A amizade ecológica como contraponto ao antropocentrismo. Entrevista especial com Jelson Oliveira

Precisamos renovar a forma de vivermos em comum e abandonarmos a perspectiva centrada no ser humano e sua lógica predatória. A tarefa da Filosofia da Tecnologia é fazer da ética o parâmetro para conter tanto a tecnofobia quanto a tecnofilia

Foto: Antônio Cruz | Agência Brasil

Por: Márcia Junges | 30 Mai 2025

Tornados, enchentes, aumento da temperatura da Terra, extinção de espécie e refugiados que fogem das consequências de desastres ambientais. A mudança climática é uma realidade que nos afeta a todos, mas a algumas pessoas com maior intensidade, como as populações pobres, negras e indígenas, as mulheres, idosos e crianças. “Esses são os primeiros a sofrerem as consequências, porque têm sido mantidos em situações de exclusão e vulnerabilidade, vivendo em situação precária em grandes centros, em regiões de alagamento ou deslizamento, ou em terrenos áridos. Isso significa que o mesmo sistema que fabrica a crise climática também tem fabricado e mantido a imensa desigualdade social que divide a humanidade entre os que podem enfrentar os dilemas da crise e aqueles que vivem sob a catástrofe sem esperança”. A reflexão é do filósofo Jelson Oliveira na entrevista exclusiva que concedeu ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU por e-mail. O mesmo sistema que fabrica a crise climática fomenta e mantém a desigualdade social e “divide a humanidade entre os que podem enfrentar os dilemas da crise e aqueles que vivem sob a catástrofe sem esperança”.

Em sua análise, não nos cabe a apatia frente a esse cenário surgido por conta da ação humana e sua “civilização tecnológica”, como teorizou Hans Jonas em um dos livros sobre ética mais importantes do século XX. Esse paradigma civilizacional batizado de Antropoceno por inaugurar uma era na qual os impactos humanos alteram e ameaçam a vida, literalmente preda a natureza como fonte inesgotável de recursos e precisa ser revisto com urgência, situação à qual a Filosofia tem grande contribuição a dar. “A tecnologia, como toda ação humana, é eticamente ambivalente: pode ser boa, mas também pode ser má. A tarefa da ética é orientar para minimizar seus impactos negativos, fugindo tanto da tecnofobia quanto da tecnofilia ingênua”.

Evocando a contribuição das encíclicas Fratelli Tutti e Laudato Si’, ambas promulgadas pelo Papa Francisco, Jelson Oliveira retoma a importância de nos abrirmos à “casa comum” que todos e todas habitamos. Precisamos superar o antropocentrismo que marca nossa civilização, bem como enfrentar o niilismo diagnosticado por Nietzsche no longínquo século XIX. Esse “hóspede estranho”, nas palavras de Hans Jonas, requer outras estratégias de vida em comum, e para isso é fundamental que nossa geração se ocupe em pensar alternativas ao desenvolvimento. “A amizade ecológica – como aquela que Rousseau, por exemplo, estabeleceu com os vegetais ou que Thoureau experimentou com os bosques, ou Francisco de Assis com os animais e todos os demais seres – pode ser uma forma de renovação de nossa forma de viver”.

Jelson Oliveira (Foto: Arquivo Pessoal)

Jelson Oliveira é graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR, onde também cursou especializações em sociologia política e gestão e liderança universitária e o mestrado em Filosofia. É doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCAR com a tese Para uma ética da amizade em Friedrich Nietzsche. Docente na PUCPR, é membro do Grupo de Pesquisa Hans Jonas do CNPq, coordenador do GT Hans Jonas, membro do GT de Filosofia da tecnologia e da técnica e do GT Nietzsche da ANPOF (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia). É diretor-fundador da Cátedra Hans Jonas da PUCPR, criada em 2020 e autor de inúmeras obras, entre elas Ética e tecnologia: ensaios sobre Levinas, Técnica e Leibniz (Toledo: Instituto Quero Saber, 2024), Moeda sem efígie: a crítica de Hans Jonas à ilusão do progresso (Curitiba: Kotter Editorial, 2023) e Filosofia da tecnologia: seus autores e seus problemas – Vol. 2 Caxias do Sul: EDUCS, 2022).

Jelson ministrará a conferência Justiça climática e responsabilidade ecológica na tarde de 24-06-25 no III Simpósio Internacional de Ética, Política e Direito – Justiça ambiental e crise climática: dilemas ético-políticos do antropoceno, organizado pela Filosofia Unisinos, cujas inscrições são gratuitas e podem ser feitas aqui.

Eis a entrevista.

IHU – O que é a justiça climática? Quais são seus pressupostos fundamentais?

Jelson Oliveira – A justiça climática tem sido um conceito utilizado para refletir sobre as discrepâncias de responsabilidades na produção da emergência climática e, ao mesmo tempo, das diferentes formas como as suas consequências são sofridas pelos seres humanos e não-humanos ao redor do mundo. A ideia, portanto, é politizar o debate ambiental e sua grande contribuição é retirar o muro ideológico que muitas vezes tem separado as lutas ambientais das lutas sociais. Compreendido como uma espécie de “movimento social unificado”, a justiça climática articula diferentes organizações, pesquisadores, acadêmicos e militantes para fazer frente aos reiterados fracassos da governança climática. Por isso, seu lugar de gestão tem estado ligado aos grandes eventos internacionais que pensam as estratégias de enfrentamento do aquecimento global, especialmente as COPs (aliás, a partir da COP13, realizada em Bali, o movimento ganhou expressão mundial, com o slogan ‘Justiça climática agora!’ e o lançamento de um documento com uma pauta de reivindicações e contribuições).

Dessa forma, falar em justiça climática inclui criticar as medidas tomadas até agora e pensar o problema em duas perspectivas: a primeira delas é processual e a segunda distributiva. Do ponto de vista processual, a questão diz respeito a quem participa das decisões e, portanto, à urgência de que os povos mais vulneráveis e que vêm sofrendo as consequências catastróficas da crise sejam ouvidos e tenham seus saberes e experiências reconhecidos (nisso falamos também de justiça epistêmica). Do ponto de vista distributivo, trata-se de perguntar sobre quem produziu a crise, quem tem mais responsabilidade sobre ela, quem deve ajudar mais a limpar a sujeira que foi acumulada. Nesse aspecto, todos sabemos que os países mais pobres (geralmente do Sul Global) têm pouquíssima responsabilidade sobre a produção da crise, enquanto os países do Norte Global enriqueceram precisamente despejando os desejos do progresso na atmosfera. Dessa forma, é preciso pensar medidas que restabeleçam uma justiça em relação ao problema. Uma justiça que diga respeito às populações humanas, mas também aos seres extra-humanos (cuja onda de extinção alcança índices alarmantes) e às gerações do futuro (no que diz respeito à justiça intergeracional e à garantia de equidade entre as gerações no que tange ao acesso aos bens da natureza).

Exclusão e vulnerabilidade

Quando olhamos para os dados, vemos que o problema climático é um problema que afeta, em termos humanos, de forma mais grave, as populações pobres, negras e indígenas (o que significa que é um problema de racismo climático), as mulheres (problema de gênero), os idosos e as crianças. Esses são os primeiros a sofrerem as consequências, porque têm sido mantidos em situações de exclusão e vulnerabilidade, vivendo em situação precária em grandes centros, em regiões de alagamento ou deslizamento, ou em terrenos áridos. Isso significa que o mesmo sistema que fabrica a crise climática também tem fabricado e mantido a imensa desigualdade social que divide a humanidade entre os que podem enfrentar os dilemas da crise e aqueles que vivem sob a catástrofe sem esperança.

 Isso significa que essas populações são vítimas de “injustiças” (1): são menos responsáveis pela fabricação da crise, sofrem os efeitos primeiro e de forma mais dramática e, depois, sem meios de enfrentamento e sem condições de reestruturar suas vidas, acabam padecendo o agravamento da pobreza e da desigualdade. Tudo isso faz com que a justiça climática exija uma leitura crítica do atual modelo socioeconômico, seja em termos éticos (cada um de nós deve reavaliar seus estilos de vida), quanto, sobretudo, políticos (como sugeriu Hickel (2), é preciso “libertar os países do Sul Global das apropriações imperialistas, permitindo-lhes mobilizar os seus recursos para o atendimento de necessidades humanas, em vez de viabilizar o consumo no Norte Global”.

IHU – A justiça climática operaria como uma espécie de fiel da balança em relação ao peso das ações humanas no Antropoceno? Por quê?

Jelson Oliveira – Sem dúvida. Pensando que ela contribui para o alcance do equilíbrio e da justa medida no que diz respeito à responsabilidade, à imputação dos encargos e à distribuição equitativa dos prejuízos, a justiça climática não é só necessária, quanto urgente no contexto do Antropoceno, na medida em que ela mostra que as mudanças fabricadas antropicamente atingem de forma desigual as pessoas e os demais seres ao redor do mundo. Não é possível que permaneçamos apáticos enquanto a emergência climática se agrava e enquanto centenas de milhares de pessoas ao redor do mundo sofrem as consequências. Essa é uma questão central para qualquer pessoa ou governo que se pretenda justo: os dados mostram que os países ricos do Norte Global têm acumulado uma grande responsabilidade, pelo menos desde o século XVII.

O professor Hickel, por exemplo, afirma de maneira enfática que “essa crise se deve sobretudo aos países abastados do Norte global”, porque “o Norte global é responsável por 92% de todas as emissões que superam os limites do planeta, definidos pelos cientistas como 350 ppm de concentração de CO2 na atmosfera – nível ultrapassado em 1988” (3). Por outro lado, os países do chamado Sul Global não apenas estão dentro de seus limites de emissões, não tendo contribuído “em nada para a crise”, como também são os que registram “a imensa maioria dos danos, incluindo de 82% a 92% dos custos econômicos do colapso do clima, e de 98% a 99% das mortes associadas às mudanças climáticas” (Hickel, 2023, p. 310). Muitas outras pesquisas confirmam essa perspectiva. A filósofa britânica Elizabeth Cripps (4), lembra dados do Stockholm Environment Institute, que dão conta de que os 10% mais ricos do mundo responderam por 52% das emissões de carbono de 1990 a 2015, enquanto o 1% mais rico produziu mais que o dobro das emissões da metade mais pobre do mundo. Williams (5), por outro lado, lembra dados do Climate Accountability Institute, que dá conta de que as 20 maiores empresas de petróleo, carvão e gás produziram 35% das emissões mundiais entre 1965 e 2018. Tudo isso para enriquecer os países que hoje se recusam a assumir a sua responsabilidade e equilibrar a balança que pesa para o lado dos países mais pobres.

É bom lembrar que essas teses se alinham diretamente às propostas elaboradas pelos reitores de 230 Universidades Ibero-americanas que estiveram reunidos na PUC do Rio de Janeiro entre os dias 27 e 29 de maio de 2025: entre as propostas discutidas – que serão levadas à COP30 – está a ideia de que os países ricos, os organismos multilaterais e os agentes financeiros devem impulsionar uma política de remissão da dívida pública dos países pobres para investimentos em ações de preservação ambiental. Os autores da carta final do evento falam de uma verdadeira “dívida ecológica” dos países ricos para com os pobres. Isso é realmente uma proposta que deve ser levada a sério.

IHU – Qual é o nexo entre justiça climática e responsabilidade ecológica? Como essa necessária ética da responsabilidade aponta para uma filosofia da técnica?

Jelson Oliveira – Todos nós sabemos que a emergência climática tem sido produzida ao longo dos últimos séculos por um modelo de civilização que está baseado na exploração desmedida da natureza. O filósofo alemão Hans Jonas (I), autor de um dos livros mais importantes da ética do século XX, chamou essa de uma “civilização tecnológica”, deixando claro a relação entre a degradação da natureza e o avanço dos poderes tecnológicos sobre a natureza. O diagnóstico de Jonas não é estranho a quem presta atenção ao problema ambiental: para ele, o avanço de uma visão mecanicista e materialista da natureza, cuja premissa é a ideia de “matéria pura”, ou seja, matéria inerte disponível para a exploração (incluídos aí todos os seres vivos, a começar pelas plantas e animais não humanos, mas também, de alguma forma, os próprios humanos), acabou por abrir a natureza para a “vontade de ilimitado poder” do ser humano, uma vontade que se revela no afã cego e embriagado pelo domínio de todos os campos da existência planetária e espacial, do micro ao macrocosmos.

