31 Julho 2018
A tensão no Pará, lugar mais letal do mundo para defensores da terra ou do meio ambiente, tornou-se ainda mais explosiva do que na época em que a missionária foi assassinada.
A reportagem é de Eliane Brum, escritora, repórter e documentarista, publicada por El País, 30-07-2018.
“Já conferi na lista, mãe. Meu nome não está lá”, garantiu Leoci Resplandes de Sousa, poucos dias antes de ter o corpo transformado numa peneira. Na maioria das cidades, poderiam ser muitas as listas. Aprovação no vestibular, contratados por alguma empresa, selecionados para algum concurso público. Mas não em Anapu, município do estado do Pará que entrou no mapa mental do Brasil e do mundo em 2005, quando a freira Dorothy Stang foi executada com seis tiros por defender os direitos dos mais pobres à terra e, com isso, confrontar os interesses dos grileiros (ladrões de terras públicas). Em Anapu, no Pará, 13 anos pós o assassinato da missionária, a lista ainda é a de camponeses marcados para morrer.
Leoci não estava na lista. Mesmo assim foi assassinado em 3 de junho, ao final da tarde, sentado com a mulher no alpendre da casa depois de um dia de roça. Segundo a sua mãe, liderança do lote 46 da Gleba Bacajá, “com 23 chumbos de 12 (calibre da espingarda)”. A lista ou não estava completa. Ou há mais de uma lista. Segundo afirmam pessoas que não podem ser identificadas, a “lista” está nas mãos de um dos chefes da pistolagem. Haveria pelo menos três figuras-chaves na pistolagem e uma milícia armada. Quando um trabalhador rural precisa saber se o seu nome está lá, aciona intermediários que vão “assuntar”. Isso é contado com naturalidade na cidade e no campo de Anapu, como mais um dado da rotina. Não há limites para o que pode ser naturalizado nas regiões em que ou o Estado não está presente – ou está presente a serviço da grilagem e da extração ilegal de madeira, o que é bastante comum no território amazônico.
A de Leoci foi apenas uma entre 16 cruzes de madeira cravadas nas casas dos mortos durante a Romaria da Floresta, entre 19 e 22 de julho. Realizada há 13 anos, desde o assassinato de Dorothy Stang, esta foi a primeira vez que a romaria andou pela cidade em vez de percorrer 25 quilômetros de estradas rurais por dia. A mudança foi um pedido dos camponeses que temem pela vida devido à escalada de violência e a criminalização dos movimentos sociais na região de Anapu e em toda a Amazônia.
Padre José Amaro Lopes, um dos principais sucessores de Dorothy Stang na defesa dos pequenos agricultores, foi preso com um buquê de acusações em 27 de março. E jogado na mesma prisão em que Regivaldo Galvão, o “Taradão”, um dos mandantes da morte de Dorothy Stang, paga sua pena. Depois de três meses na cadeia, padre Amaro passou a responder às acusações em liberdade, mas sujeito a várias restrições. Na romaria, os camponeses gritavam: “Irmã Dorothy vive! Padre Amaro livre!”.
Duas semanas antes de ser preso, Padre Amaro deu uma entrevista ao jornal The Guardian. Nela, afirmou que sua “batata estava assando”, referindo-se ao fato de que sabia que algo aconteceria com ele. “Como matar a Dorothy deu muita repercussão e problemas para os grileiros, eles vão forjar algum acidente ou inventar alguma coisa para me criminalizar”, disse. Ele, um sacerdote desarmado que se preparava para cumprir as obrigações rotineiras, foi preso como se fosse um chefe da máfia. A espalhafatosa operação envolveu 15 policiais e vários setores da polícia paraense. Uma das acusações, a de assédio sexual, caiu em seguida, mas já tinha cumprido o objetivo de desqualificar o padre diante de parte da população de Anapu e da região.
