15 Fevereiro 2024
"Irmã Dorothy chegou 1982 na Prelazia do Xingu e viu de perto o frenesi das derrubadas em grande escala. E desde que chegou falou e não mediu esforços, querendo convencer a quem ouvia sua vozinha mansa – mansa era apenas sua voz – de que, num futuro bem próximo, frequentes calamidades em cada vez maiores proporções serão consequência das violentas agressões de homens insensatos à natureza", escreve Dom Erwin Kräutler, bispo emérito do Xingu em artigo enviado diretamente ao Instituto Humanitas Unisinos — IHU, 12-02-2024.
Neste dia 12 de fevereiro completam-se 19 anos da morte da Irmã Dorothy Stang. Naquele sábado, bem cedo de manhã, em 2005, Irmã Dorothy foi assassinada com seis tiros à queima-roupa numa estrada do interior de Anapu, município da Transamazônica no Estado do Pará. Tinha 73 anos de idade.
Quem derramou o seu sangue pela causa mais nobre, o Reino de Deus, nunca pode ser esquecido. A memória dos mártires faz parte da história e liturgia de nossa Igreja. Esquecer os mártires é ignorar o Sangue derramado do próprio Senhor Jesus, o Mártir por excelência de toda a história. O martírio é a doação total e irrestrita em favor do Reino de Deus, levada até as últimas consequências. É amar até o fim (cfr. Jo 13,1). Pode haver diversas razões, mas o motivo que leva ao martírio é sempre o mesmo: o amor maior!
Na minha homilia na Missa de Corpo Presente em 15 de fevereiro de 2005 contei o que soube dos últimos momentos da vida de Dorothy. Antes de ser assassinada, Irmã Dorothy abriu sua sacola de pano, cumprindo “ordem” de seus algozes que queriam saber se ela estava armada. Mostrou-lhes o que ela chamava de sua arma: a Bíblia Sagrada. Este seu gesto derradeiro é o último recado que Dorothy nos deixou. É sempre a Palavra de Deus que nos inspira e orienta em nosso caminho. "As armas com que combatemos não são humanas, o seu poder vem de Deus e são capazes de destruir fortalezas“ (2Cor 10,4).
Nas bem-aventuranças no Evangelho de Mateus (Mt 5,1-12) há várias que se referem explicitamente ao empenho em favor da promoção da justiça e da paz: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça” (v.6), “bem-aventurados os misericordiosos” (v.7), “bem-aventurados os que promovem a paz” (v.9), “bem-aventurados os que são perseguidos por causa de justiça” (v.10). E aos que arriscam a vida em favor da justiça, em favor da promoção humana, da dignidade humana, dos direitos humanos, é afirmado que “deles é o Reino dos Céus”.
E tem mais. São considerados especialmente bem-aventurados aqueles e aquelas que sofrem injúrias, perseguição, difamação, calúnia (v.12): “Alegrai-vos e regozijai-vos…” Como alguém pode regozijar-se, ficar alegre quando é perseguido, agredido naquilo que lhe é tão caro, o bom nome, a boa reputação? Há um detalhe significativo no texto sagrado: o motivo da alegria não são as agressões, as hostilidades em si, mas o sofrimento “por causa de mim”. Aí reside a razão profunda do martírio, do martírio do sangue derramado, mas também do martírio que é o testemunho de toda uma vida consagrada ao Senhor e seu Reino. Esse martírio pressupõe uma paixão sem limites como nos revela São Paulo: “Mas o que era para mim lucro tive-o como perda, por amor de Cristo. (…) Por ele perdi tudo…” (Fil 3,7-8). E esse Cristo se identifica com os “excluídos que não são apenas ‘explorados’”, mas considerados “’supérfluos’ e ‘descartáveis’” (Documento de Aparecida, 65).
