03 Julho 2025
Apesar das novas linhas agroecológicas, levantamento mostra que a maior parte do crédito rural para agricultura familiar do Plano Safra financiou um setor de alto impacto ambiental nos últimos 30 anos.
A reportagem é de Daniel Camargos, publicada por Repórter Brasil, 02-07-2025.
O Governo Lula (PT) lançou na segunda-feira (30) o novo Plano Safra da Agricultura Familiar com entusiasmo. Apresentado como um marco de compromisso com o meio ambiente e o combate à fome, o plano prevê juros reduzidos e novas linhas voltadas à agroecologia, com valor recorde de R$ 89 bilhões.
O discurso, contudo, contrasta com o histórico do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) na Amazônia Legal: nos últimos 30 anos, quase 65% desta linha de crédito rural foi destinada à pecuária.
A informação é resultado de um levantamento inédito do WRI (World Resources Institute), uma organização global de pesquisas, conduzido pelo economista sênior Rafael Feltran-Barbieri. Ele aponta uma contradição entre o objetivo do programa e a destinação real dos recursos. “Impressiona como na Amazônia, mais do que no resto do Brasil, o Pronaf financiou muito a pecuária”, afirma.
A pecuária é nociva para a Amazônia por vários motivos: é a principal causa da devastação, responsável por mais de 90% do desmatamento do bioma para abertura pastagens, segundo o MapBiomas; contribui significativamente para as emissões de gases de efeito estufa, como o metano, liberado no processo de digestão dos animais; e está ligada à grilagem de terras.
O economista considera problemático destinar tantos recursos da agricultura familiar para a criação de gado, pois a pecuária extensiva gera poucos empregos e apresenta rentabilidade limitada. “A agricultura familiar é o contrário disso. Permite desenvolvimento em áreas pequenas, com baixo impacto ambiental e mais geração de renda”, defende.
O Pronaf é o principal programa do Plano Safra da Agricultura Familiar, com R$ 78,2 bilhões disponíveis, o que corresponde a 88% dos recursos anunciados para a safra 2025/2026.
Uma das novidades neste ano é o Pronaf B Agroecologia, que oferece microcrédito de até R$ 20 mil com juros de 0,5% ao ano e bônus de adimplência de 40% (desconto nas parcelas pagas dentro do prazo). Além do Pronaf B Quintais Produtivos para Mulheres Rurais, com condições semelhantes. Há ainda a criação do SocioBio Mais, que garante preço mínimo a produtos como babaçu, pirarucu e borracha.
As medidas foram apresentadas como resposta às críticas da sociedade civil sobre o uso histórico do Pronaf, especialmente na Amazônia. A campanha Sociobioeconomia no Pronaf, por exemplo, articulada por dezenas de organizações, reivindicava que ao menos 5% dos recursos do programa fossem destinados a sistemas produtivos sustentáveis baseados em floresta, agroecologia e manejo comunitário – algo possível de ser alcançado com as novas linhas criadas.
“Esse plano só existe porque há contribuição de vocês. Vocês que lutam, pressionam e batalham para ter políticas públicas para produção de alimentos”, disse o ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, durante o lançamento.
O presidente Lula classificou os juros do Pronaf como “negativos” — de 2% a 3% ao ano em sua maior parte — diante de uma inflação estimada em 5%, e celebrou o plano como parte de uma estratégia para reconstruir políticas públicas no campo.
Os anúncios são importantes por reforçar o compromisso do governo com a agricultura familiar, avalia o secretário-geral do CNS (Conselho Nacional das Populações Extrativistas), Dione Torquato. Porém, ele alerta ser necessário garantir que os recursos cheguem de fato à agricultura familiar. “Não somos contra as grandes commodities, mas são os alimentos da sociobiodiversidade que chegam na mesa do brasileiro”, afirma.
As novas linhas de crédito só terão impacto real se forem lastreadas por recursos suficientes e implementadas de forma estruturada, afirma Feltran-Barbieri, do WRI. “Se esses programas específicos não tiverem fundos, vão ficar só no papel. A pecuária continuará sendo priorizada”, avalia.
Segundo o economista, mesmo quando há recursos disponíveis, o crédito frequentemente acaba direcionado à pecuária por falta de demanda informada e de conhecimento técnico nos bancos que operam o Pronaf.
“Os técnicos dos bancos têm dados de produtividade da pecuária, mas muitas vezes não têm base para avaliar uma agrofloresta, por exemplo, no momento de conceder o crédito”, exemplifica.
Fernando Moretti, da Conexsus (Instituto Conexões Sustentáveis), também reconhece avanços no novo Plano Safra, porém ele aponta falta de estrutura para que o crédito chegue a quem trabalha com agroecologia e produtos da floresta.
Um dos principais problemas é que muitas famílias seguem de fora por não terem o CAF (Cadastro Nacional da Agricultura Familiar), necessário para acessar o Pronaf e outras políticas públicas. Segundo a Conexsus, cerca de 40% das famílias da sociobiodiversidade ainda não têm esse documento.
Moretti também defende mudanças nas regras do crédito rural, como a aceitação de documentos alternativos ao CAR (Cadastro Ambiental Rural) em áreas coletivas e a criação de equipes especializadas nos bancos públicos para atender melhor quem vive da floresta.
Dione Torquato, do Conselho Nacional das Populações Extrativistas, aponta também a falta de um componente importante no plano do governo federal: um seguro climático nacional que inclua as comunidades extrativistas.
Ele destaca que o Plano Safra já oferece subsídio a grandes produtores por perdas climáticas, o que não existe, até hoje, para quem vive da floresta. Um exemplo dessa exclusão, segundo Torquato, foi a perda enfrentada por famílias no baixo Rio Juruá (AM) durante a seca severa de 2024.
Segundo o agricultor, os períodos secos mais longos estão reduzindo o tempo útil de pesca do pirarucu. “Nesses últimos tempos, as secas estão pesadas. O governo precisa olhar para quem cuida da floresta”, afirmou. A Aspruj representa cerca de 500 famílias ribeirinhas de 15 comunidades próximas a Tefé (AM).
Diante de situações como essa, o Projeto de Lei 1528/2025, apresentado pela deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG), quer incluir povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, extrativistas e pescadores artesanais no Fundo Garantia-Safra, com direito a indenizações por perdas causadas por seca ou excesso de chuva.
O texto prevê que o benefício possa chegar a até dois salários mínimos, pagos em até seis parcelas, e que seja estendido a atividades extrativistas e pesqueiras, não apenas agrícolas. A proposta também sugere que beneficiários participem de programas de capacitação técnica para enfrentar as mudanças climáticas, com foco em regiões como o Semiárido e a Amazônia.
Apesar de ter alcançado valor recorde, o Plano Safra da Agricultura Familiar ainda é muito menor do que o destinado a médios e grandes produtores. A vertente empresarial do plano, lançada no dia seguinte, na terça (1º), promete R$ 516,2 bilhões, quase seis vezes mais do que o destinado à agricultura familiar.
O Greenpeace Brasil criticou a disparidade e alertou para a ausência de critérios mais rígidos. A organização afirma que o crédito rural voltado para o agronegócio ainda permite o financiamento de imóveis com infrações ambientais e não exige rastreabilidade na pecuária.
“É necessário que esses bilhões sirvam à transição para sistemas alimentares justos, resilientes e sustentáveis”, disse Thais Bannwart, porta-voz da Frente de Desmatamento Zero da entidade. Para o Greenpeace, a política de crédito rural, como está estruturada hoje, segue alimentando o desmatamento ainda que embalada por um discurso de sustentabilidade.