07 Junho 2025
“Não em nosso nome”. O chamado urgente aos judeus e judias brasileiras contra o genocídio em Gaza.
A carta é de Peter Pál Pelbart, professor titular de filosofia na PUC-SP e autor, entre outros livros, de O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento (n-1 Edições), publicada por A Terra é Redonda, 05-06-2025.
1.
O Rosto do Outro diz: Não matarás! Esta é a expressão maior da ética judaica, diz o pensador Emmanuel Lévinas.
Ora, o que mais vemos hoje são rostos de palestinos suplicantes perguntando: Por que nos estão matando? Os palestinos da Faixa de Gaza estão morrendo de fome, de sede, de falta de remédio, de drones assassinos, de bombardeios aéreos, de deslocamentos forçados, de exaustão, de terror psicológico e físico. Eles estão enterrando seus bebês às dezenas todos os dias, seus pais, seus maridos, suas mulheres, por vezes famílias inteiras, e nós vemos diariamente em seus rostos devastação e revolta, fome e súplica.
Imaginemos por um instante se dois milhões de israelenses fossem submetidos por um Estado estrangeiro invasor a um confinamento equivalente. Se mais de quinze mil bebês judeus tivessem sido assassinados, outro tanto de mulheres judias massacradas.
Imaginemos dois milhões de israelenses judeus cercados por todos os lados, morrendo de fome, de sede, de doenças, de falta de medicamentos, em cidades devastadas, sem eletricidade, sem telefonia, tendo que se deslocar incessantemente de um lado a outro, de uma cidade à outra, a pé, em busca de uma ração eventual, à mercê de bombardeamentos aleatórios, submetidos à humilhação, à despossessão, à destruição de suas condições de existência mínima, e à ameaça explícita que paira no ar propugnando seu extermínio total.
Não se levantaria o mundo ocidental em uníssono denunciando um novo Holocausto, um Genocídio, uma barbárie sem precedentes, e utilizando todos os recursos de pressão econômica, midiática, militar, atômica se necessário, para se contrapor e tentar evitar a tempo tamanha hecatombe? Não estaria a Europa, sempre tentando expiar sua culpa, e os Estados Unidos, sempre aliados incondicionais, enviando à região suas frotas navais equipadas até os dentes?
Vão me dizer que esse cenário imaginado já aconteceu de fato durante a Segunda Guerra Mundial, e que ninguém se levantou contra ele a tempo!!! É verdade! E esta mancha há de macular para sempre a história europeia e estadunidense. Na época, pelo que nos dizem, a maioria não sabia dos campos. E os poucos que sabiam, do papa ao presidente norte-americano, nada fizeram. E é verdade!
Mas hoje todos nós sabemos, vemos ao vivo e a cores na televisão e nas redes sociais, e ainda assim assistimos calados, como se não nos dissesse respeito. Mas nós sabemos! Nós vemos! Nós testemunhamos! Por que nos calamos?
O governo de Israel alega estar defendendo Israel e evitando que um Holocausto se repita: nunca mais! e pretende que o faz em nome dos judeus e judias de todo o mundo. Não em nosso nome, gritavam os estudantes judeus em Berlim ou Nova York há meses atrás, antes de serem presos pela polícia.
O Estado de Israel não recebeu da diáspora judaica qualquer procuração de exterminar, em seu nome, a sociedade palestina e expulsá-la de sua terra, muito menos de dizimá-la. Os delírios de Donald Trump sobre a Riviera do Oriente Médio, bem como dos ministros do governo israelense que propugnam uma Nakba definitiva ainda deverão ser julgados pela história, junto com seus perpetradores.
2.
Qualquer judeu ou judia, por mais afastadx que esteja da vida da comunidade judaica, por mais liberadx que se sinta de toda marca referente à vida judaica em sua dimensão cultural, religiosa ou comunitária, ainda assim, na maioria dos casos sobreviveu de algum modo a uma Catástrofe coletiva explicitamente dirigida contra sua ascendência judaica.
Por isso eu me permito dirigir-me a todx e qualquer judeu ou judia brasileirx que ainda guarda algum sentimento de repulsa por toda e qualquer guerra genocida, o que dirá de uma cometida por judeus. Dirijo-me também especificamente a todx e qualquer judeu ou judia brasileirx, que tem alguma influência pública, escrita, oral, midiática, acadêmica, institucional, científica, política, artística, religiosa, econômica (e não são poucos – mas tal chamado obviamente é extensível a todxs), porque sei que nada perturba mais o establishment israelense do que manifestações de protesto vindos de judeus insubmissos espalhadas pelo mundo.
Manifestações contra a política do governo israelense ocorridas fora de Israel são imediatamente desqualificadas por sua imprensa de antissemitas, e com isso até são usadas para fortalecer a crença encobridora de que “todos estão contra nós”. Mas quando elas são feitas por judeus, esta acusação não tem como sustentar-se – no máximo podem ser qualificadas de traidoras. Talvez seja este o único elemento de pressão que nos resta. E vai que essa onda pega, e cai por terra o álibi de que Israel age em nome e em defesa de todos os judeus!
Não, o que está em xeque não é a sobrevivência do povo judeu – que a política israelense compromete frontalmente, inflando o antissemitismo pelo mundo – mas a sobrevivência do governo mais truculento, fascista e corrupto da história daquele país. E obviamente a sobrevivência do povo palestino.
Sendo assim, ciente do poder multiplicador que a ascensão econômica e a inserção social nos mais diversos âmbitos da sociedade brasileira franqueou aos seus judeus nas últimas décadas, penso que temos o dever ético de nos manifestarmos publicamente e incentivar a maioria silenciosa a criar coragem para desafiar a tutela ideológica e política que Israel exerce sobre as instituições e as comunidades judaicas, silenciando-as ou obrigando-as a um alinhamento automático.
3.
Dois artigos recentes no jornal Folha de S. Paulo são um sinal da reviravolta interna que acomete alguns judeus: o texto de Bruno Blecher no último domingo (“Israel é como irmão mais velho que protege e decepciona”[i]) e o do filho de Vladimir Herzog (“Filho de Herzog acusa Israel de matar palestinos de fome”[ii]). Que tais iniciativas isoladas se multipliquem e consigam ressoar com vozes progressistas locais e no exterior, de judeus e não judeus, já seria um ganho.
Escrevo em nome pessoal, mas também em nome da editora que ajudei a fundar há 15 anos atrás, a n-1 edições. Ao lado de nosso catálogo antenado para as questões que revolvem o pensamento contemporâneo, temos tentado intervir no debate público em ocasiões extremas, desde o abjeto assassinato de Marielle Franco, o movimento dos secundaristas, até o mandato macabro de Jair Bolsonaro, a tragédia da pandemia, e vários outros episódios, ligados sobretudo ao fascismo ascendente por toda parte.
Assim, não poderíamos, neste momento, deixar de propor algumas ações ligadas ao contexto atual. Organizamos uma leitura pública do livro de Franco Berardi Bifo (Pensar após Gaza) no Teatro Oficina, bem como um ato público contra a guerra e o genocídio, na Ocupação 9 de julho. Igualmente disponibilizamos vários textos ligados ao assunto no dossiê Terra arrasada.[iii]
A partir da terça-feira passada, passamos a publicar um texto semanal na subsérie “Nakba nunca mais”. Ali está disponível “O luto como resistência. Necropolítica de Israel, da Palestina ao Líbano”, por Dalia Ismail, e ontem subimos o excelente “Todo povo tem direito à existência – mas não a qualquer custo”, por Étienne Balibar. E vários outros virão.
O que antes era vergonha virou cólera. Ainda assim, sentimos que tudo isso é insuficiente. Pois é grande nossa impotência no teatro do mundo.
[i] Acesse aqui.
[ii] Acesse aqui.
[iii] Acesse aqui.