17 Janeiro 2024
"A Tradução da LXX é de grande importância na crítica textual, já que ela é a tradução mais antiga e, junto com os manuscritos do Mar Morto, nos proporciona acesso ao tipo de texto hebraico antigo que se diferenciava do texto proto-massorético", escreve Frei Gilvander Moreira.
Frei Gilvander é e padre da Ordem dos Carmelitas, doutor em Educação pela FAE/UFMG, licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia pelo ITESP/SP, mestre em exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália, agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas e professor de Teologia Bíblica no Serviço de Animação Bíblica, em Belo Horizonte.
A tradução da Bíblia Hebraica para o Grego, a chamada Tradução da LXX, foi iniciada no III século antes da Era Cristã (a.E.C.) e foi a primeira que aconteceu do texto bíblico hebraico e aramaico do Primeiro Testamento. Esta tradução é identificada por diversos nomes referindo-se ao mesmo texto: a LXX; a Septuaginta; a Setenta; a tradução Alexandrina, cidade do Egito onde teria sido feita esta tradução.
A Tradução da LXX recebeu o seu nome da Pseudo Carta de Aristea, do II século da Era Cristã (E.C.), que narra na forma de uma Carta como teria sido a origem da tradução grega da Bíblia hebraica. Ele afirma que o rei do Egito Ptolomeu Filadelfo (285-247 da a. E. C.) desejava ter na famosa Biblioteca de Alexandria um exemplar da Lei Mosaica. Para realizar este seu desejo teria convidado 72 sábios judeus de Jerusalém para Alexandria, que em 72 dias teriam terminado a incumbência dada pelo rei para traduzir o Primeiro Testamento da Bíblia judaico-cristã. Se esta Carta é verdadeira ou não, não sabemos, mas foi no III século a. E. C., no tempo do rei Filadelfo, que iniciou-se a tradução do Primeiro Testamento da Bíblia Hebraica para o grego.
De fato, em Alexandria havia uma colônia numerosa de judeus da diáspora, que distantes de sua terra de origem, filhos e netos pouco a pouco não falavam e nem liam mais o hebraico. A tradução para o grego era uma forma de possibilitar o acesso aos textos sagrados aos descendentes judeus. O término da tradução da LXX provavelmente se deu por volta do ano 100 a.E.C., pois o autor do livro hebraico Qohelet, em grego Eclesiastes, afirma ter chegado ao Egito no tempo de Ptolomeu Evergete II (170-116), por volta do ano 132, e que, depois de um tempo, teria escrito o livro Qohelet/Eclesiastes, em que o autor deixa a entender que a tradução grega do Primeiro Testamento da Bíblia Hebraica já era conhecida nesta época.
O valor crítico e literário da tradução da LXX estaria no fato de ter sido feita por um grande número de estudiosos que tinham um bom conhecimento das duas línguas – o hebraico e o grego – e com habilidades para esse empreendimento, embora nem todas as partes da tradução tenham o mesmo valor crítico e literário. Quanto ao valor crítico da tradução, alguns livros trazem bem o sentido original do texto hebraico, outros, menos. Há indícios de que alguns textos foram parafraseados, outros ampliados na parte doutrinal (MARTINI; BONATI, 1990, p. 187). Nenhum tradutor é neutro.
A importância histórica e ética da tradução da LXX está no fato de ter sido o texto oficial por muito tempo para os judeus helenistas ou vindos da cultura helênica. A partir do Egito esta Bíblia na língua grega se espalhou rapidamente por toda a bacia do Mediterrâneo oriental, de modo especial onde havia comunidades judaicas de língua grega. No seu conjunto a LXX tem o seu merecimento, pois os seus tradutores não tinham os recursos necessários de filologia e de exemplos anteriores; eles foram os pioneiros.
A versão dos Setenta foi utilizada nos primeiros séculos da Igreja como verdadeiro texto bíblico. No entanto, nem todos os livros que contém acabaram sendo admitidos no cânon da Igreja Católica. Cinco deles foram rejeitados como apócrifos, não inspirados: 1Esdras (mas foi admitido 2Esdras, que contém nossos livros de Esdras e Neemias), 3 e 4 Macabeus, Odes e Salmos de Salomão (TOSAUS ABADIA, 2000, p. 54).
A maioria das citações da Bíblia cristã no Segundo Testamento é tomada da versão grega e não do original hebraico. Por exemplo, nos evangelhos de Mateus e Lucas se diz que Jesus nasceu de Maria, uma mulher virgem (Mt 1,23; Lc 1,27). Entretanto, segundo vários evangelhos e textos do Novo Testamento (Mc 6,3; Mt 12,46-49; 13,55-56; Jo 2,12; 7.3.5.10; Ato 1,14; Gal 1,19; I Cor 9,5 e o apócrifo História de José o carpinteiro II, 3, se diz que Jesus teve irmãos e irmãs. Chegam a dizer que os irmãos e irmãs de Jesus seriam seis: Judas, José, Tiago, Simão, Lísia e Lídia.
Qual o sentido da “virgindade” de Maria? Qual a etimologia da palavra virgem? Ouvimos falar em "mulher virgem", "mata virgem", "terra virgem". Em Lc 1:27 diz: "uma virgem desposada com um varão cujo nome era José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria". Em Mt 1,23 diz: "Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e ele será chamado pelo nome de Emanuel".
Para ajudar a José (e principalmente a/s comunidade/s de Mateus) a entender e assumir uma criança que nasce em situação fora do previsto pela Lei de Moisés (de fora e antes do casamento), e a reconhecer que ela vem de Deus e de seu Espírito (Mt 1,18-25), a uma certa altura no evangelho de Mateus aparece uma citação do profeta Isaías, no contexto da fala do anjo a José no meio de um sonho. Confira em Mt 1,22-23: “Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta”. E depois vem a citação de Is 7,14.
Notamos que entre o texto de Isaías e a citação no evangelho de Mateus há algumas diferenças. O texto de Isaías diz o seguinte: “Eis que a jovem (hayalemah, em hebraico) concebeu e dará à luz um filho, e o chamará com o nome de Emanuel” (Is 7,14). O texto de Mt prescreve: “Eis que a virgem (parthenos, em grego) conceberá, e dará à luz um filho, e o chamarão com o nome Emanuel” (Mt 1,23). Mateus usa a versão da LXX que usa a palavra parthenos, que significa virgem, mas no hebraico, em Is 7,14, está a palavra hayalemah, que significa jovem. Uma jovem conceber e dar à luz uma criança está de acordo com as leis da natureza, mas uma virgem conceber, não. Como explicar a diferença?
Por enquanto, duas diferenças chamam a nossa atenção. Em primeiro lugar, o texto de Isaías fala de uma gravidez que já está acontecendo (“a jovem concebeu”); ou seja, só pode estar falando de uma jovem que vivia no tempo em que Isaías pronunciou este oráculo, mais de 700 anos antes de Jesus, no contexto da história de Judá sob domínio do rei Acaz e sob a ameaça do império assírio. Essa criança que está para nascer é sinal de Javé para o rei, por ela e seu nome a profecia deixa claro o lugar de Javé e sua distância dos projetos do rei e sua corte (leia o conjunto de Is 7,1-17).
Em segundo lugar, a citação desse texto no evangelho das comunidades de Mateus tem outro objetivo. A criança de que se está falando é Jesus, que vai nascer muito tempo depois do tempo de Isaías. Por isso, a gravidez aparece anunciada, apontada para o futuro (“a virgem conceberá”). Em outros termos, as comunidades de Mateus releem com liberdade a profecia de Isaías e a projeta no futuro, ao invés de copiá-la simplesmente mantendo o tempo presente. Por isso, diz "conceberá"; e não diz "concebeu". Foi a meditação, a experiência de fé da comunidade que tornou possível fazer a junção entre a história de uma criança do tempo de Isaías, que foi sinal de Javé para o povo, e a história de Jesus, com certeza um grande sinal de Deus para as comunidades de fé. Também dizer que Jesus Cristo é filho de uma “virgem” é um jeito de dizer que Jesus Cristo é divino, filho Deus, messias, salvador. Não é um simples homem. Na Bíblia há várias passagens que mostram mulheres virgens e estéreis dando à luz. Por exemplo, Sara, a esposa de Abraão, concebe Isaac na sua velhice e esterilidade (Gn 24,36). Isabel, prima de Maria, concebe João, o Batista, na sua velhice estéril (Lc 1,7). Isso como um jeito bíblico de dizer que “para Deus nada é impossível” (Lc 1,37), ou seja, nas entranhas da história e do humano, o divino pode brilhar de forma inesperada.
A Tradução da LXX é de grande importância na crítica textual, já que ela é a tradução mais antiga e, junto com os manuscritos do Mar Morto, nos proporciona acesso ao tipo de texto hebraico antigo que se diferenciava do texto proto-massorético. O texto grego da LXX foi retomado pelos autores do Segundo Testamento cristão em cerca de 300 citações do Primeiro Testamento, de um total de 350. O Segundo Testamento cristão da Bíblia traz também as citações da LXX quando o sentido do texto é diverso do texto hebraico. A Igreja, na verdade, considerou como seu texto oficial para o Primeiro Testamento a tradução da LXX, excluindo apenas a tradução do livro de Daniel, e em seu lugar inseriu a tradução de Daniel do Teodozião.
A Bíblia grega era usada pelos padres gregos nas homilias, nos comentários, na catequese e nas assembleias litúrgicas.
MARTINI C. M; BONATI D. P. Il Messaggio della Salvezza, v.1. Torino: Elle Di Ci, 1990, p. 187.
TOSAUS ABADIA, J. P. A Bíblia como literatura. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 54.
Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 – Um Tom de resistência - Combatendo o fundamentalismo cristão na política
2 - Bíblia: privatizada ou lida de forma crítica libertadora? Por frei Gilvander, no Palavra Ética
3 - Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5
4 - Agir ético na Carta aos Efésios: Mês da Bíblia de 2023. Por frei Gilvander (Cinco vídeos reunidos)
5 - Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG - Set/2022
6 - Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022
7 - Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22
8 - Estudo: Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino
9 - Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença! - Por frei Gilvander - Mês da Bíblia/2023 -02/07/2023
10 - Bíblia, Ética e Cidadania, com Frei Gilvander para CEBI Sudeste
11 - Contexto para o estudo do Livro de Josué - Mês da Bíblia 2022 - Por frei Gilvander - 30/8/2022
12 - CEBI: 43 anos de história! Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos lendo Bíblia com Opção pelos Pobres
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Tradução da Bíblia Hebraica para o Grego: a LXX. Artigo de Gilvander Moreira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU