Cartas de Irmã Dorothy - 10. Artigo de Felício Pontes Jr

Arte: IHU

09 Novembro 2025

"Na carta, Irmã Dorothy afirma que direito à terra é sagrado. Usa a palavra dignidade para demonstrar que o sistema preponderante a retira das pessoas pobres. E, no final, usa a expressão sem devastar como clamor por uma nova forma de lidar com a Amazônia", recorda Felício Pontes Jr., em sua décima carta de memória aos vinte anos do martírio de Irmã Dorothy Stang, que foi celebrado no dia 12-02-2025.

martírio da Irmã Dorothy Stang será lembrado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU durante os doze meses de 2025. Em cada mês, Felício Pontes Jr., procurador da República junto ao Ministério Público Federal, em Belém, e assessor da Rede Eclesial Pan-Amazônica – Repam, publicará uma carta em memória à religiosa.

Felício Pontes Jr. era amigo da irmã Dorothy e como procurador segue os seus passos, atuando nas causas defendidas pela missionária. Em entrevista à IHU On-Line, em 2009, ao lembrar do trabalho da missionária, ele a classificou como “o Anjo da Amazônia”. “Tudo que ela tentou estabelecer foi o desenvolvimento integral dos povos da floresta. Isso implica também na relação do homem com a natureza”, disse na ocasião.

Eis o artigo.

O jornalista britânico Dom Phillips foi assassinado em 2022, no Vale do Javari/AM, juntamente com o indigenista Bruno Pereira. Ele percorria a Amazônia para escrever um livro sobre os conflitos e as soluções para a região. Em 2025, o livro foi publicado com o título “Como salvar a Amazônia – uma busca mortal por respostas” (Companhia das Letras).

Um dos capítulos do livro é sobre sua visita ao Projeto de Desenvolvimento Sustentável Esperança, em Anapu/PA, pelo qual Irmã Dorothy deu sua vida. O jornalista entrevistou Antônia Silva Lima, conhecida por Dona Tonica. Uma mãe de família maranhense, que vivia como trabalhadora rural com sua família, de fazenda em fazenda, entre o Maranhão e o Pará, até encontrar Irmã Dorothy, em Anapu. A missionária lhe falou de um assentamento para trabalhadores rurais sem-terra, numa concepção diferente dos que existiam.

Para Dona Tonica, Seu Zequinha (seu esposo), e seus filhos, que buscavam seu próprio pedaço de terra, era o sonho que sonhavam juntos. Compreenderam imediatamente a proposta. Cada família teria uma porção para a agricultura de subsistência no modelo agrofloresta, com uma imensa área para reserva. O cacau, nativo da região, seria o carro-chefe, ao invés do capim.

Ao ser entrevistada por Dom Phillips, Dona Tonica disse: “Na verdade, as pessoas não valorizam essa reserva de 80%. Não é importante para elas. O importante é desmatar e plantar capim para o gado.” Quando o assuntou chegou na Irmã Dorothy, Dona Tonica deu o seguinte testemunho: “Houve momentos em que ela dizia ‘vou desistir’. Ela chorava, com a cabeça abaixada, por causa da luta e da perseguição. Ela levantou a cabeça e disse: ‘Não, eu não vou desistir. Vou até o fim. Vou lutar até o fim pela terra de meu povo.’ Ela de fato lutou até o fim, até que sua vida se foi.”

O testemunho coincide com uma das cartas mais famosas de Irmã Dorothy, quando declarou:

"Não vou fugir, nem abandonar a luta desses agricultores, que estão desprotegidos no meio da floresta. Eles têm o sagrado direito a uma vida melhor, numa terra onde possam viver e produzir com dignidade, sem devastar".

A pressão que Irmã Dorothy sentia para abandonar a luta era imensa. Quando o assentamento começou, não havia nem estrada. Dona Tonica fez a picada para chegar ao seu lote. Recebia de Irmã Dorothy as sementes de cacau em sacas que eram carregadas por elas mesmas e os demais assentados.

Depois que a estrada chegou, chegaram também grileiros, madeireiros e fazendeiros. Não fazia sentido entregar a terra para aqueles que gerariam o círculo vicioso que negava dignidade a Dona Tonica e aniquilava a Mãe Terra.

Na carta, Irmã Dorothy afirma que direito à terra é sagrado. Usa a palavra dignidade para demonstrar que o sistema preponderante a retira das pessoas pobres. E, no final, usa a expressão sem devastar como clamor por uma nova forma de lidar com a Amazônia.

A mentalidade de trocar a floresta por capim é colonizadora, antieconômica e suicida. Como afirma Dom Phillips: “Salvar a Amazônia requer ver na floresta tropical um ativo, não um obstáculo ao progresso, como muitos brasileiros têm feito historicamente.”

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