Irmã Dorothy me pareceu uma “voz que clama do deserto” (Mc 1,3). O deserto não é uma imensidão de areia a se perder nos horizontes. Na Amazônia é a desgraça de homens sem dó nem piedade desertificarem o outrora inviolado mundo de selvas e águas em que, desde tempos imemoriais, habitavam os povos indígenas e posteriormente ribeirinhos que se alimentaram das frutas da floresta e viviam em paz com a natureza. Em nome de uma equivocada busca de progresso a qualquer preço, homens, apenas guiados pela expectativa de lucros imediatos, entendem “benfeitoria” como sinônimo de “pôr abaixo”, de derrubar e queimar a floresta. Esta perversidade se intensificou a partir da construção da Rodovia Transamazônica no início dos anos 70. Nunca esqueço o delírio do Presidente Medici e de sua comitiva, aplaudindo desvairados à derrubada de uma castanheira-do-pará. Entendiam o tombo fragoroso desta gigantesca árvore no chão previamente desnudado de sua vegetação como marco inaugural de uma nova era. Uma placa incrustada no tronco deveria lembrar o evento em termos bombásticos: “Nestas margens do Xingu, em plena selva amazônica, o Sr. Presidente da República dá início à construção da Transamazônica, numa arrancada histórica para a conquista deste gigantesco mundo verde”. Foi em 10 de outubro de 1970. Mas a placa de bronze permaneceu pouco tempo no tronco. Foi roubada! Ficou apenas o tronco, surrado pelas intempéries tropicais, como trágica recordação de que outrora uma exuberante selva cobria toda a região do Xingu.
Irmã Dorothy chegou 1982 na Prelazia do Xingu e viu de perto o frenesi das derrubadas em grande escala. E desde que chegou falou e não mediu esforços, querendo convencer a quem ouvia sua vozinha mansa – mansa era apenas sua voz – de que, num futuro bem próximo, frequentes calamidades em cada vez maiores proporções serão consequência das violentas agressões de homens insensatos à natureza.
Mataram a Irmã, calaram a sua voz profética, mas suas previsões se concretizam de ano em ano sempre mais, nas secas antes nunca vistas na Amazônia, com baixíssimos níveis dos rios e inundações desastrosas nos estados do sul e sudeste.
O que há décadas acontece na Amazônia é consequência do que conhecemos dos livros de história que descrevem as conquistas e invasões. A terra conquistada pelo país invasor se torna uma colônia ou província de que se pode arrancar tudo que nela houver ou se descobrir, sem o governo usurpador sentir-se obrigado a uma contrapartida, a não ser que seja para o próprio proveito. A Amazônia até hoje é considerada uma “província”: província mineral, província madeireira, província energética, última fronteira agrícola. A floresta é queimada e a terra arrasada para dar lugar à pecuária ou ao cultivo da soja e outros legumes. Os conflitos com os povos indígenas, os agricultores familiares e os ribeirinhos estão na ordem do dia.
Nos primeiros dois governos de Lula divulgaram-se percentagens mais moderados de deflorestação que nem sempre correspondiam à realidade. A questão ecológica ganhou sempre mais defensores na esfera internacional. Provou-se cientificamente que a Amazônia tem uma enorme importância para o equilíbrio climático do planeta. Diante das reclamações vindas do exterior Lula respondeu primeiro com irritação: “Nós precisamos mostrar ao mundo que ninguém mais do que nós queremos cuidar da nossa floresta. Mas ela é nossa! E que gringo nenhum venha meter o nariz onde não é chamado, que nós saberemos cuidar da nossa floresta e saberemos cuidar do nosso desenvolvimento". “Deus lhe ouça!” rezei, pedindo a Deus que finalmente se concretize a promessa de o Brasil cuidar das suas florestas.
A partir de 2018 o governo Jair Bolsonaro fez vistas grossas à legislação ambiental. Favoreceu a expansão de fazendeiros e madeireiros e estimulou o garimpo ilegal em áreas indígenas com todas as tétricas sequelas para a vida, mormente das crianças e adolescentes dos povos originários. Durante a pandemia o presidente adotou o mote do ministro Ricardo Salles: “passar a boiada”.
Lula, porém, prometeu no discurso de posse “desmatamento zero até 2030”: “Nossa meta é alcançar o desmatamento zero na Amazônia, a emissão zero de gases de efeito estufa na matriz energética, além de estimular o reaproveitamento de pastagens degradadas“ e acrescentou em relação aos povos indígenas: "Ninguém conhece melhor as nossas florestas, nem é mais eficaz em defendê-las, que os que estavam aqui desde tempos imemoriais. Cada terra demarcada é uma nova área de proteção ambiental". Lula foi aplaudido, e com razão, inclusive pela comunidade internacional, pois deu um basta ao desmonte ambiental de seu predecessor.
Mesmo assim ficam duas preocupações:
1- Desmatamento Zero até 2030? O prazo é muito longo e, se nos anos vindouros até 2030 as derrubadas e queimadas continuam no mesmo ritmo do ano 2023, milhões de hectares de floresta tropical serão varridos da face do planeta. Só no prazo de janeiro até novembro de 2023 foram constatados 93.945 incêndios na Amazônia brasileira. Mesmo que em relação aos 11 meses de 2022 (112.027) haja uma diminuição de 16 %, o fogaréu que se alastrou pela Amazônia foi apocalíptico. Quem esteve em Altamira, Pará, na segunda quinzena de outubro e na primeira de novembro lembra com horror essas semanas em que, além de extremamente forte calor, o povo foi condenado a respirar um ar poluído, tão nocivo à saúde especialmente de crianças, idosos e gestantes. E Altamira, mesmo sendo o maior município da Amazônia e do Brasil (159.500 km2), é apenas uma fatia desta Amazônia.
2- Mesmo que Lula aumentou os recursos para o IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) para poder fiscalizar com mais afinco madeireiros e fazendeiros e impedi-los a derrubar a floresta, todo o dinheiro não vai garantir o êxito almejado se no Congresso continua a vigorar o espírito de “passar a boiada”. A legislação ambiental fala de derrubada “ilegal” dando a entender que há uma derrubada “legal”, permitida pela legislação ambiental. É uma contradição! Se queremos chegar ao “desmatamento zero”, não pode existir uma derrubada “legal” e outra “ilegal”. Derrubar ou queimar a floresta é “crime ambiental” a ser punido severamente por sanções penais e administrativas.
Em todos os conflitos está em jogo a legislação ambiental brasileira e a própria Constituição Federal que garante a existência de terras fora do mercado capitalista, por exemplo áreas indígenas (Art. 232 e 233) ou parques nacionais. E é contra estes parâmetros constitucionais que o agronegócio e seus aliados sempre de novo se insurgem. Sua palavra de ordem é: “Nenhuma terra fora do mercado! Todas as terras devem ser usadas e aproveitadas para produzirem e gerarem rendimentos e lucros”. Quem defender o contrário: “Toda a terra é dom de Deus. Os povos indígenas, os quilombolas, os agricultores familiares, os ribeirinhos têm direito às suas terras ancestrais, chão sagrado de seus mitos e ritos e de sua própria subsistência, garantia de sua Vida, também em vista das futuras gerações” sempre correrá o risco de ser taxado de inimigo do progresso e desenvolvimento e, na pior hipótese, de ser “eliminado” como a Irmã Dorothy e tantos outros na Amazônia, por contrariar interesses e a ganância de quem vê na terra, na floresta, na água e até no ar meros artigos de negócio, de mercado, de transações para o proveito próprio ou de grupos, em detrimento de outras camadas sociais e, quase sempre, contra as mais elementares regras de cuidado com o meio ambiente. São dois projetos que estão em confronto: um a favor da terra para a Vida, o outro a favor da terra para o negócio.
