Vozes de Emaús: Tempos irracionais. Artigo de Maurício Abdalla

Arte: Lauren Palma | IHU

02 Agosto 2025

"Na ação política e educativa é preciso colocar esses meios em ação. Penso que a arte e a religião possam ser campos eficazes para a formação de consciência crítica em tempos irracionais. Por limite de espaço, só me é possível abrir a discussão"

O artigo é de Maurício Abdalla, educador popular e professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo.

Maurício Abdalla (Foto: Arquivo Pessoal).

 

O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui

Eis o artigo.

A sociedade não é constituída apenas de fenômenos reais objetivos, pois tem sua realidade moldada também pela forma como pensamos. O entendimento da sociedade e da conjuntura só pode ser alcançado quando se considera a unidade de suas duas dimensões: a da materialidade das relações concretas e a dos modos de pensar que as orientam no plano espiritual.

Hegel chamou a expressão espiritual de uma época – que reflete e, a mesmo tempo, determina as relações do mundo vivido – de “o espírito do tempo” (em alemão der Geist der Zeit, ou simplesmente Zeitgeist). Em cada momento histórico predomina um Zeitgeist, que caracteriza as relações sociais e seus produtos materiais e espirituais.

Desde os anos 1980, vêm-se desenvolvendo no mundo um Zeitgeist irracionalista. Trata-se de uma forma de pensar que recusa a racionalidade como critério de validação do pensamento e das ações e da vida social como um todo.

Inicialmente, ele se desenvolveu no plano da arte e, mais tarde, no pensamento acadêmico nas áreas humano-sociais (com a onda pós-modernista), sem muitas consequências para o restante da sociedade, embora com um tremendo estrago para as ciências humanas e sociais.

Porém, o Zeitgeist irracionalista se espalhou na sociedade, por meio dos diversos instrumentos de formação da consciência. Hoje, ele tem sua expressão em todos os espectros do posicionamento político, tanto à direita, quanto à esquerda. É o espírito dos tempos neoliberais.

É difícil definir o que é a racionalidade sem entrar em infindáveis debates filosóficos. Mas há algo básico que caracteriza o pensamento racional. Trata-se da definição de regras de validação do pensamento que advêm da lógica (o “nível zero” de toda racionalidade) e de critérios previamente acordados entre os membros de uma sociedade ou de comunidades de diferentes pessoas em interação dialógica, como a comunidade dos cientistas naturais ou sociais, dos filósofos, dos juristas etc.

Racionalmente, o juízo a respeito da veracidade ou falsidade de uma afirmação se assenta apenas em dois âmbitos: o da lógica e o da factualidade.

A convicção se justifica por fatores mais complexos, mas os juízos de verdade ou falsidade só podem ser proferidos com base nos dois âmbitos citados. Assim, uma coisa pode ser logicamente verdadeira ou logicamente falsa e factualmente verdadeira ou factualmente falsa.

No âmbito da lógica, uma afirmação será logicamente verdadeira quando a própria lógica assim o impuser, como no caso da afirmação de que “o todo é sempre maior ou igual em tamanho à cada parte que o compõe”, ou de que “todo solteiro é não-casado”. O “nível zero” de nosso pensamento, onde não cabe perguntar “por quê?”, nos força a admitir que essas afirmações são, em si mesmas, verdadeiras, pois não se pode pensar o contrário.

De modo equivalente, será logicamente falsa uma afirmação quando a lógica a interditar, ou seja, quando ela expressar uma contradição. Por exemplo, dizer que se viu “um solteiro que era casado”, ou “uma parte que era maior que o todo que ela formava” enuncia contradições e, apenas por isso, as afirmações podem ser, imediatamente, definidas como falsas.

Pelo critério da factualidade, uma afirmação será factualmente verdadeira quando as pessoas envolvidas no diálogo puderem relacionar a ela fatos ou acontecimentos e atestarem que a proposição corresponde a uma realidade confirmada pelos meios disponíveis. A afirmação, então, será julgada verdadeira pelas pessoas em interação. Por exemplo, à frase “o Flamengo ganhou a partida” deve corresponder elementos disponíveis aos envolvidos no diálogo que atestem que o Flamengo jogou e que o número de gols marcados pelo clube foi superior ao do time adversário.

Quando, porém, à afirmação não corresponder nenhum fato atestável intersubjetivamente ou quando ela contradisser fatos atestados pelas subjetividades envolvidas, ela será julgada factualmente falsa. Assim, afirmação de que o Flamengo ganhou uma partida, sem que o time tenha jogado ou quando o número de gols do adversário tenha sido maior, torna-se uma afirmação falsa.

No plano da análise filosófica, é impossível estabelecer afirmações verdadeiras em absoluto no âmbito da factualidade, pois isso envolve discussões intrincadas. Porém, no nível das relações cotidianas é possível estabelecer verdades circunstanciais, ainda que passíveis de distintas opiniões. No caso da falsidade, é ainda mais fácil estabelecer a flagrante contradição entre as afirmações cotidianas e o conjunto de fatos a que temos acesso por diversos meios.

