"Nosso desafio, hoje, sob a influência de Irmã Dorothy, é resgatar o pensamento franciscano e fazer a reconexão com a Natureza, chamada por ela e pelos povos originários das Américas de Mãe Terra", assinala Felício Pontes Jr., em sua primeira carta de memória aos 20 anos do martírio de Irmã Dorothy Stang, que será celebrado no dia 12 de fevereiro de 2025.
O martírio da Irmã Dorothy Stang será lembrado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU durante os doze meses de 2025. Em cada mês, Felício Pontes Jr., Procurador da República junto ao Ministério Público Federal, em Belém, e assessor da Rede Eclesial Pan-Amazônica – Repam, publicará uma carta em memória à religiosa.
Felício Pontes Jr. era amigo da irmã Dorothy e como procurador segue os seus passos, atuando nas causas defendidas pela missionária. Em entrevista à IHU On-Line, em 2009, ao lembrar do trabalho da missionária, ele a classificou como “o Anjo da Amazônia”. “Tudo que ela tentou estabelecer foi o desenvolvimento integral dos povos da floresta. Isso implica também na relação do homem com a natureza”, disse na ocasião.
No início deste século, o desmatamento da Amazônia era crescente, chegando na casa dos 27.000 km² em 2004. Para se ter uma ideia de que isso significa, no ano passado o desmatamento foi de 6.288 km² – quase cinco vezes menos. As estradas se constituíam no principal vetor do desmatamento. Madeireiros, fazendeiros e grileiros de terras ocupavam a região da Transamazônica-Xingu na proporção que a trafegabilidade das estradas melhorava. Irmã Dorothy já vivia na região há quase 40 anos. Não se conformava com a destruição da floresta e a consequente matança dos animais – dos pequeninos até a onça-pintada.
Em uma de suas cartas daquela época, após expor sua preocupação com o cenário desolador que presenciava e sua impotência, dispara uma frase curta e de profundo significado. Disse a mártir da Amazônia: “Precisamos nos reconectar com a Mãe Terra.”
Na primeira vez que li essa carta, pensei imediatamente no Cântico das Criaturas, de São Francisco de Assis, que neste ano faz aniversário de 800 anos. A oração ensina que somos parte da Natureza – ou da Criação. Não somos algo apartado, muito menos superiores aos demais seres que habitam o Planeta. O Santo dos Pobres deixa isso bem claro ao chamar o sol, o vento e o ar de irmãos. Ao chamar a lua e a água de irmãs, e a Terra, de mãe. Há uma profunda e intrínseca conexão entre a humanidade e a Natureza. Aliás, a palavra “homem” deriva do latim “humus”.
Portanto, quando Irmã Dorothy afirma que “precisamos nos reconectar com a Mãe Terra”, parte do pressuposto de que a conexão foi quebrada. Com efeito, no meio desses 800 anos, um novo pensamento filosófico apareceu no século XVII. O filósofo francês René Descartes afirma que o homem é “maître et possesseur de la nature” (mestre e possuidor da Natureza). E mais, afirma que os animais não-humanos são máquinas.
Esse pensamento caiu como uma luva aos nossos colonizadores e aos neocolonizadores da Amazônia. A floresta é vista como um obstáculo a ser derrubado. E, assim, foram implementados Planos de Integração Nacional durante a ditadura militar que financiaram os neocolonizadores. Esses Planos previam basicamente a retirada da madeira que possuísse valor comercial. Depois, a derrubada da floresta para plantar capim. Não faltou dinheiro público. O Banco da Amazônia e a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) foram os principais financiadores desse projeto. Nossa conexão com a Natureza amazônica estava definitivamente quebrada.
Irmã Dorothy presenciou a implantação desse projeto de desenvolvimento predatório no seu dia a dia. Lutou contra ele, na tentativa de mostrar uma alternativa que era socialmente inclusiva, ambientalmente sustentável e, mesmo economicamente, mais lucrativa do que derrubar a floresta. Trata-se na prática do que hoje é chamado de ecologia integral – a expressão não era conhecida ao tempo do seu martírio.
No Sínodo para a Amazônia, em 2019, ela foi chamada de mártir da ecologia integral. A Campanha da Fraternidade deste ano – com o lema “Fraternidade e Ecologia Integral” – abre a possibilidade de um profundo debate para a necessária mudança de pensamento da relação humanidade-Natureza.
Essa mudança de pensamento enseja abandonar a ideia de superioridade humana em relação à Natureza; abandonar a ideia dos animais não-humanos como máquinas; abandonar a ideia do homem como mestre e possuidor da Natureza...
Portanto, nosso desafio, hoje, sob a influência de Irmã Dorothy, é resgatar o pensamento franciscano e fazer a reconexão com a Natureza, chamada por ela e pelos povos originários das Américas de Mãe Terra.
Até a próxima.