20 Mai 2025
"Frente a inexplicável e injustificável brutalidade e destruição de Gaza, da Palestina continuamos como que adormecidos, quase inativos aceitando a tragédia como um destino, o terror como prática de dominação, o ódio como combustível de conquista e de sobrevivência. Que fazer? Talvez pensar e acreditar que cada uma/um de nós é deus e como deuses podemos tornar novas algumas coisas, como deuses podemos modificar o curso dos acontecimentos, podemos plantar uma árvore, enxugar uma lágrima, denunciar a violência múltipla que nos assola. Deus em nós, deus em múltipla ação amorosa em nós!", escreve Ivone Gebara, religiosa pertencente à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora, filósofa e teóloga, que lecionou durante quase 17 anos no Instituto Teológico do Recife – ITER.
Assistimos hoje mais uma vez a catástrofe (nakba) da morte de milhares e milhares de palestinas e palestinos quase em silêncio, assim como assistimos às muitas tragédias assassinas que cobrem de sangue o nosso mundo. O mais grave é que sabemos da barbárie praticada visto que os meios de comunicação nos instruem quase no momento mesmo dos bombardeios e das muitas mortes. O efeito dessas notícias não é o de protestos e ações imediatas, mas de uma espécie de ‘voyerismo’ que nos assola e quase nos deixa apenas a sensação de sermos informados das tragédias. Parece que essas notícias nos entorpecem e nos contentamos em saber delas como se o nosso interesse fosse o de estar superficialmente informados dos acontecimentos de última hora do mundo e seguir a vida adiante.
Parece que não há mais lugar para o ‘cessar fogo’ interior, fogo da dominação e do ódio que habita nossas entranhas. Este segue sua incontrolável fúria que ordena simplesmente matar porque se está interessado em ocupar espaços de outras vidas como se os ocupantes devessem apenas se calar e não reagir à morte programada. Esse fogo devastador da dominação espalha-se por todos os âmbitos da vida dos seres vivos justificando a destruição, a ocupação e a morte motivada pela ganância afirmada como necessidade de progresso.
Bombas poderosas exterminam pessoas, matam seus campos, seus animais, suas expressões artísticas, suas crenças e seus frágeis sonhos. Bombas e armas fulminantes não pensam, apenas são teleguiadas por seres pensantes que perderam o sentido e o valor da vida. Fazem dela um jogo para proclamar vencedores e vencidos. Regozijam-se quando matam acreditando estarem fazendo o bem para si e para seus mandantes. Vivem o ódio à vida travestido de direito, de pseudoproteção, de falsa justiça e de discursos sobre o amor divino ou o divino amor. Como aparentes vencedores inebriam-se com suas palavras bonitas, porém vazias de compaixão e ternura. Oferecem um futuro radioso para minorias enquanto destroem impiedosamente o presente da maiorias.
Estou farta, assustada e espantosamente atordoada por nossa impotência em parar a guerra na Palestina e em outros lugares. Hoje me atenho a Palestina, em especial à Faixa de Gaza. Minhas entranhas árabes convocam minha palavra e minhas lágrimas me tornam mais uma voz que continua a gritar pelo deserto: Cuidem da vida, Cuidem da vida! Endireitem o caminho do direito e da justiça!
Muitas fotos trazidas à luz do dia nos impressionam. Um pai chorando os restos do filho morto deitado sobre suas vestes ensanguentadas, crianças chorando de fome, jovens com imensas feridas nos corpos... Falta abrigo, comida, água, remédios, escola, hospital, brinquedos. Na guerra tudo é feito para exaltar o sofrimento chamado heroico e seguir matando a vida. Um fino sadismo se espalha pelas telas televisivas mesclado de espanto com a morte de inocentes. Nossa ira momentânea é simplesmente ineficaz!
As grandes nações se calam. Seus interesses escusos não aparecem à luz do dia. Seguem humilhando e afastando de seu caminho os que os atrapalham em seus planos expansionistas, os que julgam inferiores na insana corrida pela dominação. Seguem guiados pela luz intensa da ganância que os habita e os torna senhores do mundo sempre em disputa.
E nós simples cidadãs e cidadãos do planeta que fazemos? Seguimos surdos, não ouvindo os gritos por ajuda dos que são diariamente ameaçados, amordaçados e feridos. Permanecemos em silencio cuidando de nossa própria vidinha e comentando uma ou outra vez algo sobre a tristeza e o pavor das guerras. Afinal não são nossos filhos e filhas, não é nosso país, não é nossa igreja, não é a nossa comunidade, não é nossa cidade que estão sendo dizimados. Podemos nos informar talvez, calar, dormir em paz e de vez em quando depositar algumas moedas nos cofres da solidariedade internacional.
E se parássemos de fazer o que fazemos no cotidiano e saíssemos gritando na frente dos consulados, das fábricas de armas, dos bancos, das representações dos estados, das igrejas, das grandes empresas. Se parássemos de apenas ter pena e lamentar de vez em quando as mortes e provocássemos um impacto maior de não comprar o que nos vendem os grandes cúmplices das guerras, de não trabalhar para eles e em especial para os donos das bombas jogadas na Faixa de Gaza? Parece impossível, parece uma idiotice, uma insanidade a nível mundial pensar assim, mas talvez dessa proposta insana possam nascer iniciativas mais efetivas e continuas.
Minhas entranhas me doem, minha garganta seca, a angústia me toma. Depois da morte de seis milhões de judeus no século passado, ainda não começamos a lamentar nossa nova estupidez... Seguimos com outro massacre e outros muitos massacres como herança para que o próximo século lamente nossos atos, para que depois chorem os nossos mortos frente a estátuas e memoriais que os recordem. E ainda mais, depois produzimos documentários e romances que os retratam e preparamos a próxima produção cinematográfica nascida das histórias de nossa própria destruição. A destruição da Palestina é nossa destruição como é nossa a destruição ocasionada pelas muitas guerras!
Embora pecadora, não quero pecar pelo silencio e pela inação. Quero gritar, gritar mais e convidar toda população ao grito. Quero convidar-nos a ações pequenas e grandes para que acordem em nós a luta pela dignidade de todas as vidas, para que parem os planos de destruição massiva de um povo e de suas tradições milenares.
A quem pertence a Terra? Não aos que a querem apenas para si, para fazer valer seus planos de grandeza, para deixar como herança hotéis de luxo e diversões alienantes. A quem pertence a Terra? A ninguém. Ela é nosso corpo menor e maior se transformando no espaço e no tempo. Ela é a Vida se mantendo através das muitas vidas.
Já não viverei para ver alguns sonhos de justiça realizados. Mas, quero ainda escrever como um grito, como uma lágrima sobre tantas vidas que morrem, vidas que não têm direito ao pão cotidiano e ao cuidado necessário, vidas que apenas nasceram para morrer em tenra idade.
Frente a inexplicável e injustificável brutalidade e destruição de Gaza, da Palestina continuamos como que adormecidos, quase inativos aceitando a tragédia como um destino, o terror como prática de dominação, o ódio como combustível de conquista e de sobrevivência. Que fazer? Talvez pensar e acreditar que cada uma/um de nós é deus e como deuses podemos tornar novas algumas coisas, como deuses podemos modificar o curso dos acontecimentos, podemos plantar uma árvore, enxugar uma lágrima, denunciar a violência múltipla que nos assola. Deus em nós, deus em múltipla ação amorosa em nós!
Infelizmente, estamos morrendo para os discursos sobre mundos inclusivos e interdependentes. Vemos apenas a exclusão e a barbárie tomando conta de nós. Matamos nossas tradições éticas, não sabemos mais o que significa o respeito à vida e nem o que fora outrora o amor ao próximo. Queremos apenas salvar a nossa pele, pois a dos outros não parece ser problema nosso.
O amor se tornou palavra vazia de conteúdo, um balbucio sem sentido, um suspiro vulgar em busca de alguma concretude utilitária. Colocamos nossa força nos tanques de guerra, nas bombas e mísseis de longo alcance. Admiramos o soldado que mata e o comandante que manda matar. Vivemos a obediência aos generais e aos grandes chefes como virtude suprema que merece o sacrifício da própria vida.
Com tremor constato que efetivamente de nada valem as velhas profecias, de nada valem as epistolas e os textos do Evangelho se continuamos a ter um coração de pedra e ação de múmias. Só palavras bonitas e cantos sacros não servem mais para acalmar angústias e o sono das crianças assustadas com o ruído das bombas. As rezas cotidianas, as promessas, os pedidos à Deus nada valem frente ao imediato das crianças famintas, as mortas, as errantes, as sem pais e sem país, crianças que não sabem mais quem são e que dificilmente serão acolhidas.
Basta de vãs palavras. Rasguemos nossas vestes diante das casas oficiais dos senhores da guerra. Façamos algo para tirar-lhes o sossego. Denunciemos seus assassinatos diários com nossas vozes e nossa arte.
Basta de florilégios poéticos sobre o novo papa, o velho papa, o novo governador, o novo deputado, as intrigas palacianas. Basta de apenas falar e não agir. Há que acordar nossa lucidez adormecida. Há que sair às ruas, às muitas ruas e avenidas do mundo. Há que parar de comprar dos vendilhões dos Templos capitalistas e religiosos que ganham milhões com as guerras. Há que mostrar-lhes que não são os proprietários da vida, que a Terra não lhes pertence com exclusividade.
De fato estou angustiada, estou irada, estou chorando como quem perdeu a estrada para chegar em casa, como quem já não tem mais família, nem amigos, nem filhos, nem netas, nem descendência... Choro perdida como aquela criança palestina que gritava em meio aos escombros de sua terra não sabendo quem a tomaria em seus braços e acalmaria seus soluços de dor e abandono.
Meu lamento não é apenas o grito abafado da velhice que vivo, a decepção com nossas lutas e discursos, mas é o grito conjunto de tantas vidas em mim, o grito de minha fé, o grito de minhas entranhas que não querem trair a si mesmas e às forças da vida que ainda a habitam.
Basta de tantas teologias, de conclaves, de eleições, de aulas e escolas sobre deus e seus eleitos. Façamos um esforço e caminhemos juntas/os em muitas frentes. Resistamos ao mau tempo, às tempestades nascidas de cabeças humanas que nos assolam pelo mundo afora lideradas pelo demônio divisor de mentes e corações.
A destruição da Palestina importa. As crianças de Gaza importam. Os rios, o mar e as florestas de Gaza importam. O céu estrelado de Gaza importa. Seus campos de frutos e flores importam. Os artistas e poetas de Gaza importam. Paremos nossas construções de paraísos terrestres com uso exclusivo dos reis e rainhas da terra. Corramos socorrer os caídos nas estradas, os despossuídos de seus bens, os feridos nos muitos campos da vida e construamos juntos algo digno de suas vidas.
Todos somos responsáveis. Todos, todas, todes somos convocados. Nenhuma pessoa está isenta dessa responsabilidade comum de salvar vidas e salvar a terra, nosso corpo maior.
Nossa luta contra a nova Nakba, a destruição da Palestina, tem que ser total, mundial e local afim de eliminar essa ganância mortal que nos assola e que não permite a nós mortais contemplarmos os ‘lírios do campo’ e dar graças a Vida que está sempre querendo dar-nos de seus frutos em abundância.
“Consolai , consolai meu povo”... Falai ao coração de Jerusalém, de Washington, de Paris, de Londres, de Otawa, de Buenos Aires, de Brasília, de Bagdá, de Tóquio, de Pequim, do Cairo, do Congo... Falai a todos os povos para que transformem suas espadas em enxadas, que deixem nascer as sementes, que permitam às crianças de entoar cantos de alegria e às árvores coloridas florescer na primavera. A terna justiça pode estar mais perto se deixarmos nosso coração ouvir os clamores dos oprimidos, aqueles que são nossa imagem e semelhança e que movem nossas entranhas e fazem nascer nossos gritos.
A amorosa justiça estará ainda mais perto se formos juntos/as ao banquete onde se come e bebe sem dinheiro, onde a irmandade é real pois podemos dizer em verdade uns aos outros: “Eis-me aqui”... “Esse pão é nosso e é de cada dia”, “Essa terra é nosso corpo comum”.
Amém!