O pensamento racional rechaça a sobrevivência de afirmações logicamente contraditórias ou em conflito com fatos coletivamente atestados e estabelecidos. Assim, a discussão racional interdita, por exemplo, afirmações que coloquem a causa depois da consequência (como dizer que o aumento dos preços da carne em 2019 foi causado pela guerra entre Rússia e Ucrânia, que começou em 2022); ou que estejam em evidente contradição com os fatos (como dizer que não houve pandemia no mundo entre 2020 e 2022, quando os dados, as experiências, as pesquisas e as mortes formam um conjunto factual sólido e de fácil acesso a todos).

Contudo, tal interdição só ocorre quando o espírito da racionalidade predomina entre os que dialogam e os critérios que provêm do pensamento racional são aceitos, consciente ou inconscientemente, por todas as pessoas envolvidas no diálogo. E esse não é o caso de nosso tempo.

A excessiva exposição da população ao entretenimento vazio, emotivo e sem sentido, a manipulação dos fatos em função da versão pretendida pela mídia corporativa, o estímulo ao fanatismo religioso, a falta de uma educação sólida desde os primeiros anos de vida e a cultura das relações emocionais, familiares, hierárquicas e personalistas que se desenvolveu no Brasil (que ainda não conseguiu desenvolver o espírito republicano) não contribuíram para a cultura racional e criaram um ambiente propício para a recusa da racionalidade em nossas relações.

Isso já se manifesta, há tempos, nas discussões sobre futebol e no comportamento clubista das torcidas, nas relações de favorecimento com o serviço público, na rejeição às normas legais e protocolares que limitam às vontades individuais e na arena dialógica dos botecos de esquina (maiores termômetros do pensamento comum brasileiro). A política, como exige a racionalidade da lei, das regras objetivas e das instituições (mesmo quando feita com más intenções ou para a corrupção), sempre foi repudiada nesses ambientes, onde era assunto quase proibido.

A novidade do final dos anos 2000 em diante foi a potencialização desse espírito irracional pelas redes sociais digitais e sua transposição para a política, operada pelos meios de comunicação a serviço de interesses econômicos e para enfrentar o crescimento da esquerda. Assim nasceu a nova extrema-direita e seus seguidores que povoam nosso mundo. Foi esse espírito que criou Bolsonaro como símbolo e, mesmo sendo anterior a ele, ganhou seu nome. Bolsonaro é apenas o totem adorado pelo espírito irracionalista na política.

O debate político entre a população e mesmo entre parlamentares eleitos nessa nova onda extremista de direita dispensou a racionalidade e acabou com os critérios racionais de juízo sobre veracidade e falsidade. Em seu lugar, entrou o critério de adequação a um conjunto de expectativas previamente formadas: é verdadeiro tudo aquilo que se encaixa em meu modo de pensar e é falso o que o contradiz, mesmo se for logicamente contraditório ou se estiver flagrantemente em conflito com o conjunto de fatos estabelecidos. A isso deram o nome de “pós verdade”.

Por isso, sentimos tanta dificuldade em dialogar com a extrema-direita e com as pessoas, mesmo as mais simples, que estão sob sua influência. Não é por não sabermos usar redes sociais ou por termos propostas ruins. É porque argumentos racionais perderam sua eficácia. Lógica e fatos não entram mais como elementos que balizam o diálogo, apenas a expectativa de verdade baseada na causa defendida. Esse é o Zeitgeist irracionalista que predomina em nosso mundo.

O espírito irracionalista também se manifesta na esquerda, na prática e discurso de uma militânciacanceladora” e “lacradora”, que se apega a uma causa única e julga a história, fatos, ações e relações sociais apenas pelo critério do acoplamento às expectativas vinculadas à causa, ainda que para isso tenha que negar fatos históricos ou criá-los. O irracionalismo da esquerda tem outras raízes, que demandam análise à parte, mas compõe o mesmo Zeitgeist.

O irracionalismo causa estragos para uma sociedade que se pretende democrática, plural e madura e precisa ser combatido onde quer que se manifeste. Mas, uma vez que ele se impôs como espírito de nosso tempo, precisamos saber como conviver com essa realidade social dada. No contexto em que vivemos, não obteremos sucesso no debate público apenas apelando para a argumentação sustentada nos elementos racionais da lógica ou da factualidade. Entre aqueles que não cultivam esses elementos, apelar para esses elementos equivale a usar datashow como recurso didático para um auditório de cegos.

Porém, aos cegos lhes falta apenas um sentido e a compreensão vem perfeitamente por outros meios. Por isso, a metáfora também nos evoca o fato de que existem outros meios para se chegar àqueles que não utilizam os critérios racionais de diálogo. Na ação política e educativa é preciso colocar esses meios em ação. Penso que a arte e a religião possam ser campos eficazes para a formação de consciência crítica em tempos irracionais. Por limite de espaço, só me é possível abrir a discussão.

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