Nesse sentido, a filosofia da tecnologia precisa reservar um capítulo para o debate a respeito das consequências éticas da ação técnica, que deixa de ser apenas uma vocação humana na sua relação com o mundo e passa a ser uma expressão desse poder destrutivo, cujas consequências todos e todas nós sentimos hoje em dia, principalmente aqueles e aquelas que vivemos em regiões ou situações de maior vulnerabilidade. Além de descrever o fenômeno da técnica de forma histórica e sociológica e de analisar seus aspectos filosóficos, a filosofia da tecnologia precisa, portanto, ter um viés valorativo e se perguntar sobre até onde esse poder em sido benéfico e onde ele deve ser limitado. Essa ideia de limite, claro, não é nada agradável aos agentes tecnológicos, que dão de ombros aos riscos e ameaças, reivindicando liberdade absoluta para as pesquisas tecnocientíficas. Fato é que a tecnologia, como toda ação humana, é eticamente ambivalente: pode ser boa, mas também pode ser má. A tarefa da ética é orientar para minimizar seus impactos negativos, fugindo tanto da tecnofobia quanto da tecnofilia ingênua. Nesse ponto, ao invés de utopias tecnológicas que celebram um progresso que ficou para trás (como eu analisei no meu último livro Moeda sem efígie: a crítica de Hans Jonas à ilusão do progresso; Curitiba: Kotter, 2024), devemos apelar para uma posição mais prudente e responsável, que Jonas chamou de “progresso com precaução”. Para isso não podemos pensar a tecnologia sem ética.

IHU – Pensado na crise climática na qual estamos mergulhados, como o binômio responsabilidade ecológica – justiça climática pode auxiliar em uma mudança de paradigma existencial para garantir a vida do planeta e das gerações futuras?

Jelson Oliveira – Toda ética quer, no fundo, mudar o estilo de vida e os comportamentos humanos em vista do bem comum e, nisso, ela toca em questões existenciais profundas. O paradigma que vivemos pode ser classificado como um niilismo no qual, segundo as palavras de Jonas, “o maior dos vazios se uniu ao maior dos poderes; a maior das capacidades, ao menor dos saberes sobre como usar tais capacidades”. Para mim, essa é a encruzilhada existencial de nossa geração – a geração que tem a responsabilidade de enfrentar de forma decisiva a crise que herdamos das últimas três ou quatro gerações que nos antecederam. Essa é uma crise existencial precisamente porque ela diz respeito a esse vazio asfixiante que foi diagnosticado por autores como Nietzsche (II) e que é vivido hoje por nós, nossas crianças e jovens. Não é à toa que estamos tão reféns das telas e das redes sociais e tão vítimas de uma crise de sentido e de propósito de vida. Essa é uma crise de futuro, uma crise que nos cega diante da enorme tarefa que nós temos pela frente: como cuidar do futuro se estamos tão desanimados, ansiosos, frustrados e adoecidos?

Nesse ponto, precisamos desenvolver uma nova sensibilidade em relação às causas ambientais, às causas animais e vegetais, às causas de gênero, de raça e às causas sociais como um todo. Conjugadas, essas causas tendem a nos mostrar que vale a pena viver e que viver é construir o mundo para nós e nossos descendentes. Se o “presenteísmo” nos cega e asfixia, o futuro deve nos oferecer um ar renovado, um sentido existencial, cujas raízes podem estar, como muitos autores vêm sugerindo, numa qualificação de nossas experiências existenciais. Isso implica rever nossos hábitos de consumo, nossas formas de relacionamento, nossa proximidade com o mundo natural. Cada um de nós precisa se abrir à causa da “casa comum” – para usar a expressão tão feliz do Papa Francisco. Esse “comum” da casa que habitamos, ou seja, do planeta, oferece para nós o sentido de uma vida que é partilhada com outros, humanos e não-humanos. Sem isso, não haverá futuro.

