23 Julho 2025
A promessa da reforma agrária voltou ao discurso oficial com o terceiro governo Lula, mas segue emperrada no Congresso Nacional e distante da realidade dos trabalhadores rurais. A avaliação é do bispo Dom José Ionilton de Oliveira, presidente da CPT (Comissão Pastoral da Terra), entidade ligada à Igreja Católica que completa 50 anos em 2025.
A entrevista é de Paula Bianchi, publicada por Repórter Brasil, 22-07-2025.
Em entrevista exclusiva à Repórter Brasil durante o 5º Congresso Nacional da organização, realizado em São Luís (MA), Dom Ionilton fala sobre o papel histórico da CPT, referência em dados sobre conflitos no campo e em assessoria a movimentos sociais de luta pela terra.
Ele também discorre sobre os entraves políticos à reforma agrária e sobre a escalada da violência no meio rural — especialmente na Amazônia, onde o cenário pouco mudou mesmo após o fim do governo Bolsonaro e o início da nova gestão de Lula. Dados do Atlas dos Conflitos no Campo Brasileiro, lançado nesta segunda (21), mostram que a região concentrou quase metade dos conflitos no campo nos últimos 40 anos.
O bispo Dom José Ionilton de Oliveira, presidente da Comissão Pastoral da Terra, discursa durante o congresso que comemora os 50 anos da entidade (Foto: Renata Costa/CPT)
O bispo cita a recente aprovação do “PL da Devastação” — apelido criado por ativistas para o projeto de lei que flexibiliza o licenciamento ambiental no país — como exemplo do conservadorismo dos parlamentares. A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), com apoio da CPT e de outras organizações, assinou nota pública contra o projeto.
Para ele, o governo Lula cede demais ao Congresso a fim de se manter no poder e acaba deixando de lado o que deveria ser uma de suas principais causas. “Falta uma decisão firme, dizer: ‘Não. A reforma agrária é necessária, urgente e precisa ser feita.’ Hoje, a reforma agrária caminha a passos de tartaruga. Um pedaço aqui, outro ali”, afirma.
Dom Ionilton também analisa o avanço do agronegócio e da mineração, além do esvaziamento dos movimentos sociais e das próprias pastorais da Igreja Católica progressista. “Tínhamos uma Igreja das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), próxima do povo e comprometida com causas sociais. Hoje temos uma Igreja mais voltada à espiritualidade, ligada a movimentos eclesiais”, reflete.
“Para muita gente, é como se nós fôssemos o MST na Igreja, embora a gente tente mostrar que são duas organizações importantes, mas distintas, que funcionam para defender a terra, o território e as águas”, complementa.
O Atlas dos Conflitos no Campo Brasileiro, lançado nesta segunda-feira (21/07), contabiliza cerca de 50 mil conflitos no campo nos últimos 40 anos, com aumento significativo nos anos recentes. Como o senhor vê a questão agrária no Brasil hoje?
Nós tivemos muitas idas e vindas nesses anos. Houve momentos em que a reforma agrária avançou um pouco mais, outros em que ela recuou e até em que estacionou. Ela tem dado pequenos sinais, no atual contexto, do atual governo, de que há uma vontade de voltar a ser assunto. Mas há um fator que tem atrapalhado de forma significativa esse avanço: a atual composição do Congresso Nacional.
Temos um Congresso reacionário, com maioria de votos totalmente contrários à reforma agrária, à permanência dos trabalhadores no campo. Basta ver os argumentos usados na aprovação do chamado PL da Devastação [Projeto de Lei 2.159/2021, que flexibiliza as regras de licenciamento ambiental no Brasil].
O PL da Devastação seria um exemplo desse tipo de Congresso?
O PL da Devastação é uma prova de que temos um Congresso que não legisla em favor do povo brasileiro, pensando no bem comum. Essas votações ainda seguem a pauta do governo anterior — quando o então ministro do Meio Ambiente sugeria “passar a boiada” durante a pandemia, defendendo o fim de leis que dificultavam o avanço do agronegócio e das mineradoras sobre terras indígenas, quilombolas, camponesas, de pequenos agricultores.
Na minha leitura, temos hoje um governo que, em tese, pensa na reforma agrária. Isso apareceu na campanha, nas reuniões, na presença do próprio MST nos debates. Mas isso não depende só da vontade de um governo.
Se o governo levar ao Congresso uma lei para desapropriar terras, ela não será aprovada. Por isso, nós temos que nos mobilizar — e aí entra o nosso trabalho como CPT.
Ex-ministra da Agricultura no governo Bolsonaro, a senadora Tereza Cristina (PP) foi a relatora do PL 2.159/2021 chamado de “PL da Devastação” (Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado)
O Atlas mostra que, mesmo com a mudança de governo, a violência no campo não diminuiu. Por quê?
Não mudou, justamente por causa desse contexto de um Congresso reacionário.
O governo, querendo governar — e não estou aqui desculpando — faz aquele jogo político: precisa dialogar com quem o ajuda a manter-se no cargo, para não acontecer com ele o que aconteceu com a presidenta Dilma. Então hoje dá um beijo, amanhã dá um tapa, para depois voltar a beijar. Ele tenta negociar com o Congresso, e é isso que atrapalha.
Falta uma decisão firme, dizer: “Não. A reforma agrária é necessária, urgente e precisa ser feita.” Hoje, a reforma agrária caminha a passos de tartaruga. Um pedaço aqui, outro ali. Claro que o governo divulga que está fazendo, mas é insignificante diante do tamanho da necessidade real.
A reforma agrária deixou de ser uma bandeira do governo Lula?
Na campanha, ele dizia que seria uma das causas do seu governo. A CPT nunca parou de dizer que a reforma agrária é um campo de luta.
Trabalhamos isso na base, nos grupos de base, nos regionais. Temos buscado mobilizar as forças que temos como CPT para influenciar o governo.
Assim como a bancada do agronegócio, da mineração, do poder econômico faz lobby para que a reforma agrária não aconteça, nós, do outro lado, precisamos fazer pressão para que ela aconteça.
Porque, senão, eles continuam jogando sozinhos — e nós precisamos entrar em campo para disputar esse jogo.
“Na campanha, Lula dizia que seria uma das causas do seu governo. A CPT nunca parou de dizer que a reforma agrária é um campo de luta”, diz o bispo Dom José Ionilton de Oliveira (Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação)
A agenda do agro é mais ouvida pelo governo?
O agro tem um poder econômico muito forte. E essa bancada que comentamos, do Congresso, é em grande parte pró-agro. Aí pronto, o governo cede demais, porque não quer fazer um enfrentamento direto.
Essa é a grande questão: o medo do enfrentamento e o risco de um impeachment. O atual governo — o Lula — não quer correr o risco de um processo de impeachment. Porque maioria para isso existe. Se essa turma toda que é contra qualquer mudança se junta, derruba qualquer governo popular.
Precisamos fazer nossa parte. Temos feito incidência política. Estive com a CPT duas vezes em Brasília para cobrar ações de reforma agrária e apresentar dados sobre a violência no campo. Não podemos deixar que o trabalhador fique exposto à força do poder econômico, que vem também armado.
Se pegarmos os dados da violência no campo de 2024, lançados agora em abril, está claro quem é que promove a violência: empresários, fazendeiros… Eles têm o poder econômico para comprar armas de alto calibre, munição, e contratar gente para “fazer o trabalho” — ou seja, ameaçar quem está na terra.
Até pouco tempo, a legislação de armas era mais permissiva, não?
O governo passado abriu a porteira. Armas, quantas o cidadão quisesse, munição em grande quantidade. O atual governo, no primeiro dia, decretou o fim dessa porta aberta. De fato, a venda foi proibida. Mas não houve nenhuma ação concreta para recolher as armas que já estavam nas mãos da população. Elas continuam por aí.
O Atlas aponta também aumento da violência e enfraquecimento dos movimentos sociais. Qual a explicação?
No passado, a violência no campo acontecia porque havia organização popular. O povo se organizava para resistir ou conquistar a terra e o outro lado reagia. Nos primeiros 10, 15 anos de dados, é visível o número de casos de violência sofrida por movimentos sociais nesse enfrentamento. Nos últimos anos, a violência cresceu, mas as ações dos movimentos diminuíram.
A conclusão dos dados é clara: os movimentos populares não são os causadores da violência. Mesmo com menos ações, a violência aumentou. Quem está verdadeiramente promovendo a violência hoje são os grandes proprietários, as empresas, a mineração — invadindo terras ocupadas por quem está nelas há décadas.
O que causou essa retração dos movimentos?
Vários fatores. Primeiro, o cansaço. As pessoas se mobilizam, acham que vão conquistar a terra, mas não conseguem. Ficam desmotivadas, desistem da luta, vão para a cidade trabalhar de biscateiros.
Segundo, por causa desse período dos chamados governos populares — os dois primeiros governos Lula e o governo Dilma, entre 2002 e 2016 —, houve uma crença de que esses governos fariam a reforma agrária. E, por conta disso, houve um recuo. Isso foi um erro estratégico. Tendo um governo mais popular era justo a hora de continuar para conquistar o que não tínhamos conseguido com os governos em que se batia de frente.
Terceiro, muita gente das bases dos movimentos foi para dentro do governo — como agora, no terceiro governo Lula. E quando essas lideranças saem da base, é difícil repor com a mesma força e velocidade.
“Houve um recuo. Isso foi um erro estratégico. Tendo um governo mais popular era justo a hora de continuar para conquistar o que não tínhamos conseguido com os governos em que se batia de frente”, diz presidente da CPT sobre desmobilização de movimentos sociais (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Esse esvaziamento atinge também a CPT?
Sim. E no nosso caso há um fator adicional: a mudança no perfil da Igreja. Tínhamos uma Igreja das CEBs, próxima do povo e comprometida com causas sociais. Hoje temos uma Igreja mais voltada à espiritualidade, ligada a movimentos eclesiais. Muita gente se dedicou a esses caminhos e deixou de lado as pastorais sociais, como a CPT.
Nós temos tido uma dificuldade muito grande para encontrar agentes voluntários. Mais da metade dos agentes da CPT hoje são contratados. Ou seja, a gente vai atrás de recursos para pagar pessoas para trabalharem na pastoral. Há cada vez menos aquela pessoa que saía de uma igreja, de uma paróquia, de uma diocese e dizia: “Não, eu quero entrar na CPT, porque eu acredito nesta causa que a CPT defende”.
Todas as ditas pastorais sociais como a pastoral carcerária, pastoral da criança, têm enfrentado isso. Em uma reunião da CNBB em março, todas relataram dificuldade de recrutar agentes — por falta de apoio das dioceses e dos párocos. Falo com propriedade: sou bispo, já estive à frente de duas prelazias, e é muito difícil mobilizar pessoas para as pastorais. E na CPT, nem se fala. É uma dificuldade ainda maior.
Muitas vezes, na Igreja, a CPT é confundida com o MST. E como a imprensa bate muito no MST — a grande imprensa —, como sendo um movimento de bandoleiros, de invasores, não sei o quê… Para muita gente é como se nós fôssemos o MST na Igreja. Embora a gente tente mostrar que são duas organizações importantes, mas distintas, que funcionam para defender a terra, o território e as águas, ainda há muita resistência e preconceito contra o nosso trabalho.
Os dados também mostram a Amazônia como o principal palco de conflitos no campo hoje. Por quê?
Os fatores preponderantes para o crescimento da violência na Amazônia são o avanço do agronegócio e a investida das mineradoras para explorar algumas riquezas que estão aí em nossas terras. O agronegócio foi avançando do Sul. Passaram pelo Centro-Oeste — Mato Grosso, Mato Grosso do Sul — e, quando não tem mais nada para destruir, agora estão chegando no Norte.
Desmatar para plantar uma cultura única — soja, algodão, arroz — ou para fazer o dendê. Ou empresas que descobrem que ali tem um minério xis qualquer e que têm que invadir aquela terra de qualquer forma, expulsar quem tá ali para poder fazer a exploração.
Era muito comum a gente escutar o próprio presidente dizendo, no governo passado: “como é que tem uma riqueza debaixo do chão e a gente vai deixar essa riqueza ali? Tem que explorar”. Ou seja, [é como se dissesse] tem que tirar os indígenas para explorar a riqueza que está debaixo do chão.
Claro. Eu considero esses os principais fatores, mas nos dados da CPT também aparecem as grandes obras de infraestrutura, como as hidrelétricas, as hidrovias, ferrovias, como a Ferrogrão, que quando são construídas causam muita destruição e são feitas justamente para escoar o produto do agronegócio. A exploração do petróleo na foz do Amazonas. Todos os dados técnicos mostram que não é uma coisa boa. Vai trazer destruição e prejuízo para quem vive ali e vive dali — da pesca principalmente.
São exemplos de obras que querem fazer sem nenhuma discussão prévia, sem pedir autorização das comunidades — como a própria Constituição Federal determina. Há também a questão dos agrotóxicos, em especial da aplicação aérea. Mas quem tem o poder acha que pode tudo, né? E se não houver uma reação de resistência, aí realmente passa por cima de tudo.