Estou há quase 60 anos no Xingu e muitas foram as lutas em favor da dignidade e dos direitos humanos nessas seis décadas passadas. Em todas elas havia uma constante que saltava à vista. Foram as mulheres que tomaram a dianteira. Na época em que Altamira passou uma fase horrorosa por causa dos crimes que vitimaram crianças e adolescentes, as mulheres não apenas prantearam com as famílias os filhos vitimados, mas fundaram o “Comitê em Defesa das Crianças e Adolescentes de Altamira”. Existia em Altamira uma Círculo Operário e há também um Sindicato de Trabalhadores Rurais. Já que o empenho destes órgãos foi pouco eficiente, as mulheres tomaram a iniciativa de criar o “Movimento das Mulheres do Campo e da Cidade”. A grande maioria de conselheiros do Conselho Tutelar nos vários municípios do Xingu e da Transamazônica é continua sendo de mulheres.
Na Prelazia do Xingu surgiram após o Encontro dos Bispos da Amazônia em Santarém 1972 centenas de Comunidades Eclesiais de Base. Na sua maior parte elas foram e são até hoje dirigidas e coordenadas por mulheres. O mesmo se pode dizer dos Conselhos Paroquias e Pastorais e das equipes litúrgicas. Sem as mulheres a nossa Igreja em muitas regiões nem existiria sequer!
Especialmente no contexto da construção da hidrelétrica Belo Monte, muitas vezes me perguntei qual seria a razão profunda do protagonismo feminino em todos os protestos, manifestações e passeatas? Os homens de Altamira e municípios circunvizinhos sonharam dia e noite com chuvas de dinheiro e um aumento significativo de chances de empregos bem assalariados. Custou-lhes muito a se darem conta de que seus sonhos foram rasgados em pedaços e deixaram a amarga sensação de terem sido ludibriados com promessas que nunca seriam cumpridas. As mulheres, no entanto, foram desde o início mais “críticas” e não se deixaram enganar. Quando descobriram que as “condicionantes”, elencadas pelo IBAMA e a FUNAI, que deveriam ser cumpridas antes de iniciar a obra, só foram promessas para tranquilizar o povo, passaram a chamar Belo Monte de “Belo monstro”. Não hesitaram em denunciar a deterioração do rio e meio ambiente, o sumiço de vilas inteiras com a promessa de reconstruí-las em outras áreas, a descoberta de toneladas de peixes mortos e, na região, a falta de suficientes postos de saúde e assistência médica, insuficiência de unidades escolares, encarecimento de gêneros alimentícios, falta de saneamento básico, esgotos a céu aberto, aumento da criminalidade na cidade, poluição sonora, e outros itens indispensáveis para o bem-estar das pessoas e uma infraestrutura condigna para a vida urbana.
Creio que a mulher, seja ela mãe biológica ou não, é mais propensa a dedicar-se à “prole”, intui perigos e riscos, ameaças e violências, mas seu coração também pressente alegrias e vitórias. Não é mero instinto. É o entrelaçamento do espiritual e do emocional com o racional que é capaz de fazer desabrochar intuições que se situam além do raciocínio lógico de causa e efeito ou de uma conclusão das premissas em um silogismo aristotélico. Em outras palavras: as mulheres do Xingu raciocinam mais com o coração!
Irmã Dorothy foi assassinada, mas suas Irmãs de Notre Dame que conviviam com ela continuam o caminho, dedicando-se ao povo que ela não quis deixar entregue à própria sorte. No dia 2 de fevereiro de 2005, dez dias antes de ser morta falou ainda a um jornalista – e eu estava presente e ouvi o que ela disse: “Sei que eles querem me matar, mas não vou fugir. Meu lugar é aqui, ao lado dessas pessoas constantemente humilhadas por gente que se considera poderosa”.
Hoje são também leigas e leigos, mulheres e homens, jovens e pessoas idosas que se consagram à nobre causa pela qual Irmã Dorothy não hesitou de doar sua vida. O entusiasmo se manifesta no refrão, repetido ano após ano, sempre de novo, pelo povo reunido nas Santas Missas de aniversário de sua morte: “Dorothy vive, vive! Para sempre!”
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Reflexões para o 19º aniversário de morte da Irmã Dorothy Mae Stang. Artigo de Dom Erwin Kräutler - Instituto Humanitas Unisinos - IHU