IHU – A enchente de 2024 no RS nos coloca frente a uma situação única sob muitos aspectos. Em que medida a justiça climática precisa ser incorporada pelas diferentes esferas do poder público e como isso aponta para uma ética da responsabilidade?

Jelson Oliveira – É óbvio que as cenas que foram vividas pelos moradores das regiões afetadas pelas enchentes no Rio Grande do Sul são absolutamente terríveis. Ninguém poderia imaginar aquilo tudo. Entre as muitas reportagens que li, vi e ouvi sobre o tema, uma delas me chamou atenção: um canal de TV entrevistava um pescador que esperava, amedrontado, as águas baixarem e tentava se consolar dizendo: “fazer o que, se é vontade de Deus?” Essa declaração mostra precisamente o grande desafio que a justiça climática e a responsabilidade devem enfrentar. Dizer que é vontade de Deus pode ser um bom consolo, mas escamoteia a verdade dos fatos: a verdade, por exemplo, de que autoridades políticas e os setores do poder público foram responsáveis por fabricar aquela enchente, seja porque flexibilizaram leis ambientais, seja porque não previram com antecedência ou não tomaram as medidas técnicas adequadas. Aquele senhor, em horário nobre, fez, sem saber, um desserviço à nação quando culpou Deus pelo ocorrido. A responsabilidade é política, econômica, social. A responsabilidade por aquele e por tantos outros eventos climáticos catastróficos é de quem mantém esse sistema de mundo e deixa pessoas vivendo em regiões vulneráveis. Isso tudo indica que nós temos um grande desafio: precisamos urgentemente de uma educação climática, que ajude as pessoas a entenderem o que está em jogo e, quiçá, com isso, assumirem a causa ambiental em suas práticas cotidianas mas, sobretudo, em suas práticas políticas. Isso foi ensinado por uma agricultora de Uganda, Constance Okollet: “Não foi até eu ir a uma reunião sobre mudanças climáticas que ouvi dizer que não era Deus, mas as pessoas ricas do Ocidente que estão fazendo isso conosco” (6). O depoimento é de uma clareza imensa. Que bom que algumas pessoas estão ainda organizando encontros sobre justiça climática; que bom que pessoas como Constance estão indo nesses encontros; que bom que podemos aprender mais sobre as responsabilidades diante dessa crise.

IHU – Qual é a contribuição da Filosofia a partir do legado de Hans Jonas para pensarmos uma outra relação com a natureza e com a vida enquanto totalidade, descentrada do ser humano como aquele que ocupa o lugar de domínio sobre as outras espécies?

Jelson Oliveira – O antropocentrismo é um mal terrível na medida em que ele coloca toda a natureza serviço do ser humano e passa a ideia de que nós podemos tudo, que podemos agir de forma irresponsável, dominando tudo e destruindo o que nos cerca. Esse é um erro que foi amplamente incentivado por muitas filosofias bastante influentes em nossa civilização. Por isso, Hans Jonas se volta ao que ele chama de éticas tradicionais para formular uma proposta ética que fuja do antropocentrismo sem deixar de reconhecer o papel central do ser humano. A filosofia de Jonas quer ampliar a responsabilidade para o âmbito extra-humano, do futuro e para o coletivo. Eu acho que esses três aspectos são os mais relevantes e inovadores de sua proposta ética.

IHU – Nossas sociedades estão cada vez mais imersas em um paradigma tecnológico que operou uma cisão com a natureza, sempre em busca de colonizá-la, aprisioná-la e explorá-la. A partir de Hans Jonas, qual é a relação entre niilismo e tecnologia?

Jelson Oliveira – O niilismo, para Jonas, é fruto do dualismo que tem sido a marca de nossa cultura: ao dividirmos o mundo e o ser humano em dois (o lado espiritual e o lado material; o mundano e o sagrado etc.) acabamos por negar um dos lados. Ocorre que a negação não é só uma atitude de esvaziamento, como já comentei acima. Ela também é uma atitude de negação: querer o nada em vista de uma permissividade geral do fazer/poder (lembremos de Dostoievski, de onde Nietzsche aprendeu que o niilismo se revela como um “tudo está permitido”) transforma-se em uma ação destrutiva precisamente porque esse nada se alia ao poder da tecnologia. Em meu livro Negação e poder: do desafio do niilismo ao perigo da tecnologia (EDUCS, 2018) analisei essa relação problemática entre os dois termos, demonstrando como a obra de Jonas se apresenta como uma alternativa a esse poder negativo, cuja face se apresenta na atitude de destruição, esgotamento e depredação não só das bases da civilização (como é o caso das guerras, que colocam a tecnologia a serviço da morte) mas também da natureza como um todo.

Voltando-se contra a natureza, matando e destruindo de forma irresponsável, a tecnologia se apresenta como o último reduto (o mais recente) do niilismo que se configura como fuga da vida. No meu ponto de vista, quando um país como os Estados Unidos – entre outros – é governado por negacionistas e fanáticos, é isso que está em questão. Negar a emergência climática é outra face do mesmo problema: negando a crise, esses senhores alcançam o direito de continuar ampliando o poder destrutivo, quem sabe investindo em alta tecnologia que promete encontrar a cura para a morte (a deles, obviamente, que podem pagar) ou retirar o ser humano do planeta Terra e fazê-lo viver em outro mundo.

IHU – Há um vislumbre, uma possibilidade de superação do niilismo a partir desse diagnóstico filosófico jonasiano?

Jelson Oliveira – Como marca da nossa cultura, o niilismo não pode ser superado. Mas ele pode ser enfrentado. Jonas fala de uma capacidade de “conviver” com esse “hóspede estranho”. Conviver com o niilismo é não fechar os olhos para ele, é reconhecê-lo como o grande risco de nossa civilização. Só assim, reconhecendo que ele mobiliza nossas ações – inclusive as tecnológicas – nós poderemos afinal encontrar meios para deter o seu avanço. Nietzsche descreveu o niilismo como um grande deserto, que cresce com a força do ser humano. A metáfora é bastante evidente: estamos transformando o planeta num grande deserto, com a continuidade do processo de deflorestação, de morte dos oceanos, de extinção das espécies. É isso que nós podemos evitar apelando para a nossa responsabilidade, uma responsabilidade que é nossa enquanto cidadãos, mas nossa também como agentes políticos. Jonas chama atenção para o papel dos políticos. Infelizmente, o que estamos assistindo, é que os interesses obscurantistas têm imposto as suas agendas de forma irresponsável, fazendo calar todas as vozes que se levantam em favor da proteção ambiental (como ocorreu essa semana com a Ministra do Meio Ambiente e Mudança Climática, Marina Silva, em sessão da Comissão de Infraestrutura do Senado). A nossa tarefa é árdua, portanto, uma tarefa que Jonas classificou como uma “tarefa cósmica”. Se nós teremos êxito? Só as gerações do futuro poderão nos dizer. Agora, nossa responsabilidade nos obriga a fazer algo: nós sabemos, afinal, o que está acontecendo e o que precisa ser feito. Precisamos agir para deter o deserto – inclusive aquele que começa a crescer em nossos corações, na forma do desânimo e da desesperança.

IHU – Qual é a colaboração de Nietzsche para pensarmos a transição da compaixão (Mitleid) à amizade (Mitfreunde) em um paradigma de responsabilidade ecológica?

