29 Julho 2025
"Se a tradição bíblica, especialmente a do Novo Testamento, tem algo a nos revelar ou de nos dar uma visão que nos ajude a entender o que está ocorrendo agora em Gaza e em outros lugares do mundo, onde muitos estão sendo assassinados sem vídeos a divulgar, talvez seja a afirmação da inocência dessas vítimas. Essas vítimas não são culpadas. E como é possível uma vítima ser culpada? Porque a visão religiosa e político-jurídica idolatria é exatamente aquela que inverte a vítima é a culpada e a vitimadora a inocente", escreve Jung Mo Sung, teólogo católico e cientista da religião.
O que a matança em Gaza, mostrada em vivo e em repetições nas redes sociais, nos revela?
Será que ela nos revela que a espécie humana, como me disse uma vez Hugo Assmann com raiva, é uma espécie que não deu muito certo na evolução das espécies? Com um cérebro supercomplexo e com capacidade social de acumular conhecimentos, a humanidade atual é capaz de matar uma população inteira, destruir todas as casas da região e, mais do que isso, reduzir um povo a uma “coisa”, inferior à condição de animal doméstico, pois esses são protegidos por leis e têm o direito de comer.
No mundo moderno, o mundo do iluminismo, a Europa e depois também os Estados Unidos se afirmaram ao mundo como portadores da luz, da razão, e dos valores éticos do cristianismo. Junto com a luz e o “coração” do cristianismo, esse mundo moderno gerou uma visão bastante otimista da história e do futuro. É porque somos filhos desse otimismo moderno é que não conseguimos entender o porquê dessa situação sem sentido em que os poderosos do mundo se dividem entre os que defendem a política de Israel e os que têm retóricas em defesa dos direitos de viver dos palestinos, mas quase não fazem nada em nome do realismo geopolítico ou dos interesses econômicos.
Se olharmos pela história da humanidade, genocídios e assassinatos em massa são mais comuns do que gostaríamos reconhecer. Os grandes impérios do mundo, sejam o Inca ou Asteca, o romano, o Grã-Bretanha ou o Mongol, ou o poderio de países coloniais foram todos construídos baseados na exploração do trabalho forçado ou muito mal pagos, roubos e assassinatos massivos. Como diz o livro de Apocalipse, o livro da revelação, na ruína de todos impérios “foi encontrado sangue de profetas, de santos e de todos os que foram mortos sobre a terra” (Apoc 18,24).
Juan Stam, um teólogo biblista norte-americano protestante na linha da teologia da missão integral, – que viveu muitos anos em Costa Rica e em contato com a equipe do DEI (Departamento Ecumênico de Investigações) propôs o projeto de um livro que depois foi publicado com o título de “A luta dos deuses” – escreveu: “o Império Romano, e todas as bestas desse tipo até o fim da história, não se baseiam em valores morais e na razão, mas na força bruta e cega. Esse poder imperialista é tornado aparentemente infinito pela morte e ressurreição semelhantes às do Cordeiro (Apoc 13:3). Essa demonstração de poder, expressando sua força irresistível, fascina o mundo interior e o leva a seguir as bestas e a adorá-las. A razão para essa idolatria não é a verdade, a beleza ou a bondade, mas precisamente o poder: ‘Quem é como a besta? Quem pode lutar contra ela?’ (13:4) Essa adoração consiste em se curvar ao poder absoluto da besta” (STAM, Juan. Apocalipsis: capítulos 12 al 16. Tomo III. Florida: Kairós, 2009, p. 142).
Stam, que não concordava com o otimismo antropológico e político (a possibilidade da libertação dos pobres pela ação político-humana) presente na Teologia da Libertação e se distanciou do DEI no final da década de 1970, diz nessa citação que teremos as bestas imperiais até o fim da história. Estudioso do livro de Apocalipse, ele criticava radicalmente o otimismo moderno, sem desistir da missão cristã de defender os direitos de viver de todas pessoas, o que significa defender os direitos e dignidade dos pobres e vítimas de relações injustas.
Se a tradição bíblica, especialmente a do Novo Testamento, tem algo a nos revelar ou de nos dar uma visão que nos ajude a entender o que está ocorrendo agora em Gaza e em outros lugares do mundo, onde muitos estão sendo assassinados sem vídeos a divulgar, talvez seja a afirmação da inocência dessas vítimas. Essas vítimas não são culpadas. E como é possível uma vítima ser culpada? Porque a visão religiosa e político-jurídica idolatria é exatamente aquela que inverte a vítima é a culpada e a vitimadora a inocente.
E, como diz H. Assmann: “A novidade essencial da mensagem cristã, precisamente porque tenta introduzir na história o amor fraterno abrangente, consiste na afirmação central: as vítimas são inocentes e nenhuma desculpa ou pretexto torna sua vitimização justificável. Nenhuma projeção de culpa ou culpabilidade sobre a vítima é aceitável como justificativa para que ela seja ‘sacrificada’. Portanto, a vítima é definida como um produto de violência injustificável” (The strange imputation of violence to Liberation Theology: Terrorism and Political Violence, vol. 3, n. 4, 1991).