As 16 cruzes e nomes, segundo a Comissão Pastoral da Terra, correspondem aos mortos por conflitos de terra apenas em Anapu, de 2015 até hoje. Exceto um punhado de homens e mulheres com as mãos escavadas pela enxada e os pés marcados pela dureza do caminho, ninguém mais parece revoltar-se contra a execução desses brasileiros pobres: Edinaldo Alves Moreira (05/07/2015), Jesusmar Batista Farias (11/08/2015), Cosmo Pereira de Castro (23/08/2015), Hercules Santos de Souza (17 anos, 10/10/2015), José Nunes da Cruz (“Zé da Lapada”, 27/10/2015), Claudio Bezerra da Costa (“Ivanzinho”, 31/10/2015), Wislen Gonçalves Barbosa (17/11/2015), José de Nascimento (“Jacaré”, 20/04/2016), Lourinho (20/04/2016), Marrone Gomes da Conceição (16 anos, 08/06/2016), Antônio Pereira Queiroz (“Titela”, 08/06/2016), Parazinho (desaparecido em 2016, considerado morto pelas organizações), Jhonatan Alves Pereira dos Santos (“Jhon”, 26/07/2017), Valdemir Resplandes dos Santos (“Muletinho”, 09/01/2018), Gazimiro Sena Pacheco (“Gordinho”, 09/01/2018), Leoci Resplandes de Sousa (03/06/2018).
Em 24 de julho, a organização britânica Global Witness (Testemunha Global) divulgou o relatório chamado “A que custo” (aqui a versão em português). O ano de 2017 foi o mais perigoso no mundo para defensores da terra ou do meio ambiente. O Brasil é o país mais letal para esses lutadores, com 57 dos 207 assassinados. Hoje, não existe no planeta nenhum lugar mais perigoso para quem luta pela terra ou pelo meio ambiente do que o Pará, o mais mortal entre todos os estados brasileiros.
Na análise da Global Witness, as causas do descontrole, da violência e das mortes, 80% delas ocorridas na Amazônia, se devem às ações e omissões programadas do governo de Michel Temer (PMDB): “No Brasil, a situação vai de mal a pior. O presidente sistematicamente enfraqueceu a legislação, as instituições e orçamento que poderiam apoiar os povos indígenas, prevenir conflitos de terra e proteger os defensores dos direitos humanos. Ele distorceu ainda mais o equilíbrio de poder em favor dos grandes negócios e deixou os ativistas mais vulneráveis do que nunca”. O governo sem credibilidade de Michel Temer contestou o relatório da organização alegando justamente... falta de credibilidade.
Pela primeira vez, segundo o relatório da Global Witness, “o agronegócio superou a mineração como o setor mais perigoso” para uma pessoa ou grupo se opor aos seus interesses: 46 dos 207 defensores executados no mundo, 12 dos 57 assassinados no Brasil estavam ligados a essa área. “O número de pessoas mortas enquanto protestavam contra a agricultura mais do que duplicou em comparação a 2016”, afirma a organização.
É necessário ter cuidado ao tratar o “agronegócio” – e mais ainda a “agricultura” – como um setor predatório em si. É importante diferenciar quem são os “fazendeiros” e quem são os “grileiros”. Embora em parâmetros históricos toda propriedade privada da terra seja uma expropriação, há uma diferença entre aqueles que estão produzindo dentro de alguma legalidade e aqueles que invadem terras de comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas, assim como terras destinadas a projetos agrários. Estes últimos se apropriam de terras públicas pela força da pistolagem, muitas vezes com o apoio da polícia e de setores corrompidos do judiciário e dos cartórios.
Mas toda vez que um grileiro é chamado de “fazendeiro”, e a grilagem é chamada de “agronegócio”, a origem criminosa é apagada e seus protagonistas são promovidos a uma atividade bem vista e valorizada em nações jovens como o Brasil, assim como nos demais países da América Latina. O fazendeiro e o agricultor costumam ser decodificados pelo senso comum como pioneiros e desbravadores, em especial quando alcançam o norte. Isso faz deles um elemento da construção da identidade do país. Quando generalizados como bandidos pelas organizações, a luta pelo meio ambiente não só perde apoio no conjunto da população mas também possíveis aliados, criando uma tensão desnecessária.
Neste sentido, a comunicação de parte das organizações comete um erro de informação e também estratégico. É semelhante ao que acontece com a “bancada ruralista” no Congresso. Quantos daqueles deputados são fazendeiros ou agricultores ou criadores de gado que atuam na legalidade? Qual é a história factual e jurídica de suas propriedades? Qual é o seu passado? E o seu presente? Quem são seus reais financiadores? A qual lobby de fato estão a serviço? O que produzem concretamente para alimentar quase 208 milhões de brasileiros?
A palavra “ruralista” junta sob a mesma bandeira produtores que atuam na legalidade a grileiros, desmatadores e outros agrobandidos. Sob o jargão “ruralista” eles se legitimam diante de uma população que valoriza o trabalho no campo, mesmo quando o que fazem de fato não tem nem mesmo uma remota ligação com colocar comida na mesa da população. Ao contrário. Suas ações predatórias não apenas se apropriam do que é público, pelo caminho da corrupção e da força, mas também corrompem a terra, a água e o planeta que é a casa de todos, ameaçando justamente a produção de alimentos. Há, portanto, que se ter muito cuidado com as palavras. Grande parte dos agricultores brasileiros, homens e mulheres trabalhadores, possivelmente é contra o agrobanditismo que mancha seu nome de sangue.
No epicentro desse processo de privatização criminosa da terra pública na base da pistolagem (e mais recentemente das medidas provisórias e projetos de lei), com a omissão ou o apoio de instituições representantes do Estado, estão regiões como Anapu, um município de estimados 27 mil habitantes. A rua principal é a própria Transamazônica. Como todo barril de pólvora, à primeira vista parece apenas silencioso demais. E então a teia de mortes e os testemunhos vão desenhando um outro cenário: a trilha de cadáveres, hoje marcadas pelas cruzes da Romaria da Floresta, as casas dos pistoleiros, o endereço dos mandantes. Ao redor do pequeno núcleo urbano, há um intrincado mapa de propriedades rurais, terras griladas, milícias armadas, ocupações e assentamentos de camponeses.
A tensão é permanente, as mortes se sucedem. Para aumentar ainda mais a complexidade, nos últimos anos se formou um novo assentamento, o “Mata Preta”, formado por trabalhadores da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que já não tinham para onde voltar quando as obras diminuíram de volume, assim como operários que foram buscar trabalho na barragem, mas já não encontraram postos. As consequências do desplanejamento de Belo Monte ressoam em todo o canto e acirram conflitos históricos.
Três das 16 cruzes fincadas no chão pelos romeiros são da família Resplandes, hoje a mais ameaçada em Anapu: Hercules, de 17 anos, foi o primeiro, em 2015, Valdemir e Leoci, 29 anos, foram assassinados em 2018. Respectivamente sobrinho, irmão e filho de Iracy Resplandes dos Santos, 52 anos. Com a morte do irmão, Valdemir, ela se tornou uma das lideranças do lote 46 da Gleba Bacajá.
Na manhã em que os romeiros cravaram a cruz do filho assassinado no terreno de sua casa na cidade, bateram na porta de Iracy para dar o seguinte recado: “Vim avisar que vão matar mais dois da sua família”. Junto com ela, os netos de 11 e 8 anos, hoje órfãos de pai. Dias antes, uma moto já havia se atravessado diante da moto de uma sobrinha para dar recado semelhante. A questão é quanto tempo existe entre os avisos e a consumação do ato. “Meu nome não está na lista, mas o do meu filho também não estava e mesmo assim mataram ele”, diz Iracy. A normalidade com que os camponeses se referem à lista é um sinal de que o Brasil apodrece.
Iracy não diz quem foi, também não confia na polícia para proteger a família que lhe resta. Uma carta escrita a mão, em português sofrido, diz o seguinte: “Voce dona Resplandes tem muita corage você ta bricado com forgo você vai sem queima você vai pra o mesmo luga do seu irmão maletia”. Em outro ponto diz que ela está cavando a própria sepultura. E afirma que toda a família Resplandes vai morrer.
Só quem apoia Iracy e a família no município são outros camponeses, tão desamparados quanto ela, e as irmãs missionárias Jane Dwyer e Katia Webster, amigas e companheiras de Dorothy Stang, que dão continuidade ao trabalho no campo com enorme coragem pessoal. Com a repercussão internacional do assassinato de Dorothy, a situação se acomodou por alguns anos em Anapu. A grilagem sofreu alguns revezes e prejuízos financeiros com a presença mais ativa do Estado em toda a região. Assim, passou a mudar o modo de operação.
Segundo as missionárias, nos últimos anos os assassinatos deixaram de ser cometidos na zona rural e passaram ser executados na zona urbana, para dificultar a relação com os conflitos por terra. Desde que a bancada “ruralista” foi aumentando o poder de barganha no Congresso, a violência recrudesceu, acentuando-se no governo de Michel Temer. Qualquer sinal de Brasília é interpretado de forma muito literal em Anapu e outras regiões de conflito de terra na Amazônia: se os grileiros são anistiados e o roubo de terras legalizado, como aconteceu no governo Temer, a interpretação imediata é que há licença para se apossar de terras públicas, desmatar a floresta e matar quem estiver no caminho.
Quando o candidato à presidência da República Jair Bolsonaro (PSL) defende em discurso público a morte de agricultores sem terra pela polícia, ao referir-se às execuções de 19 pessoas no massacre de Eldorado de Carajás, ocorrido no sudoeste do Pará em 1996, e incita o público à violência, sem responder legalmente por isso, o efeito nas áreas de conflito da Amazônia também é imediato. Quando Bolsonaro grava um vídeo agradecendo o apoio a um amigo da região de Altamira, um grileiro que a maior parte da população sabe que está ligado ao consórcio da morte que executou Dorothy Stang, o que se entende é que no Brasil pode tudo. E quem pode mais pode mais do que tudo. E pode primeiro. Como a trilha de cruzes prova de maneira inequívoca.
A figura de Dorothy Stang, uma mártir que para os mais pobres começa a se tornar uma santa, é um forte elemento agregador para a população mais desprotegida. Junto ao seu túmulo, foi colocado o fusca branco por onde ela circulava pelos interiores. Sua memória hoje é uma força que age, esse corpo simbólico não pode ser morto. Jane e Katia são tão atuantes quanto Dorothy foi quando estava viva. Jane mais alegre, irônica e falante. Katia mais assertiva e reservada. Ambas muito fortes. E decididas a não recuar. “Não dá para viver com medo”, diz Jane, aos 79 anos, os olhos escuros quase saltando de tão vivos, a boca formando riso. Além da atenção do povo, a principal proteção na casa de madeira onde vivem, permanentemente vigiada por seus inimigos, é uma cachorra de nome Pitica. Ela é famosa por atacar apenas homens – e diretamente nos pontos mais sensíveis: o pinto e o saco.
Antes, as missionárias ainda acompanhavam os mais desamparados à polícia para apoiá-los em suas denúncias. Hoje, a situação em Anapu está de tal modo explosiva que sua presença é usada para criminalizar os camponeses. Em junho, o Vaticano divulgou um documento no qual sugere a possibilidade de conferir às mulheres algum tipo de “ministério oficial” na Amazônia, entre outras iniciativas para enfrentar a escassa presença católica numa região de 7,5 milhões de quilômetros quadrados, a maior parte deles no Brasil. É visível a olho nu que os católicos estão perdendo espaço em ritmo acelerado para os evangélicos neopentecostais também na Amazônia.
O que é preciso contar ao Papa, como já escrevi, é que, se a Igreja Católica ainda tem relevância na floresta, isso se deve em grande parte a uma rede de missionárias que estão na linha de frente em todos os lugares onde há conflitos de terra e que têm muito menos apoio e proteção do que deveriam. Em geral menos vaidosas e autocentradas que os sacerdotes, que gozam de mais privilégios e status, elas demonstram ser mais imunes às tantas tentações e armadilhas que as rondam por todos os lados, além de provar grande capacidade de articulação política.
A situação, que já era grave em Anapu, se acirrou em 2018 com a prisão de Padre Amaro Lopes, em 27 de março, e com o assassinato de Luciano Fernandes, em 19 de maio. Autodeclarado “fazendeiro”, fontes na região afirmam que a vítima era “grileiro de terras”. A família Fernandes é muito conhecida numa área marcada por conflitos agrários e exploração ilegal de madeira. Ao morrer, Luciano Fernandes foi apresentado pela imprensa regional como “empresário e pioneiro da região da Transamazônica”. Setores tentaram ligar a morte de Fernandes com o movimento social de luta pela terra e com o próprio Padre Amaro Lopes.
Um vídeo ameaçador, responsabilizando a Igreja Católica (e até o Papa Francisco), assim como lideranças do movimento social da região do Xingu, foi amplamente divulgado pelo YouTube, Twitter, Facebook e WhatsApp, multiplicando a tensão e expandindo-a. A Delegacia Especializada em Conflitos Agrários (DECA), porém, acredita que a morte deste membro da conhecida família Fernandes foi provocada por desavenças na exploração de madeira. “Apesar de ele ser um combatente das invasões de terra, a gente ainda não conseguiu caracterizar situação de conflito agrário. O suposto mandante, Tarcísio (Oliveira Pereira, madeireiro), está preso preventivamente. Porém, a ligação que o Tarcísio tinha com o Luciano não era de conflito agrário. E sim de conflito por madeira”, afirma o delegado Flávio Amaral, titular da DECA, à repórter Solange Azevedo, para o El País Brasil. “O Tarcísio estava extraindo madeira de forma ilegal das terras do Luciano. Teve uma desavença muito séria e acreditamos que isso motivou o assassinato. Mas não posso dar outros detalhes.”
O delegado chama a situação de Anapu e região de “Guerra Fria”, as ocupações de sem-terra de “invasões” e o outro lado de “produtores rurais”: “Existe uma tensão, os conflitos existem e as invasões continuam. É o que a gente chama de Guerra Fria. Tem um produtor rural, e ele sabe que a terra dele foi invadida. Mas a área de pasto e extração de madeira foi preservada. Aí fica aquela Guerra Fria – cada um de um lado”.
Diante do pedido do El País sobre o número oficial de homicídios ocorridos em Anapu, uma informação básica para qualquer linha de investigação, a Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social do Pará respondeu na semana passada: “Informa que a solicitação foi encaminhada para a Secretaria de Inteligência Criminal, setor responsável pelas estatísticas. Tal demanda não poderá ser atendida dentro do deadline informado, pois requer um prazo maior para a verificação de dados. Em relação aos homicídios resultantes de conflitos agrários em Anapu, não há um levantamento específico que demonstre em números percentuais essa informação. Seria preciso fazer um levantamento, com base nas conclusões dos inquéritos policiais, mas isso demandaria tempo”.
Parte da polícia paraense tem vínculos estreitos com páginas sensacionalistas nas redes sociais e programas policialescos sensacionalistas na TV, por onde desfilam fotos de cadáveres de “bandidos”, assim como de vítimas mortas e ensanguentadas, lembrando o perturbador filme O abutre (Dan Gilroy). Nestas “coberturas”, as informações são sempre abundantes. Diante de pedidos formais do El País, os delegados sempre “acabaram de chegar na cidade” e nunca podem afirmar o que está acontecendo, porque aparentemente a memória da instituição se esgota nos indivíduos. Como costuma ironizar uma experiente repórter de polícia, se os dados fossem positivos, os policiais do Pará recitariam de cor desde o ano de 1500.
Entre forças poderosas, o corpo dos mais frágeis se torna um alvo. “Hoje a situação em Anapu é mais perigosa do que no tempo em que a Dorothy foi assassinada”, afirma Irmã Jane. “São muito mais terras e um número muito maior de famílias. A pistolagem e a violência aumentam a cada dia.” Pergunto a ela se tem medo. Ela dá um sorriso luminoso: “Viver é risco!”. E segue seu caminho, sempre muito apressada.
Na manhã de 21 de julho, sábado em que os romeiros da floresta fincaram no chão a cruz do terceiro morto da família Resplandes, Iracy recebeu uma visita. “Me avisaram que mais dois da minha família vão morrer”. Na semana anterior, a moto de uma sobrinha já tinha sido atravessada por outra moto no centro da cidade. Deram-lhe então o aviso de que seu pai e irmão seriam os próximos. Vindos do sul do Estado, os Resplandes andam pelo Pará há décadas em busca de um pedaço de chão para plantar. No caminho, foram sofrendo uma diáspora familiar, em Anapu começaram a ser executados. Contém no seu corpo o DNA do Brasil. E a marca de uma reforma agrária jamais realizada, nem mesmo nos governos de Lula e de Dilma Rousseff.
Iracy decidiu deixar tudo para trás. E botar o pé no trecho mais uma vez com seus filhos e netos, sem nada além do desejo de ficar viva e de nunca mais sepultar um filho morto à bala. “Vocês não sabem quanto custa a dor de enterrar um filho. Meu filho ia pra roça mais eu. Hoje amanhece o dia e chega a tarde e eu não vejo mais meu filho mais eu. A gente não pode fazer nada porque a gente é pobre. A gente veio pra Anapu pra morar, não pra morrer. E a gente não veio pra matar. Não somos matadores. Então vamos embora”. Pra onde? “Não posso dizer, se não nos alcançam.”
A injustiça contra os pobres mais uma vez prevaleceu no Brasil.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Massacre anunciado na Anapu de Dorothy Stang - Instituto Humanitas Unisinos - IHU