04 Julho 2025
Mulheres que enfrentam o medo constante de alagamentos e inundações contam como a histórica desigualdade de gênero as empurra para o risco climático. Em Vitória do Jari, são elas que chefiam a maior parte das casas (56%) em áreas de risco. Fora delas, a maioria dos domicílios (75%) é chefiada por homens.
A reportagem é de Maria Clara Prudêncio, Mickael Marques Nobre, Flávio De Sousa Santos e Lylian Rodrigues, publicada por InfoAmazônia, 03-07-2025.
São sete horas de estrada, boa parte em chão de terra vermelha, desde a capital, Macapá, até Laranjal do Jari, ao sul do Amapá. De lá, uma rápida travessia de catraia até Monte Dourado, no Pará, para depois seguir de carro por mais 40 minutos em outra estrada de terra até Munguba e atravessar o rio Jari para estar de novo em terras amapaenses, em Vitória do Jari. Essa é a viagem que nos leva ao encontro com as mulheres que vivem às margens do rio, nos bairros Prainha, Comercial, Santa Clara e Cidade Livre. O município está dividido entre cidade alta e baixa e, em ambas as áreas, há risco constante de alagamentos, enchentes e inundações.
Essas mulheres são sustento. Carregam no útero a prole, amamentam, cuidam dos filhos, companheiros, sobrinhos, irmãos e netos. Organizam suas casas, providenciam manutenção, zelam pelas plantas e cozinham o alimento da família. Fazem as compras e trabalham fora de casa. Enquanto enfrentam desigualdades de gênero históricas, veem os extremos climáticos atingirem seu território e aumentarem o risco de desastres.
Em 2022, a cidade enfrentou uma das maiores enchentes da história, com 2.527 famílias afetadas, segundo o Relatório Ambiental Simples (RAS), produzido pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Turismo da Prefeitura de Vitória do Jari para demonstrar os impactos causados em decorrência do aumento das águas do rio Jari. Naquele ano, o avanço do rio alagou grande parte da cidade. O ano seguinte foi de seca e o fogo.
Os extremos climáticos viraram uma realidade. Neste ano de 2025, não houve preocupação com enchentes, e a cidade se prepara para o período de seca que deve vir. “Então, nós começamos a elaboração logo do plano de estiagem, porque a gente sabe que, se não houver enchente, vai haver uma estiagem de grande proporção”, relata Breno Urubuquara, secretário municipal de Proteção e Defesa Civil.
Para mulheres que vivem em áreas com risco de inundações, enchentes e alagamentos em Vitória do Jari, porém, a capacidade de se adaptar aos extremos climáticos parece reduzida. O desemprego aumentou com o fechamento de uma grande fábrica na cidade, que atingiu mais diretamente os homens, mas levou mulheres a assumirem as contas de casa e virarem chefes de família. Além disso, os saberes tradicionais estão sendo apagados nos modos de construir casas ribeirinhas e o alto custo das melhores madeiras dificultam a construção de moradias mais seguras em áreas de ressaca, como são chamadas as regiões que enchem com o avanço do rio devido à influência da maré.
“As mulheres, especialmente as negras, indígenas e ribeirinhas, por viverem esses marcadores de opressão histórica, são as mais impactadas pelos eventos extremos, acumulando responsabilidades pelo cuidado da família, produção de alimentos e gestão dos recursos naturais”, explica a pesquisadora Patrícia Rocha, doutora em Geografia Humana. Os impactos das mudanças climáticas não se distribuem de maneira igual: afetam de forma mais intensa grupos sociais que, historicamente, já são marginalizados.
A cidade de Vitória do Jari expressa essa desigualdade. No município do sul do Amapá, a maior parte dos domicílios em áreas de risco é chefiada por mulheres (56%), enquanto a maioria dos que ficam fora das áreas de risco é chefiada por homens (75%), segundo dados de uma análise exclusiva realizada pela InfoAmazonia a partir de informações do IBGE e do mapeamento do Serviço Geológico do Brasil (SGB) sobre as áreas de risco a eventos hidrogeológicos, como inundações, alagamentos, deslizamentos e erosão.
Esta é a quarta reportagem da série Vulneráveis do Clima, uma parceria entre a InfoAmazonia e o Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Amapá (UFAP), que mapeou quem são os mais expostos a desastres climáticos na região amazônica.
Sebastiana dos Santos, de 63 anos, vivenciou várias enchentes na casa modesta onde mora, no bairro Santa Clara, na cidade baixa de Vitória do Jari. A última delas foi em 2022. “A casa ia para o fundo toda vez que tinha enchente, tudo ficava alagado. Jogaram toras de pau aí, e aí eu botei umas duas tábuas grandes que tinha e ficava caminhando em cima. O resto ficou no fundo, dentro da casa mesmo. Com o tempo, foi se acabando o armário, foi se acabando o guarda-roupa”, lembra.
Sebastiana divide a moradia, onde a sala e cozinha se misturam em um mesmo cômodo, com a neta que cria como filha desde o nascimento. É ela quem chefia a casa, com a venda de comidas caseiras. De manhã cedo, sai com uma bicicleta e um isopor amarrado na garupa, levando frutas, milho e o que estiver disponível para venda no dia. “Hoje estava vendendo limão”, conta.
Recém-chegada das vendas, Sebastiana se acomoda em um pequeno banco de madeira na sala de sua casa e conta à reportagem que, quando a enchente vem, é difícil sobreviver sem ajuda. “Foi aqui que a água bateu”, aponta, marcando um pouco abaixo do joelho.
Na última enchente, Sebastiana não conseguiu nem mesmo doação de cesta básica, organizada pela prefeitura de Vitória do Jari. “Fiquei à mercê da enchente, à mercê da situação. Eu sobrevivi mesmo”, diz ela, que conseguiu ajuda de outras pessoas e iniciou as vendas diárias na sua bicicleta. Sebastiana ainda sonha em reconstruir a casa, com um novo banheiro, mas diz não ter condições de reformá-la e adaptá-la para viver com mais segurança naquela área de risco. “A condição não dá. Eu já agradeço porque tenho uma casa. Eu vivo aqui. Aqui é o meu quarto e a minha sala”, declara.
Perto dali, Edite Romano conta que viu a comunidade crescer às margens do rio Jari, sem entender que estava construindo sua vida sobre o risco. Os caminhos dela foram traçados em harmonia com a floresta, dentro de uma cultura de subsistência baseada na extração de recursos naturais como a castanha, a seringa e a murupita. “Eu vim de Gurupá. Já andei esses trechos todinhos”, conta Edite, que viveu em comunidades próximas ao rio e escolheu viver em Vitória do Jari há mais de quatro décadas, quando uma grande fábrica se instalou na região. “Fomos um dos primeiros que botamos casa aqui. Devagar vieram subindo, mas não tinha casa aqui não. Era nós aqui, um ali, e isso tudo era água. Não tinha ponte, a gente andava por cima do miritizeiro, era ele que ajudava a gente a caminhar. Desde então, só morei aqui”, conta.
O crescimento urbano desordenado nas áreas baixas amplia o risco. No mesmo período em que o rio se fazia estrada para a Edite, ele também se tornava via de acesso para um ambicioso projeto industrial: a chegada da Jari Celulose na cidade. A fábrica, idealizada pelo bilionário norte-americano Daniel Keith Ludwig, foi inteiramente projetada para funcionar em plena Amazônia. Duas balsas trouxeram do Japão uma usina elétrica e a própria fábrica, num empreendimento que prometia revolucionar o mercado e ressignificar a produção de celulose no Brasil, na década de 70. No mesmo período, surgia também a fábrica CADAM, uma exploradora e exportadora do minério de caulim, que permanece ativa até hoje.
As fábricas atraíram para as margens do rio Jari cada vez mais pessoas vindas do interior do Pará e do Amapá, com a promessa de desenvolvimento, prosperidade e trabalho. De um lado do rio, a Jari Celulose e a CADAM se desenvolviam no distrito paraense de Monte Dourado, na Vila Munguba. Na margem oposta, crescia desordenadamente uma comunidade batizada inicialmente de “Beiradinha”, que depois foi se constituindo no município de Vitória do Jari. Sem infraestrutura adequada, a cidade enfrenta um problema histórico de alagamentos e inundações nos períodos de cheia.
A pesquisadora socioambiental Alzira Marques explica que a região é marcada por vários cursos d’água que deságuam no rio Jari, que passa a concentrar um grande volume de água em um único leito, exatamente onde concentra-se as moradias da área de ressaca, em Vitória do Jari. “É o formato de uma bacia. Se você olhar no mapa, é exatamente isto: uma bacia”, explica Marques. “É muita água chegando de uma vez”, diz. Quando chove muito, os riscos de enchentes, alagamentos e inundações também aumentam.
Valdenira Ferreira, doutora em geologia e geofísica marinha, explica que a dinâmica hídrica da região é complexa, influenciada também por fatores oceânicos, que ampliam o alcance das inundações. “Quando a gente fala do rio Jari, temos que pensar que são regiões com áreas inundáveis, mas que chamamos de áreas úmidas costeiras”, explica Valdenira. “Essas inundações têm relação com a cheia dos rios, mas também com a influência da maré, um processo que inicia no oceano”, completa.
De acordo com a pesquisadora, a topografia plana da região facilita esse avanço. A maré chega a percorrer até 800 quilômetros da foz do rio Amazonas para o interior, o que afeta diretamente a planície do Jari. Esse fluxo natural, porém, deixa de ser apenas um fenômeno cíclico quando se soma a outros elementos agravantes: excesso de chuvas, assoreamento causado pelo desmatamento e garimpo, além dos modos de ocupação e uso do solo em um contexto de mudanças climáticas.
Luzia Ferreira, moradora da chamada “cidade baixa” de Vitória do Jari, uma das áreas mais afetadas pela enchente de 2022, precisou adaptar a própria casa para continuar ali. “A minha casa ficou em partes no fundo, a gente teve que colocar mais tábua, fazer tipo uma elevação na base”, relata.
Hoje, Luzia sustenta a família com o cargo que ocupa na Secretaria de Assistência Social do município. Ela divide o tempo entre os cuidados com o marido, que faz tratamento de câncer em Macapá, e o apoio ao filho, atualmente desempregado, que vive com a nora e o neto em outra casa.
Em meio aos impactos da enchente e ao agravamento das dificuldades econômicas em Vitória do Jari, Eliete Lima, de 32 anos, também precisou assumir o sustento da casa. Antes, era o marido quem mantinha a família, mas com o fechamento da fábrica Jari Celulose, que por décadas foi a principal fonte de emprego da região, a dinâmica precisou mudar de forma abrupta.
A filha de Eliete tem paralisia cerebral e, por isso, ela é beneficiária do Benefício de Prestação Continuada (BPC), o que garante o básico para cobrir as despesas de saúde e alimentação. “Eu sou dona de casa, porque eu não posso trabalhar, em questão dela. Então, é algo que ajuda a manter o mínimo”, relata.
Em maio de 2022, durante o período mais intenso da enchente, ela precisou enfrentar não apenas as dificuldades dentro de casa, mas também os riscos diários impostos por uma cidade que estava cercada pela água. Eliete lembra das manhãs em que o marido saía com a calça enrolada até os joelhos e as botas na mão para tentar chegar ao trabalho. “Nessa época a Jari Celulose estava perto de fechar, mas ainda funcionava.”
“No dia 10 de maio eu escorreguei na ponte, caí feio, bati o corpo todo. Escorreguei duas vezes no mesmo lugar”, recorda. A enchente de 2022 alagou as ruas por semanas, cobrindo até o asfalto.
As mudanças climáticas empurram essas mulheres do Jari a enfrentar extremos. Maria Adelaide, conhecida como Lola, enfrentou enchentes na década de 90 e em 2022. Mas, nos últimos anos, o susto maior veio com o fogo, com o aumento de incêndios em estiagens mais severas.
O incêndio se alastrou por sete casas e um estabelecimento comercial no dia 31 de agosto de 2023, um período de seca intensa na região. Após o incêndio, uma parceria com o poder público viabilizou a construção de novas moradias. A Defesa Civil sugeriu que as novas casas fossem erguidas na parte alta do município, longe da área de risco. Mas, segundo Lola, todos os sete moradores desalojados se posicionaram contra a proposta.
Tradicionalmente, em territórios com as características de Vitória do Jari, a arquitetura ribeirinha era moldada por saberes antigos transmitidos entre gerações. “A própria população ribeirinha, pelo seu conhecimento popular, promovia essas construções”, afirma José Alberto Tostes, doutor em História e Teoria da Arquitetura.
A tragédia não parece ferir a relação das mulheres com o lugar e as histórias construídas ali. “Eu moro aqui há 40 anos, criei minhas filhas e aqui elas se formaram, eu quero voltar para o meu lugarzinho. Eles queriam fazer as casas lá na terra firme, lá pro Caulim, eu disse: negativo”, lembra Lola.
Para ela e seus vizinhos, deixar o bairro não faz sentido, mesmo com os riscos históricos de eventos como inundações e alagamentos sendo intensificados pela crise climática. O desafio é conseguir estrutura para permanecer e se adaptar aos extremos do clima.