Assassinada no dia 12 de fevereiro de 2005 na comunidade de Anapu, Estado do Pará, região da TransAmazônica, a missionária norte-americana acreditava na reconexão da natureza para garantir um futuro comum
Chico Mendes, Dorothy Stang, Bruno Pereira e Dom Phillips dão nomes à tragédia amazônica que não para de se repetir, apesar da distância de tempo que separa as mortes. As mãos que há décadas lavam o dinheiro oriundo de práticas, têm, de um lado, a conivência de parte das autoridades que deveriam fiscalizar e combater o crime e, de outro, o rastro de sangue e horror de suas incontáveis vítimas. A vida, do bioma e dos povos nativos e ribeirinhos, funciona para os diferentes explorados como um recurso inesgotável, no entanto, cada vez mais perto do fim.
Dorothy Stang nasceu em 1931, em Dayton, Ohio, Estados Unidos. Religiosa da Congregação das Irmãs de Notre Dame de Namur, chegou ao Brasil nos anos 1960 e na Prelazia do Xingu 1982. A região vivia um boom de migração e exploração causada pela abertura de estradas durante a ditadura militar e o projeto de desenvolvimento predatório, o que acirrava os conflitos na região.
“A irmã Dorothy desempenhou seu trabalho diretamente nas comunidades amazônicas, reconhecendo a realidade marcada pela desigualdade e pelas relações construídas pela exploração da floresta e das populações empobrecidas, indígenas, ribeirinhos e trabalhadores”, contaram os colegas da equipe de Teologia do IHU em matéria especial sobre a religiosa, publicada em 2019.
“No dia 12 de fevereiro de 2005, numa estrada de chão do acampamento de Boa Esperança, em uma zona rural do Pará, dois matadores de aluguel dispararam seis tiros e mataram a Irmã Dorothy… Quando os atiradores se aproximaram da Irmã Dorothy, ela tirou sua Bíblia da bolsa e começou a ler as Bem-aventuranças: Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça”. Dessa forma, as colegas de missão de Dorothy Stang contam sobre seu martírio.
A forma como a missionária morreu, segundo Dom Erwin Kräutler, bispo emérito do Xingu e amigo desde 1982 da religiosa, é uma ação provocadora. “Este seu gesto derradeiro é o último recado que Dorothy nos deixou. É sempre a Palavra de Deus que nos inspira e orienta em nosso caminho”, escreveu em artigo.
Seu martírio não está vinculado ao Vaticano ou a sua santificação, mas ao clamor popular daqueles que enfrentam no dia a dia as ameaças, a fome e a miséria que se fazem presentes na floresta. O martírio da Irmã Dorothy está presente nas narrativas das comunidades da Amazônia que vivenciaram sua presença e seu trabalho, cuja morte é “ressignificada como vida, o que quer dizer que ela continua ‘presente na luta e na caminhada’”, salientou o antropólogo Edimilson Rodrigues de Souza. Para ele, “a condição de martírio se explica pelo assassinato planejado e violento, interpretado como uma doação da própria vida em prol das causas dos povos da floresta”.
Túmulo da Irmã Dorothy (Foto: MST)
A importância de lembrarmos aqueles que tiveram suas vidas arrancadas porque lutavam por um futuro mais digno e justo é crucial para mantermos vivos os ideais de um mundo menos brutal. Dom Erwin Kräutler acredita que “quem derramou o seu sangue pela causa mais nobre, o Reino de Deus, nunca pode ser esquecido. Esquecer os mártires é ignorar o Sangue derramado do próprio Senhor Jesus, o Mártir por excelência de toda a história. O martírio é a doação total e irrestrita em favor do Reino de Deus, levada até as últimas consequências”.
Por isso, todos os anos, no dia 12 de fevereiro, agricultores familiares, assentados e posseiros de Anapu se reúnem em torno do túmulo da irmã para marcar a data do seu martírio. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) organiza anualmente, desde julho de 2005, a Romaria da Floresta, em homenagem à trajetória da missionária, ocasião em que se faz denúncia pública das ameaças e dos assassinatos de lideranças camponesas em Anapu. A romaria percorre 55 quilômetros entre o túmulo e o local onde ela foi assassinada. Também atos públicos acontecem para marcar a passagem do assassinato de Dorothy Stang.
Prestes a completar 20 anos, o martírio da Irmã Dorothy Stang será lembrado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU durante os doze meses de 2025. Em cada mês, Felício Pontes Jr., Procurador da República junto ao Ministério Público Federal, em Belém, e assessor da Rede Eclesial Pan-Amazônica – Repam, publicará uma carta em memória à religiosa.
Felício Pontes Jr. era amigo da irmã Dorothy e como procurador segue os seus passos, atuando nas causas defendidas pela missionária. Em entrevista à IHU On-Line, em 2009, ao lembrar do trabalho da missionária, ele a classificou como “o Anjo da Amazônia”. “Tudo que ela tentou estabelecer foi o desenvolvimento integral dos povos da floresta. Isso implica também na relação do homem com a natureza”, disse na ocasião.
Em seu primeiro texto, que será publicado amanhã, o assessor da Repam relembra uma das frases marcantes da irmã Dorothy: “precisamos nos reconectar com a Mãe Terra”. Lutando contra o projeto de desenvolvimento predatório da Amazônia, o pensamento da irmã já se adiantava ao conceito que hoje conhecemos como Ecologia Integral, pontua Pontes no texto.
Irmã Dorothy (Foto: Reprodução - Twitter)
Dorothy Stang também dizia: “nós passamos poucas décadas aqui na terra. Use cada dia para levar alegria, não ganância, à nossa terra exaurida, tão cheia de angústia”. Passados 20 anos da sua morte, suas palavras continuam ainda atuais.
A crise climática que vivenciamos, com uma Amazônia cada vez mais seca ano a ano e uma completa desregulação do regime de chuvas, evidencia que os ideais da religiosa estavam certos. Por termos abandonado a conexão com a terra, como defendia a missionária, agora enfrentamos uma batalha que pode colocar fim à espécie humana.
Irmã Dorothy deixou um legado de ação pastoral transformadora. Sua voz profética serve de inspiração para aqueles que continuam lutando em defesa da Amazônia.
Com suas sementes e memórias plantadas no Brasil, “Dorothy vive, vive! Para sempre!”.