12 Junho 2025
Em abril, uma vítima de abuso sexual cometido por um padre há mais de 50 anos criou a primeira Rede de Sobreviventes de Abuso Eclesiástico do Brasil.
A reportagem é de Eduardo Campos Lima, publicada por Crux, 12-06-2025.
O país sul-americano teve pelo menos 148 casos de crianças e adolescentes abusados por membros do clero desde 2000, segundo um estudo recente, mas os números podem ser muito maiores.
Valdea Caratchuk, moradora de Curitiba, no Paraná, redescobriu o que lhe aconteceu há apenas 11 anos, durante terapia, após décadas escondendo o ocorrido sob camadas de medo e vergonha.
“Voltei às memórias da minha infância e pude ver perfeitamente o que o padre fez comigo há 57 anos na paróquia”, disse ela ao Crux.
Sua mãe, viúva, ganhava a vida como costureira para a paróquia. Caratchuk, a caçula de quatro irmãos, levava as peças para a igreja, pois sua mãe havia passado por uma cirurgia na perna.
"Ele me pegava nos braços... Foi assim que aconteceu", ela lembrou.
Caratchuk não tem certeza de quantas vezes foi abusada. Ela sabe que o padre permaneceu em sua cidade por apenas dois anos e acredita que outras meninas possam ter sido igualmente atacadas. Mas ela não pode acusar o padre de nada agora, porque ele morreu há quatro anos e uma lei proíbe que as pessoas manchem a memória do falecido.
“O prazo prescricional expirou há muito tempo. Então, estou de mãos atadas em relação ao meu próprio agressor”, disse Caratchuk.
Sua mãe, falecida anos atrás, nunca soube o que aconteceu com ela. Ela contou apenas a uma de suas irmãs, que coincidentemente teve seu casamento celebrado pelo mesmo padre.
Por décadas, o crime a assombraria. Ela desenvolveu uma verdadeira repugnância por padres e acabou abandonando a Igreja, tornando-se espírita, seguidora da doutrina do escritor francês Allan Kardec, que tem grande número de adeptos no Brasil.
Caratchuk percebeu que a cura dependia de ela falar sobre o crime, e o fez em algumas ocasiões, às vezes para plateias relativamente grandes, durante eventos de coaching e mentoria.
No fim do ano passado, ela assistiu ao documentário americano-canadense Sugarcane, sobre o sistema de escolas residenciais indígenas canadenses, contaminado por abusos e outras violações de direitos humanos.
“Fiquei muito impactada pelo filme e decidi que era hora de criar um grupo no Brasil para sobreviventes de abuso”, explicou ela.
Ela procurou ajuda online e descobriu o livro Pedofilia na Igreja, publicado pelos jornalistas Fábio Gusmão e Giampaolo Morgado Braga em 2023.
“Quando estávamos escrevendo o livro, percebemos que as vítimas não tinham nenhum tipo de apoio. Todos se concentravam em punir os perpetradores, algo de fundamental importância, mas as vítimas eram totalmente abandonadas”, disse o escritor Braga ao Crux.
Após denunciar os abusos sofridos, a maioria delas perderia sua comunidade – que em muitos casos fica do lado do agressor – e até mesmo suas famílias, o que colocaria o crime em dúvida.
“Eles seriam impedidos de confiar em sua própria fé, que também havia sido impactada pelo agressor”, disse Braga.
Ele e Gusmão acompanhavam o trabalho dos grupos de sobreviventes de abuso nos EUA e em países europeus e sabiam da importância que eles tinham para as vítimas. Quando Caratchuk ligou para Braga, ele a aconselhou a lançar uma iniciativa como essa.
Logo, ela descobriu online a rede de sobreviventes argentinas e entrou em contato com eles. Desde então, o grupo a tem ajudado a estruturar o capítulo brasileiro da rede. Caratchuk tem participado dos encontros semanais.
“Fiquei surpresa quando percebi que todos os países da América do Sul já tinham uma rede de sobreviventes de abusos na Igreja, exceto o Brasil”, disse ela.
Seu grupo agora é formado por uma ativista que trabalha pela proteção de crianças e uma advogada. Caratchuk espera que a rede cresça em breve, apesar das dificuldades impostas pela realidade brasileira.
“A mídia no Brasil tem medo de falar sobre abusos clericais, porque teme ações judiciais de grupos da Igreja. Mas temos que seguir em frente”, disse ela.
Para Braga, a criação de uma rede de vítimas é fundamental. “Essas pessoas precisam receber apoio. Elas precisam de aconselhamento psicológico e jurídico. Elas precisam ver outras vítimas e entender que não estão sozinhas”, disse ele ao Crux.
Caratchuk disse que espera poder ajudar algumas dessas pessoas. “Estou me formando como terapeuta para trabalhar com as vítimas”, disse ela.