalista, máquina de moer vidas. Quem lê a Bíblia a partir da pequena burguesia (classe média) ou, pior, da classe dominante, irá torturar os textos bíblicos para não ter a consciência incomodada.", escreve Frei Gilvander Moreira.
Frei Gilvander Moreira é padre da Ordem dos Carmelitas, doutor em Educação pela FAE/UFMG, licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia pelo ITESP/SP, mestre em exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália, agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas e professor de Teologia Bíblica no Serviço de Animação Bíblica, em Belo Horizonte.
Os manuscritos originais da Bíblia judaica e cristã se perderam. Temos vários manuscritos posteriores. Muitas traduções da Bíblia foram feitas até chegar à Bíblia que lemos hoje, no Brasil, em mais de vinte traduções atuais. Muitas revisões foram feitas nas traduções, entre as quais as Revisões judaicas motivadas pelo desejo que os judeus helenistas tinham de ter o seu texto grego e que se aproximasse o mais possível do texto hebraico em uso pelos judeus de língua judaica. Por outro lado, tinham consciência de que seria muito difícil suprimir a tradução da Setenta (LXX), em sua grande difusão. Também porque era a tradução de estimação por ser a única, além da polêmica que havia entre judeus e cristãos, pois os cristãos começavam a reler textos do Primeiro Testamento na ótica da messianidade de Jesus, o que influenciou na revisão dos textos, sobretudo, messiânicos.
Houve Revisões judaicas anônimas, pois no deserto de Judá foram encontrados fragmentos de uma tradução grega dos profetas menores, em 1952. Sua tradução foi feita pelos rabinos judeus, por volta do I século da Era Cristã e parece ter sido uma correção ao texto da Tradução da LXX, com base no texto hebraico. Esta revisão anônima é lembrada pelo teólogo de Roma, Justino (110-165, do II século), como texto oficial dos judeus helenistas e é muito provável que corresponda à versão conhecida como a “quinta”, citada por Orígenes e Jerônimo, pilares da Patrística na Igreja.
Tradução de Áquila, Teodozião e Símaco: a tradução de Áquila foi feita por um convertido ao Judaísmo, que conhecia o grego da cidade do Ponto, na atual região da Turquia. Ele fez a tradução de palavra por palavra do texto hebraico para o grego, por volta do ano 140 da Era Cristã. Correu o risco de cometer alguns erros de gramática e de sintaxe da língua grega, como o fato de colocar após os numerais o substantivo no singular, como no hebraico. Essa tradução teve boa acolhida entre os judeus pela sua fidelidade ao hebraico até mesmo nas construções e expressões mais características desta língua.
A tradução do hebraico para o grego de Teodozião foi feita por um judeu, mas de Éfeso, que também cuidou da edição no ano 180 Era Cristã. Algumas citações do Primeiro Testamento bíblico são retomadas no Segundo Testamento (1Cor 15,55; Jo 19,37; Ap 1,7), cujas semelhanças são maiores com a tradução de Teodozião do que com a Tradução da LXX.
Símaco é igualmente um judeu da Samaria, que se converteu à fé cristã, por volta do ano 200 da Era Cristã, cuidou da edição do texto grego do Primeiro Testamento. O seu objetivo era o de tornar o texto hebraico em uma obra literária para um grego elegante e o conseguiu.
A Esapla de Orígenes (185-253) – Orígenes é teólogo cristão, de Alexandria no Egito. Ele tentou responder às acusações dos judeus contra os cristãos, pois eles afirmavam que os cristãos não tinham um texto grego confiável das Escrituras hebraicas. Então ele fez um texto grego uniforme e exato do Primeiro Testamento e, para atingir os seus objetivos, compôs a Esapla, colocando a Bíblia hebraica em colunas com as versões conhecidas na época:
Nem sempre Orígenes reproduziu na íntegra o texto da Tradução da LXX, quando as lições dos códigos não eram uniformes ou corrompidas, substituindo-as por lições de outras versões gregas do Primeiro Testamento.
No século IV da Era Cristã, o exemplar original da Esapla passou para a Biblioteca de Cesareia, onde ela foi consultada por Jerônimo, o grande tradutor da Bíblia para o latim, a Vulgata. Com a ocupação dos muçulmanos no século VII, ela foi perdida; nunca foi copiada integralmente, apenas pequenas partes.
Houve a revisão do texto da Tradução da LXX pelo padre Luciano de Antioquia, pouco depois do ano 300 Era Cristã. Ele confrontou o texto grego da LXX com o texto hebraico e foi corrigindo as possíveis falhas que ele encontrava.
Ter noção das muitas traduções e Revisões pelas quais a Bíblia Judaica e a Cristã passaram é fundamental para não cairmos na armadilha das leituras fundamentalistas que levam muitas pessoas a ler ao pé da letra versículos bíblicos e, se projetando nestes, criar conclusões que muitas vezes são até absolutamente contraditórias com a finalidade do texto bíblico e o seu sentido mais profundo. Para quem acredita em Deus, a Bíblia é inspirada, mas não foi ditada por Deus. A Bíblia é palavra divina, porém envolvida por todas as ambiguidades humanas. O sentido dos textos bíblicos precisa ser peneirado como se peneira para encontrar ouro ou recolher o feijão e o arroz sem os rejeitos que os envolvem.
Uma característica básica e fundamental da Bíblia é a revelação segundo a qual Deus não é neutro, mas fez opção de classe ao ouvir os clamores dos povos escravizados sob as agruras do Imperialismo dos faraós no Egito, desceu para libertá-los e se tornou companheiro de caminhada rumo a Terra Prometida (Ex 3,7-9). Os profetas e profetisas sempre denunciam os projetos de morte e apontam os caminhos de libertação integral. Portanto, quem usa a Bíblia para tentar justificar posturas racistas, discriminatórias, homofóbicas, de aporofobia (aversão aos pobres), tentando emplacar a ideologia da prosperidade comete um pecado religioso grave, pois acaba torturando textos bíblicos para fazê-los falar o contrário do que eles querem afirmar. Para compreendermos a Bíblia de forma sensata e justa é necessário ler os textos na companhia dos clamores dos empobrecidos e injustiçados da sociedade capitalista, máquina de moer vidas. Quem lê a Bíblia a partir da pequena burguesia (classe média) ou, pior, da classe dominante, irá torturar os textos bíblicos para não ter a consciência incomodada. Analisar o texto, sim, mas no seu pré-texto e contexto à luz das lutas libertárias dos empobrecidos/as de hoje. Eis um caminho libertador.
Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 – Um Tom de resistência - Combatendo o fundamentalismo cristão na política
2 - Bíblia: privatizada ou lida de forma crítica libertadora? Por frei Gilvander, no Palavra Ética
3 - Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5
4 - Agir ético na Carta aos Efésios: Mês da Bíblia de 2023. Por frei Gilvander (Cinco vídeos reunidos)
5 - Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG - Set/2022
6 - Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022
7 - Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22
8 - Estudo: Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino
9 - Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença! - Por frei Gilvander - Mês da Bíblia/2023 -02/07/2023
10 - Bíblia, Ética e Cidadania, com Frei Gilvander para CEBI Sudeste
11 - Contexto para o estudo do Livro de Josué - Mês da Bíblia 2022 - Por frei Gilvander - 30/8/2022
12 - CEBI: 43 anos de história! Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos lendo Bíblia com Opção pelos Pobres
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Bíblia: Revisões Judaicas da Tradução da LXX. Artigo de Gilvander Moreira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU