02 Abril 2024
Ao facilitar e estimular a outorga de títulos de domínio sem que sejam aferidas as condições de reprodução econômica do assentamento, o que o governo faz é se isentar de um eixo estruturante da reforma agrária: as políticas de infraestrutura e apoio para que os agricultores produzam e permaneçam na terra.
A opinião é de Julianna Malerba e Paula Máximo, em artigo publicado por Le Monde Diplomatique Brasil, 22-03-2024.
Julianna Malerba é assessora da FASE e membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental.
Paula Máximo é professora do Departamento de Direito da PUC Rio e doutoranda na mesma instituição.
Na tentativa de conciliar demandas dos distintos setores agrários, o primeiro governo Lula, ao passo que colocou em prática políticas de reforma agrária e desenvolvimento rural voltadas à pequena produção familiar, destinou um enorme esforço estatal para criar condições para a expansão e fortalecimento do agronegócio primário-exportador. De fato, a primeira década dos anos 2000 registrou um dos maiores índices de criação de assentamentos de reforma agrária e de políticas públicas voltadas ao fortalecimento da produção e qualidade de vida dos assentados e dos agricultores familiares. Ao mesmo tempo, o período foi marcado pela retomada da especulação fundiária, aumento do preço da terra e consolidação da financeirização e internacionalização do agronegócio.
Não por acaso, a partir de 2010, as entidades representativas do agronegócio passaram a explicitamente atacar os instrumentos e políticas de democratização do acesso à terra e a demandar políticas de regularização fundiária e ambiental que validassem ocupações ilegais de terras públicas e áreas desmatadas ilegalmente. Na esteira desse processo, em 2009, foi criado o Programa Terra Legal (Lei nº 11.952) com o intuito de acelerar o processo de regularização fundiária de terras públicas federais que tenham sido ocupadas na Amazônia Legal antes de dezembro de 2004. Em 2012, já sob o governo Dilma, o Código Florestal foi alterado a fim de reduzir as regras de proteção socioambiental a que estão submetidos os imóveis rurais e regularizar áreas desmatadas ilegalmente. Ambas as iniciativas, ao criarem condições para privatização de terras públicas e regularização ambiental de áreas desmatadas, visavam atender às exigências de um mercado cada vez mais ávido por um acesso estável e legal à terra e bens naturais.
Desde então, se intensificam as tentativas de liberar terras públicas ao mercado. Isso porque, a histórica ausência de uma política efetiva de reforma agrária e ordenamento territorial faz com que o país ainda possua milhares de hectares de terras devolutas – terras presumidamente públicas, embora seus limites exatos e localização ainda não sejam conhecidos pelo poder público. Estima-se que pelo menos 17% do território brasileiro têm domínio ou propriedade desconhecidos pelo Estado. O fato de serem devolutas não significa que essas terras estejam vazias. A maior parte delas tem sido historicamente ocupada por agricultores(as) familiares e povos e comunidades tradicionais, excluídos do acesso estável à terra, e são pressionadas permanentemente pela grilagem de terras públicas, geralmente acompanhada de desmatamento, fraude de documentos e violência contra as comunidades que tradicionalmente as ocupam.
Ao mesmo tempo, a Constituição Federal de 1988 estabelece que a destinação de terras públicas deve atender aos propósitos de democratização do acesso à terra e à criação de espaços ambientalmente protegidos. Concretamente isso significa que dentre as prioridades de destinação das terras públicas estão: as políticas de reforma agrária e de reconhecimento de direitos territoriais a povos indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais e de proteção ambiental. Essas destinações as mantêm – de forma temporária ou permanente – fora do mercado, como terras públicas designadas à conservação ambiental e/ou ao usufruto dos seus destinatários (assentados da reforma agrária, povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais). Um dos objetivos, ao retirá-las do mercado, é garantir maior segurança fundiária a esses sujeitos e, assim, evitar que, sob pressão de interesses econômicos, percam suas terras.
Se por um lado o regime fundiário constitucional prevê a desmercantilização de uma parcela das terras no país, desde a vigência da atual Constituição, a política econômica e de desenvolvimento priorizou o fortalecimento de setores – empresas de mineração e agronegócio, fundos de investimento, governos – que têm na terra um importante ativo econômico e financeiro. A isso soma-se o fato de que, nos últimos quinze anos, a terra foi o ativo que apresentou maior valorização: entre 2009 e 2014, os preços médios da terra no Brasil cresceram 95%, com destaque para o Centro-Oeste, onde esse índice chegou a 130%, coincidindo com a expansão da fronteira agrícola que avança em direção à Amazônia e ao Cerrado Nordestino[1]. No Tocantins, por exemplo, a média de valorização do preço da terra, entre 2003 e 2018, foi de 273%.
Esse cenário explica as sucessivas tentativas de liberar terras públicas ao mercado. Um fenômeno que logo alcançou os assentamentos de reforma agrária: primeiro a partir da desaceleração das ações de criação de assentamentos e de desapropriações de terras para fins de reforma agrária; e, na sequência, com a condução da titulação para o centro da política de reforma agrária.
Apesar do início de um novo governo, pelo terceiro ano consecutivo a União não realizou nenhuma ação de desapropriação para criação de novos assentamentos, mantendo paralisada, portanto, estratégias de redistribuição de terras em um país onde a concentração da propriedade é altíssima.[2] Essa paralisia representa o ápice de um processo que, desde 2010, começa a ocorrer por meio da diminuição progressiva no número de assentamentos criados e na redução orçamentaria do Incra para seu desenvolvimento.[3] Enquanto isso, um conjunto de mudanças normativas ocorreram, criando as condições legais para acelerar e operacionalizar a titulação nos assentamentos.
A titulação dos assentamentos é uma etapa da reforma agrária prevista na Constituição de 1988. Era pouco adotada, porque os assentamentos não cumpriam os requisitos mínimos para a titulação, que previa a aplicação de políticas públicas que garantissem o desenvolvimento do assentamento como um passo anterior à entrega do título. Antes, o Incra só emitia títulos aos assentados depois de comprovar a autossuficiência dos assentamentos com o objetivo de justamente evitar que essas terras voltassem rápido ao mercado e gerassem reconcentração fundiária. Uma série de transformações normativas e na estrutura do órgão flexibilizaram essas regras e conduziram a titulação para o centro da política de reforma agrária.
As leis agrárias estabeleciam que a titulação definitiva dos assentamentos poderia ser feita por dois instrumentos: Título de Domínio (TD), que transfere a propriedade da terra para o beneficiário, e a Concessão de Direito Real de Uso (CDRU), que mantém a propriedade sob domínio público e transfere ao beneficiário o direito real de uso da terra. Alterações legais[4] levaram à priorização da transferência da propriedade da terra para as famílias por meio da emissão de TD em detrimento de outros instrumentos jurídicos que garantem a segurança da posse, como o CDRU.
Além dos mecanismos de titulação, foram realizadas mudanças estruturais na política de reforma agrária, tais como: o procedimento de desapropriação de terras para fins de reforma agrária passou a prever hipóteses nas quais a indenização poderia ser paga em dinheiro,[5] o que explica, em parte, a paralisação dessa importante política para desconcentrar a terra; A seleção das famílias passou a ser definida por edital público[6], em vez de priorizar as famílias acampadas, reduzindo o caráter coletivo da luta pela terra; Foram reduzidas as obrigações estatais de investimentos em políticas de desenvolvimento dos assentamentos (aplicação de créditos e investimentos em infraestrutura) que garantiriam que os assentamentos estariam suficientemente fortes, em termos de produção e infraestrutura, para não serem desestruturados pela pressão do mercado de terras;[7] A legislação impunha limites para a negociação dos lotes, a fim de evitar justamente a desestruturação do assentamento pela pressão do mercado. No entanto, mudanças legais reduziram o tempo em que o lote não pode ser negociado,[8] ampliaram as possibilidades de incorporação dos lotes a outros imóveis rurais[9] e viabilizaram a venda dos lotes a pessoas que não cumprem os requisitos de beneficiário da reforma agrária.[10]
Ao facilitar e estimular a outorga de títulos de domínio sem que sejam aferidas as condições de reprodução econômica do assentamento, o que o governo faz é se isentar de um eixo estruturante da reforma agrária: as políticas de infraestrutura e apoio para que os agricultores produzam e permaneçam na terra.
Apesar disso, o que assistimos foi o aumento exponencial da entrega de títulos definitivos aos assentados nos últimos anos e uma redução progressiva das demais políticas e iniciativas de desenvolvimento e fortalecimento dos assentamentos e da reforma agraria. Entre 2003 e 2015, em um intervalo de doze anos, foram emitidos 22.729 títulos de domínio para assentados da reforma agrária, somente durante o governo de Jair Bolsonaro foram emitidos quase 60.000 títulos de domínio. Isto é, a cada ano do governo Bolsonaro foi entregue um montante de títulos quase igual ao número de títulos entregues durante todo o período anterior (2003-2015).
Diante desse cenário de fragilização da política, impulsionado pela denúncia dos movimentos sociais e setores da sociedade civil, em 2023, já no governo Lula, foram realizadas mudanças pontuais no procedimento de titulação dos assentamentos.[11] Essas modificações, de um lado, apontam para o reconhecimento do governo federal da necessidade de revisar o quadro normativo da reforma agrária e, de outro, revelam a insuficiência de incidências pontuais que não reflitam a complexidade da política de reforma agrária.
Para que isso fosse possível, na sequência das alternações normativas mencionadas, durante o governo Bolsonaro foi criado o Programa Titula Brasil. O Programa opera por meio da realização de acordos de cooperação técnica entre o Incra e os municípios, os quais transferem determinadas competências do instituto para os municípios executarem, como georreferenciamento, verificação de documentos etc. Os movimentos sociais do campo têm criticado a municipalização dessas ações por entenderem que colocam os assentamentos sob a lógica dos poderes políticos municipais, gerando um enfraquecimento da política. Até dezembro de 2022, foram assinados 669 acordos de cooperação técnica (ACT) entre o Incra e os municípios. Embora criado na gestão Bolsonaro, o programa se mantém ativo, e, em 2023, foram firmados cinco ACTs.[12]
O Programa Titula Brasil foi precedido da criação do Núcleo de Inteligência e Planejamento, em 2019, no âmbito do Incra, com o objetivo de identificar as pendências para a titulação dos assentamentos e organizá-los em um ranking de prioridades para a titulação. Esse ranking informaria a atuação das superintendências regionais nas ações de titulação. O grupo identificou 7.687 assentamentos passíveis de titulação, classificando-os de acordo com o grau de cumprimento dos requisitos legais para titulação. Desse montante, 670 cumpririam todos os requisitos para titulação, o que representaria o retorno de uma área de mais de 3,5 milhões de hectares para o mercado de terras. Em um cenário em que todos as pendências fossem sanadas, e todos os 7.600 assentamentos fossem titulados, mais de 44 milhões de hectares voltariam ao mercado de terras.
O esvaziamento das demais políticas de reforma agrária e a ênfase na titulação individual deixam claro que o objetivo dessa mudança de rumo na política agrária se inscreve em processo de privatização de terras públicas, cuja consequência mais imediata é a perda do controle público de um enorme patrimônio fundiário da União. Um patrimônio que, se destinado a atender aos preceitos constitucionais, que determinam as prioridades de destinação de terras públicas, deveria estar protegido da mercantilização a fim de garantir a democratização do acesso a quem não tem terra e a proteção à posse exercida de milhares de famílias que sem acesso estável à terra se veem submetidas à violência e ao conflito. Em um contexto de alta dos preços da terra (SAUER; LEITE, 2012) e de precárias condições de vida nos assentamentos (SPAROVEK, 2003; LEITE et al., 2004), a titulação definitiva dos assentamentos, que deveria ser o coroamento de uma política exitosa de desconcentração fundiária, termina por vulnerabilizar as famílias perante o mercado de terras e, a médio prazo, pode levar à ampliação dos índices já bastante altos de concentração de terras no país.
[1] SAUER, Sergio e LEITE, Sergio Pereira. Expansão Agrícola, Preços e Apropriação de Terra por Estrangeiros no Brasil. RESR, Piracicaba-SP, Vol. 50, N° 3, p. 503-524, Jul/Set – Impressa em Setembro de 2012
[2] Análises preliminares dos dados do Censo Agropecuário de 2017, divulgadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), indicam que metade dos 5.072.152 estabelecimentos rurais existentes no país tem 10 hectares ou menos e juntos detém apenas 2,28% das terras utilizadas para a agropecuária. Enquanto isso, 50.865 propriedades – que correspondem a cerca de 1% do total de estabelecimentos rurais – concentram 47,52% das terras agrícolas.
[3] No primeiro governo Lula foram criados 1.705 assentamentos, no segundo governo Lula já começamos a notar a redução, com a criação de 979; no primeiro governo Dilma foram 455, no segundo – interrompido com o golpe – 70 assentamentos; o governo Temer criou 66 assentamentos e o governo Bolsonaro, 18. Em 2023, apenas 10 assentamentos foram criados em áreas já adquiridas pelo governo federal. PINTO, Paula. Titulação dos assentamentos rurais: o que está em jogo quando a mercantilização da terra é priorizada em detrimento da reforma agrária? FASE. Série Direito à terra e ao território, v. 02, 2023 e O que emperra a reforma agrária com Lula?.
[4] Trata-se das modificações promovidas pelas Leis nº 13.001/2014 (art. 18, §§ 2º, 3º e 4º) e nº 13.465/2017 (art. 18, §4º) na Lei nº 8.629/1993, que regulamenta os dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, bem como nos Decretos nº 8738/2016 (art. 29, §1º) e nº 9.311/2018 (art. 24, §4º), que regulamenta o procedimento de seleção, permanência e titulação dos beneficiários da reforma agrária.
[5] Art. 5º, §7º, da Lei 8.629/1993 (dispositivo incluído pela Lei 13.465/2017).
[6] Art. 19, §1º, da Lei 8.629/1993 (dispositivo incluído pela Lei 13.465/2017).
[7] Art. 17, §§ 6º e 7º, da Lei 8.629/1993 (dispositivos modificados pela Lei 13.465/2017).
[8] Art. 18, §1º, da Lei 13.465/2017 (dispositivo modificado pela Lei 13.465/2017).
[9] Art. 22, §1º, da Lei 8.629/1993 (dispositivo modificado pela Lei 13.465/2917).
[10] Arts. 31, parágrafo único, e 35, do Decreto 9.311/2018.
[11] O Decreto nº 11.637 de 2023 alterou determinados dispositivos do Decreto nº 9.311/2018, que regulamenta o processo de seleção, permanência e titulação das famílias beneficiárias do Programa Nacional de Reforma Agrária.
[12] Os ACTs firmados no âmbito do Programa Titula Brasil em 2023 foram no Amapá (1 ACT), Mato Grosso (2 ACTs) e Santa Catarina (2 ACTs). Disponível aqui.
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Quando a mercantilização da terra é priorizada em detrimento da reforma agrária. Artigo de Julianna Malerba e Paula Máximo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU