03 Outubro 2024
Quando ele morreu em 2012, aos 85 anos, o lembraram como “um guia exemplar”, “formidável pregador e confessor”, “um padre”. Mas a história desse padre carismático que educou gerações inteiras, “sempre atento aos pequenos”, esconde um lado obscuro que os próprios jesuítas, a ordem religiosa à qual ele pertencia, decidiram agora trazer à luz. Ao longo dos anos, segundo La Repubblica, o padre Sauro De Luca, esse é o seu nome, molestou sexualmente cinco garotas menores de idade na Itália, mas o número de vítimas poderia ser maior e a natureza dos abusos mais grave.
A reportagem é de Iacopo Scaramuzzi, publicada por La Repubblica, 01-10-2024.
O sacerdote não era uma pessoa qualquer. Natural de Bolonha, de 1967 a 1998 foi o responsável nacional do Meg, o Movimento Eucarístico Juvenil, o organismo da Companhia de Jesus que, entre reuniões paroquiais e acampamentos de verão, trata da animação dos jovens. Na Itália, é uma instituição de renome: hoje há cerca de 2.500 inscritos, e nas décadas passadas havia ainda mais. Como diretor nacional, o padre De Luca percorreu as numerosas seções nas várias cidades italianas por trinta anos.
Foi nesses contextos que ocorreram os abusos sexuais. O padre De Luca era admirado e reverenciado, se apartava para uma conversa espiritual com uma adolescente que confiava nele e, longe de olhares curiosos, a molestava. Em alguns casos, as moléstias se prolongaram no tempo. Há pelo menos cinco vítimas, que permaneceram em silêncio por muitos anos. Elas tinham entre 14 e 16 anos de idade na década de 1990 e hoje são mulheres na faixa dos 40 e 50 anos. “Elas sofreram uma grande ferida”, relata o padre Renato Colizzi, atual diretor do Meg, que decidiu iniciar um ‘caminho da verdade’ sobre todo o caso: “Um enorme desconforto que exigiu, após uma fase de remoção, anos de psicoterapia, reelaboração, um percurso de conscientização”. Duas delas decidiram romper o silêncio anos atrás, em 2010. Entraram em contato com a província italiana da Companhia de Jesus, que naquele ano, na onda do escândalo de pedofilia que explodiu em toda a Europa, havia nomeado um responsável pelos abusos. “O delegado conseguiu iniciar as investigações, o padre De Luca confessou, aceitou as medidas restritivas e foi transferido de Pescara para a enfermaria Gallarate, onde morreu dois anos depois de câncer”, conta o padre Colizzi. O padre viveu seus últimos dois anos como “recluso”.
Os abusos do padre De Luca na época não se tornaram públicos. No entanto, em março passado, três outras vítimas - mas é mais correto chamá-las de sobreviventes - entraram em contato com os jesuítas para denunciar, por sua vez, os assédios que sofreram do padre Sauro. A modalidade das agressões é idêntica, ainda estamos na década de 1990, as cidades mudam. De fato, os cinco casos de abuso ocorreram durante encontros do Meg em diferentes cidades, do norte ao sul da Itália.
Circunstâncias que fazem suspeitar que se tratava de uma modalidade de ação sistemática e que, portanto, as vítimas do padre De Luca, que também foi reitor do Colégio Universitário de Abruzzo de 1999 a 2005, poderiam ser muitas mais, em anos diferentes e em várias outras cidades italianas.
“Ninguém tem ideia de quantas vítimas podem existir na Itália”, admite Colizzi. Nunca houve uma violência carnal de fato? “Até o momento, pelo que sabemos, não”.
Levantar o véu pode reservar surpresas. Não seria uma novidade na Igreja: homens carismáticos, que efetivamente fizeram muito bem - o padre De Luca liderou o movimento juvenil na Igreja pós-Concílio com energia e criatividade – e mesmo assim escondiam um lado monstruoso.
Na França, a história de violências sexuais do Abbé Pierre acaba de ser revelada, antes foi a vez de Jean Vanier, mas para ficar na Itália e nos jesuítas, um julgamento canônico está em andamento no Vaticano contra Marko Rupnik, famoso mosaicista recentemente expulso da Companhia de Jesus, acusado por várias mulheres de abusos sexuais prolongados e de consciência.
“Com sentimentos de grande pesar pelas pessoas afetadas e de profunda vergonha pelos atos cometidos, quero antes de tudo pedir perdão às vítimas sobreviventes e às suas famílias”, frisa o padre Colizzi. Quando as três últimas vítimas se apresentaram há alguns meses, o jesuíta reagiu.
“Assim que entramos em contato, optamos por colocar o sofrimento delas no centro e abrir um canal com aqueles que ainda não se manifestaram”, diz ele: “Eu gostaria, portanto, de fazer um apelo, convidando qualquer um que tenha sofrido abusos no Meg ou que tenha conhecimento de fatos semelhantes a entrar em contato com nossa delegada, a Dra. Grazia Villani”, uma pessoa que vem lidando com abusos na Igreja há anos e que será assistida pela associação Meter de Dom Fortunato di Noto. Os jesuítas também estão considerando a possibilidade de reparações: “Estamos pensando em uma forma de reparação a ser acordada com as vítimas sobreviventes, caso assim desejarem”, explica Colizzi.
É uma espécie de “troca de paradigma”: “Antes, o bem maior era responder às solicitações das vítimas que se apresentavam e, ao mesmo tempo, ‘proteger a instituição’: agora queremos ajudar as vítimas que ainda estão tendo dificuldades para elaborar, sem por isso jogar lama na instituição”.
Em seguida, será preciso cavar no passado. O Meg pretende publicar um relatório, dentro de um ano, sobre os abusos cometidos pelo padre De Luca. Ele conterá o que já é conhecido hoje e o que surgirá a partir de hoje.
“Estamos cientes de que a Companhia não fez tudo o que deveria ou poderia ter feito”, admite o padre Colizzi. “Fui informado de denúncias orais que datam da década de 2000 e que provavelmente foram subestimados, porque não nos parece, até o momento, a partir de uma investigação inicial nos arquivos, que algo tenha sido feito para entender melhor o que estava acontecendo na época. Um capítulo do relatório terá, portanto, que tratar da responsabilidade da Companhia de Jesus”, explica com calma o jesuíta. “Queremos viver essa fase de escuta como um caminho da verdade, porque a verdade é o primeiro passo de um possível processo de cura e libertação”, afirma, “para as vítimas e para nós”.
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O 'mea culpa' dos jesuítas sobre o padre dos jovens: “Abusos de cinco garotas, pedimos perdão” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU