"Francisco era um homem sábio. Havia aprendido que as reformas não se impõem de cima para baixo. O caminho no qual ele enveredou a Igreja não está concluído. Na verdade, é o caminho que deve sempre começar de novo. Nesse sentido, acredito que a própria ideia de reforma, como já havia intuído outro grande reformador no século XVI, Martinho Lutero, lembra que a Igreja está sempre em reforma, pois seu Senhor a chama sempre de novo a descobrir-se convocada à conversão" escreve Geraldo De Mori, no artigo a seguir. E ele destaca: "Sob muitos pontos de vista, o legado de Francisco é o do próprio Evangelho, que, como diz o nome, é Boa Nova, e deve alimentar a existência de cada crente em cada época em que ela se desdobra".
O texto, enviado pelo autor ao IHU, retoma o conteúdo da live organizada pela Sociedade Brasileira de Teologia Sistemática (SBTS), no dia 24/06/2025, da qual participou Maria Clara Bingemer, sob a moderação de Erico Hammes.
Mais de dois meses se passaram desde a morte do Papa Francisco. Muito já se escreveu sobre ele e seu legado nesse tempo. Na América Latina, por exemplo, acaba se ser publicado por Ameríndia o livro El legado del Papa Francisco a León XIV, organizado por Rosario Hermano e Alejandro Ordiz, com contribuições de Rafael Luciani, da Venezuela, Igancio Madera e Socorro Vivas Albán, da Colômbia, Elisabeth Roman, dos Estados Unidos, Pepa Torres, da Espanha, Alejandro Ortiz, de México, Agenor Brighenti e Francisco Aquino Junior, do Brasil. Mais que repetir o que muitos já disseram, embora seja inevitável, pois há coincidências sobre vários pontos, gostaria de propor pensar o legado de Francisco à luz do título do livro de Austin Ivereigh, Francisco, o grande reformador. Os caminhos de um Papa radical, publicado em 2015, ou seja, há dez anos. O autor, estudioso britânico da Igreja latino-americana, esteve várias vezes no Brasil. Sua obra, escrita no início do pontificado, aborda vários elementos da biografia de Jorge Mario Bergoglio, recorrendo à categoria de reforma para falar do que ele denominou de “Papa radical”. Para pensar o legado de Francisco, proponho o uso desses dois termos.
O termo “reformador”, que remete ao termo “reforma”, se presta bem para pensar a questão do legado do Papa Francisco. Por um lado, esse termo é indissociável da figura ou do carisma do papa argentino, homem com uma liderança indiscutível, seja no tempo em que liderou a Província argentina da Companhia de Jesus em seu país, seja no tempo em que foi bispo e assumiu o pastoreio da Igreja de Buenos Aires. O carisma da liderança, que tem muito a ver com um dom pessoal, pode ser controverso quando se trata de reforma. E não por acaso, Austen Ivereigh associou a palavra “reformador” a “radical”. De fato, a Igreja que o pontífice do “fim do mundo” recebeu para liderar, encontrava-se numa grande crise: a dos dos abusos de menores por membros do clero; a do vasamento de documentos confidenciais do Vaticano, expondo esquemas de corrupção, nepotismo e outras irregularidades, conhecido como Vatileaks; a da própria renúncia do Papa Bento XVI, que deixou a muitos perplexos e desorientados. Em que consistiu a reforma empreendida por Francisco e em que sentido é seu maior legado?
Logo que assumiu o pontificado, Francisco criou o grupo dos 9 cardeais, visto inicialmente como os conselheiros mais próximos que o ajudariam a realizar a “reforma da Cúria Romana”. É interessante que para muitos analistas, a reforma dizia respeito apenas à “cabeça” da Igreja, identificada em grande parte com a Cúria Romana. Relendo retrospectivamente os mais de 12 anos que esteve à frente do governo da Igreja, é importante notar que a Constituição Praedicate evangelium, que realizou a reforma da Cúria Romana, só foi promulgada em junho de 2022, ou seja, mais de nove anos depois do início de seu governo. Se era tão urgente essa reforma, por que tardou tanto? Até que ponto ela é o resultado de um governo reformador? Talvez, para se entender não só o alcance e o significado desta reforma particular da Cúria Romana, seja importante lembrar o caminho percorrido pelo pontificado e em que sentido seu principal legado é o de uma reforma. Para isso, o primeiro princípio proposto na Evangelii gaudium para orientar o “desenvolvimento da convivência social e a construção de um povo onde as diferenças se harmonizam dentro de um projeto comum” (EG 221), a saber, que o “tempo é superior ao espaço” (EG 222), afirma que “dar prioridade ao tempo é ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir espaços” (EG 223). A reforma de Francisco seguiu à risca esse princípio, lembrando que a reforma da cabeça só terá sucesso se o corpo também for reformado. E as muitas iniciativas e sinais realizados por ele foram como que um entrar numa escola para aprender o que, de fato, mais importa na Igreja.
Retomo brevemente e de modo retrospectivo alguns elementos do que Francisco foi propondo nessa escola de reforma da Igreja ao longo de seu pontificado e que, sem dúvida, constituem parte de seu legado. Começo com o que muitos analistas compreenderam como seu projeto de governo, a Exortação apostólica Evangelii gaudium. Indissociável do magistério da Igreja latino-americana, sobretudo o que se elaborou em Aparecida, o apelo fundamental aí proposto, o da redescoberta da alegria do Evangelho, é, sem dúvida, o primeiro passo de toda reforma na Igreja. Na verdade, toda reforma estrutural na Igreja, se não passar antes por processos profundos de conversão pessoal, comunitária e institucional, é fadada ao fracasso. E a grande reforma proposta pelo pontífice argentino, é a que dá origem à existência na fé. No fundo, é de novo ser capaz de escutar o que, segundo o evangelho de Marcos, foi a primeira palavra de Jesus: “convertei-vos, o reino de Deus está próximo. Crede no Evangelho!” (Mc 1,15).
Não é o caso de apresentar aqui os conteúdos da Evangelii gaudium, mas somente dar-se conta de que suas palavras iniciais ainda continuam ecoando nos ouvidos da Igreja, convidando-a a descobrir sempre o que a renova e a faz tornar novas todas as coisas. O encontro com o Senhor é o que desencadeia o discipulado e leva à missão, segundo o Documento de Aparecida, que inspirou profundamente não só esse primeiro grande documento de Francisco, mas muitas de suas intuições e iniciativas. De fato, segundo vários teólogos europeus, o Papa do Fim do Mundo trouxe consigo o que movia a Igreja aí presente, fecundando o conjunto do catolicismo com as grandes contribuições do que vivia a Igreja latino-americana e do que ela pensava, através de sua espiritualidade, de suas práticas e de sua teologia. A opção preferencial pelos pobres, sem dúvida a maior contribuição do magistério da América Latina para o conjunto da Igreja, conheceu novos desdobramentos, como o do chamado à dupla escuta: do grito dos pobres e do grito da terra. Elementos menos valorizados em outros contextos, como a religiosidade popular, e muitas expressões de participação do conjunto dos fiéis na vida eclesial, também foram fortemetne valorizados. No dizer desses teólogos, o sangue que circulava nas veias da Igreja latino-americana passou a irrigar todo o corpo da Igreja.
A fé que se expressa através de uma práxis profética de denúncia de tudo o que fere e diminui a dignidade humana, bem como o cuidado samaritano das vulnerabilidades, são, talvez, os elementos que mais vêm à memória se se pensa nos desdobramentos do que seria a tradução da “alegria do Evangelho” na vida concreta. É isso o que recorda sua ida a Lampedusa e seu compromisso com a causa dos imigrantes e refugiados. Seu engajamento com a defesa do meio ambiente, uma de suas principais contribuições para a Doutrina Social da Igreja, através da Laudato sí’, da Laudato Deum e da Querida Amazônia, também permanecem como um legado vivo de seu magistério, bem como seu esforço em promover o diálogo com as diferenças que caracterizam a sociedade, tendo em vista a fraternidade e a amizade social, tematizado na Fratelli tutti. Ainda no campo social, se destacam seus discursos nos encontros com os movimentos populares, suas iniciativas da “Economia de Francisco” e do “Pacto Educativo Global”.
Trazer essa dimensão da práxis profética como uma das traduções da “alegria do evangelho” pode, talvez, não ser identificado por muitos como elemento da “reforma” da Igreja, que, mais do que uma ONG, como tantas vezes ele mesmo insistiu, existe para anunciar ao mundo a salvação em sua dimensão escatológica, não se reduzindo, portanto, a uma agência humanitária ou de militância da causa ecológica. O que a teologia latino-americana, que em grande parte inspirou o pontificado de Francisco, mostrou, é que não se pode dissociar a fé da vida, e que o mesmo Jesus, ao anunciar a vinda do reino de Deus realizava sinais que o tornavam presente, como as curas, os exorcismos e a acolhida das pessoas consideradas pecadoras. Ao voltar o olhar e o cuidado da Igreja para as dores do mundo, Francisco mostrou que não adianta uma reforma interna da instituição eclesial se ela não se traduz em gestos que a expressem.
Além de lembrar à Igreja que ela deve ser “hospital de campanha”, Francisco também a chamou a uma “reforma interna”. Como um bom pedagogo, ele foi colocando-a num caminho de aprendizado, que teve nos diversos sínodos e nos temas que abordaram sua melhor expressão. Antes, porém, de a colocar nessa escola, ele convocou um ano jubilar dedicado à misericórdia. Muitos viram na convocação daquele sínodo uma espécie de estratégia, pois o Papa teria como intenção modificar a doutrina da Igreja sobre o matrimônio. Na verdade, o tema da misericórdia recorda o coração mesmo da fé revelada em Jesus Cristo, e somente alguém “misericordiado” poderia entrar num caminho de “reforma”, não só das estruturas institucionais, mas também da própria existência. Com essa base teológica, ele também quis lembrar um dos ensinamentos fundamentais do Concílio Vaticano II, o de que mais que substituir-se às consciências, a Igreja é chamada a formá-las. Esse princípio, repetido de muitas maneiras na Exortação pós-sinodal Amoris laetitia, é de extrema importância na Igreja. A fé, com todas as suas exigências, não pode ser imposta, mas deve ser proposta. Para isso, é importante ir ao encontro de cada pessoa onde ela se encontra, ajudando-a a ser adulta na fé. Muitos viram nesta dinâmica uma espécie de relativismo, mas o texto da exortação insiste várias vezes na importância da formação das consciências. O que aí é dito tendo em vista as muitas situações difíceis da vida afetivo-sexual dos fiéis vale também para muitos processos que se vive na Igreja, que depois foram aos poucos sendo tratados pelas diversas iniciativas do Papa. O próprio método a partir do qual os sínodos começaram a ser propostos já apontava nesta direção. Nos dois primeiros, o da família e o da juventude, através de consultas amplas feitas nas Igrejas locais. O da Amazônia, através de uma escuta ainda maior, que iluminou o caminho sinodal inaugurado em 2021, que colocou toda a Igreja no processo de escuta do conjunto dos fiéis. No fundo, tratava-se de oferecer um processo, sempre seguindo o princípio de que o tempo é maior do que o espaço, no qual o caminho percorrido formava as consciências.
Agenor Brighenti, na entrevista que deu ao IHU sobre o legado de Francisco, cujo teor foi retomado no texto do livro de Amerindia, afirma que o grande legado de Francisco foi ter “descentrado a Igreja de si mesma”, levando-a a voltar-se para “os grandes desafios que a humanidade enfrenta hoje”. No âmbito eclesial, continua o teólogo catarinense, destaca-se a reforma da Cúria Romana, culminando na Praedicate Evangelium, mas, sua “maior obra é o Sínodo da Sinodalidade, que retoma o processo de recepção do Concílio Vaticano II e consolida sua eclesiologia” . Essas duas dimensões do legado de Francisco são as que também considero as mais importantes. De fato, o descentrar-se da Igreja, mostrando que ela não existe para si, mas para evangelizar, e que evangelizar é “tornar o reino de Deus presente no mundo” (EG 176), corresponde ao que acima afirmei sobre o caráter práxico-profético de seu pontificado, feito de muitos gestos e textos que enriqueceram o magistério da Igreja e permanecerão para as gerações futuras como um dos elementos mais luminosos de seu legado. Por outro lado, o Sínodo da Sinodalidade é da ordem da reforma interna, que, como acima afirmei, passa por um processo de conversão, que supõe a experiência anterior de ser misericordiado e de deixar que a própria consciência possa ser formada segundo o sentir de Cristo. Nesse sentido, o modo como Francisco foi conduzindo os processos sinodais e, sobretudo, o método seguido no último sínodo, para além do caráter formal, foi um dos principais indicativos do que Agenor Brighenti chamou de nova recepção da eclesiologia do Vaticano II. Dizer isso não depõe nem contra o Concílio nem contra a recepção que dele fez a geração que participou ativamente de sua realização e recepção. Dizer isso é reconhecer o caráter histórico da fé, que, em cada nova época deve responder às questões que nela emergem, para continuar sendo significativa e relevante.
A geração que fez a primeira recepção do Concílio foi marcada por duas grandes interpretações do próprio evento conciliar, a que o via como continuidade do Vaticano I e a que o via em ruptura com algumas de suas posturas. Além de muita criatividade na recepção do Vaticano II, muitas vezes feita de certos exageros, o período pós-conciliar foi aos poucos sistematizando suas principais intuições. Como observou Libanio em seus textos sobre o Concílio, em muitos documentos coexistem elementos do Vaticano I e elementos do Vaticano II, num esforço de síntese, mas que em muitos casos foi se afastando do que foi a intenção do Vaticano II. O que quis o evento convocado por João XXIII, foi mostrar como o “depósito da fé” continuava sendo fonte de vida para as gerações futuras. Por isso, mais que novos “dogmas”, ele propôs o aggiornamento, ou seja, a atualização do que a Igreja ao longo do tempo tinha elaborado como elementos importantes para a caminhada da fé e a prática cristã.
Christoph Théobald, teólogo jesuíta alemão pertencente à Província jesuíta francófona da Europa, fala que o grande princípio do Vaticano II é o da “pastoralidade” que, ao contrário do que muitos pensam, não corresponde ao elemento “fraco” do pensar teológico, mas mostra justamente o sentido dos principais dados da fé presentes nas Escrituras e na tradição para cada tempo. O que Francisco promoveu, e que Agenor Brighenti e outros teólogos identificam como segunda recepção do Vaticano II, é justamente esse princípio da pastoralidade. Nesse sentido, a sinodalidade é uma das traduções desse princípio, pois recorda vários elementos da compreensão da Igreja e da fé cristã propostos pelo Concílio Vaticano II, mas também busca discernir os sinais dos tempos.
A experiência espiritual de Francisco, que bebeu na fonte dos Exercícios Espirituais, o preparou para mostrar que o princípio da pastoralidade necessita de discernimento, ou seja, saber descobrir nos sinais dos tempos o que o Espírito continua dizendo hoje à Igreja. Os muitos conflitos que atravessam o corpo eclesial, entre espiritualidades, grupos e interesses distintos, não podem ser lugar de divisão, mas devem, poliedricamente, ser conjugados para que, dessa forma, todos os membros do corpo eclesial reconheçam não só suas diferenças, mas o que que os une, e o que o aporte de cada um contribui para enriquecer o todo.
Francisco era um homem sábio. Havia aprendido que as reformas não se impõem de cima para baixo. O caminho no qual ele enveredou a Igreja não está concluído. Na verdade, é o caminho que deve sempre começar de novo. Nesse sentido, acredito que a própria ideia de reforma, como já havia intuído outro grande reformador no século XVI, Martinho Lutero, lembra que a Igreja está sempre em reforma, pois seu Senhor a chama sempre de novo a descobrir-se convocada à conversão. Sob muitos pontos de vista, o legado de Francisco é o do próprio Evangelho, que, como diz o nome, é Boa Nova, e deve alimentar a existência de cada crente em cada época em que ela se desdobra.