Cartas de Irmã Dorothy - 4. Artigo de Felício Pontes Jr

Arte: Marcelo Zanotti | IHU

16 Abril 2025

"Não tardaria para que a ditadura se ocupasse das Irmãs de Notre Dame de Namur", recorda Felício Pontes Jr., em sua quarta carta de memória aos 20 anos do martírio de Irmã Dorothy Stang, que foi celebrado no dia 12 de fevereiro de 2025.

martírio da Irmã Dorothy Stang será lembrado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU durante os doze meses de 2025. Em cada mês, Felício Pontes Jr., Procurador da República junto ao Ministério Público Federal, em Belém, e assessor da Rede Eclesial Pan-Amazônica – Repam, publicará uma carta em memória à religiosa.

Felício Pontes Jr. era amigo da irmã Dorothy e como procurador segue os seus passos, atuando nas causas defendidas pela missionária. Em entrevista à IHU On-Line, em 2009, ao lembrar do trabalho da missionária, ele a classificou como “o Anjo da Amazônia”. “Tudo que ela tentou estabelecer foi o desenvolvimento integral dos povos da floresta. Isso implica também na relação do homem com a natureza”, disse na ocasião.

Eis o artigo. 

Irmã Dorothy chegou ao Brasil em 1966, em plena ditadura militar. Sua primeira missão foi em Coroatá/MA. A pequenez do lugar daria a falsa impressão de que os efeitos do regime ditatorial não seriam tão sentidos. Ledo engano. Ao se colocar ao lado dos(as) camponeses(as), atraiu para si a ira dos latifundiários – que detinham o poder econômico e influenciavam o poder político.

Dois padres da região haviam sido presos e torturados: Antônio José e Xavier Maupeou d’Ableiges (posteriormente, Bispo da Arquidiocese de São Luís do Maranhão). A acusação era de subversivos. Na verdade, estimulavam a criação de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).

Uma carta de Irmã Dorothy sintetizava o trabalho de religiosas e religiosos naquele tempo:

“Nos fins de semana, nós costumamos ir a várias pequenas comunidades do interior. Vamos à busca de seus líderes. Em cada lugar, tentamos encontrar algumas pessoas que se dispõem a ajudar a comunidade, convidando para reunião, entoando cânticos, lendo e refletindo a Bíblia. As lideranças se tornam responsáveis por isso. Alertamos para que as reuniões não aconteçam na casa de algum latifundiário. Os encontros e as missas têm lugar na casa das lideranças. Outra coisa que fazemos é ir nas comunidades pela tarde. Visitamos as casas e organizamos encontros de jovens, mulheres e homens. Depois do encontro de cada grupo, juntamos todos os grupos. Como refletiram sobre a mesma passagem bíblica, partilham a reflexão. É muito bom, especialmente para as mulheres porque nos demais encontros comunitários apenas os homens falam. No dia seguinte, a missa é baseada na passagem bíblica estudada no dia anterior. A missa se torna realmente uma celebração comunitária, baseada na vida e no sentimento das pessoas”.

Não tardaria para que a ditadura se ocupasse das Irmãs de Notre Dame de Namur. Um militar entrou na casa delas portando um exemplar da Revista Time. Nela continha uma reportagem sobre a tortura de religiosos e religiosas, com citação ao padre Antônio José. O oficial disse que a revista mentia. Irmã Júlia (Jo Anne Depweg), única que se encontrava na casa naquele momento, respondeu que viu as marcas de tortura no padre. A partir de então, o oficial fez várias visitas à casa das Irmãs.

Porém, a construção das CEBs era um fato, tanto assim que a festa de Pentecoste se tornou um evento anual na sede do Município. Centenas de pessoas de todas as comunidades vinham para participar da missa, seguida da procissão.

Na noite do dia 5 de agosto de 1970 – dia da chegada da Irmã Rebeca Spires à Coroatá para fortalecer o trabalho – o Centro Pastoral foi alvejado por tiros de revólver. Na ocasião, havia um encontro de mulheres camponesas e uma reunião de líderes para discutir a formação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. As Irmãs souberam que houvera o ataque um pouco antes. Colocaram as pessoas na garagem para melhor proteção e só as retiraram ao amanhecer. Porém, Irmã Dorothy, arriscando-se, deixou o Centro Pastoral às 10 horas da noite ao saber que uma mulher precisava de ajuda para dar a luz.

Numa carta para a Congregação nesse mesmo ano, Irmã Dorothy informa o risco “natural” de sua missão em uma terra onde havia o que hoje chamamos de trabalho análogo à escravidão:

“Vocês mencionaram que nós, como Maria, temos a missão de levar Jesus ao mundo. Quando a Irmã Mary [Linscott] esteve aqui, em maio, eu senti que era missão dela ver como nós desenvolvíamos a tarefa de levar Cristo ao nosso povo – se estávamos levando toda a mensagem do Cristianismo. Tenho certeza de que vocês sabem que, quando alguém está cercado pela miséria, há uma tendência de ajudá-los no reconhecimento de seus direitos como filhos de Deus. Esse reconhecimento leva-os a um estado de revolta. Ajudá-los a reconhecer suas obrigações e responsabilidades ao mesmo tempo é difícil, mas é muito necessário se queremos líderes cristãos”.

Confira a versão em áudio do Especial Irmã Dorothy Stang – 20 anos de martírio e profecia.

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