Jelson Oliveira – O tema da amizade em Nietzsche é um tema bonito e profundo. Ele está, no fundo, denunciando que as relações humanas no Ocidente são fundadas em uma perspectiva fraca, doente e limitada. Ao falar de amizade, ele está falando de um tipo de sentimento capaz de reunir pessoas que possam construir novas relações, dando normas para si mesmas, ou seja, recusando a lógica da moralidade vigente. Talvez essa seja uma pista: será que não precisamos nós, também, hoje, de novos lubrificantes para nossas relações humanas? Será que não precisamos rever, inclusive, as relações que estabelecemos com os demais seres nesse planeta? Embora Nietzsche tenha tratado esse tema em outra perspectiva, ele pode nos ajudar a pensar um tipo de sociedade fundado na amizade. Eu acho interessante que esse tema é um dos pontos altos do texto Fratelli Tutti, lançado pelo Papa Francisco, que dedica um capítulo ao que ele chama de “amizade social”, afirmando que a amizade social “permite que todos sejam reconhecidos, valorizados e integrados” (n. 182). Isso é muito significativo quando pensamos que essa encíclica é uma espécie de complemento político à Laudato Si'. A amizade ecológica – como aquela que Rousseau (III), por exemplo, estabeleceu com os vegetais ou que Thoureau (IV) experimentou com os bosques, ou Francisco de Assis com os animais e todos os demais seres – pode ser uma forma de renovação de nossa forma de viver.

IHU – Qual é o nexo entre soberania e crise climática? Em que medida setores da esquerda precisam repensar suas práticas em função de ainda estarem fixados a um modelo desenvolvimentista que usa recursos naturais finitos em uma economia que é insustentável?

Jelson Oliveira – Tanto a direita quanto a esquerda ainda não foram capazes de pensar uma alternativa ao desenvolvimento, porque ambas seguem a lógica da utopia do progresso tecnológico. Até agora, o máximo que fizemos, foi pensar uma alternativa de desenvolvimento: desenvolvimento sustentável, desenvolvimento verde, desenvolvimento social etc. A questão que se coloca é muito mais profunda: como desenvolver se, para isso, continuamos explorando de forma insustentável a natureza e dos seres humanos mais vulneráveis? Se para ter resultados econômicos de curto prazo precisamos continuar destruindo a Amazônia e os demais biomas? Se o preço do progresso continua sendo a destruição da natureza e a desigualdade social? Essas são questões que, se fôssemos realmente sérios, deveriam estar na pauta principal dos políticos brasileiros. Poucos países do mundo encarnam de forma tão evidente esse dilema como nós. E a resposta não pode ser buscada a não ser refletindo sobre o próprio desenvolvimento, levando em conta suas premissas e suas consequências, redirecionando os benefícios em favor da proteção e da defesa dos mais vulneráveis.

Ninguém é contra o progresso e o desenvolvimento em si mesmo. Mas não podemos assumir que esse é o único modo de viver e ser feliz. É aí que entram as comunidades tradicionais, os indígenas, os quilombolas, os ribeirinhos, as mulheres quebradeiras de coco e tantos outros grupos que representam, para nós, um verdadeiro reservatório moral no que diz respeito às formas de relação entre os humanos e a natureza. Precisamos dar voz e vez para essas pessoas, ouvir seus saberes e conhecimentos e integrá-los às nossas formas de vida. Qualquer um de nós que olhe, agora mesmo, ao seu redor, haverá de se dar conta de quantas incongruências nos cercam, de quantas práticas ecologicamente inviáveis e insustentáveis nós mantemos. Temos de abrir os olhos para ver que há outra forma de viver. A esquerda, que tem sido sensível às causas dessas comunidades e povos, deve valorizá-los de forma mais radical e abrir-se para a ancestralidade que eles carregam. É isso que faz o lema “o futuro é ancestral” ser tão importante e inspirador.

IHU – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Jelson Oliveira – A COP 30 é uma grande oportunidade para que a humanidade enfrente o tema da justiça climática. Recentemente estive em Belém e não podemos deixar de prestar atenção à grande desigualdade social que se soma aos problemas ambientais da cidade que vai receber esse grande evento. Esgotos e lixões a céu aberto, onde se acumulam urubus e meninos de pouca idade, contrastam com as obras monumentais que estão sendo feitas para acolher os visitantes. Acho que a COP 30 não terá chance de sucesso se esse cenário persistir e, principalmente, se essas pessoas marginalizadas não forem ouvidas e não tiverem lugar para a participação ativa. Por isso, espero que as organizações, as igrejas e os movimentos sociais se organizem e façam pressão, e que os governos e autoridades saibam acolher as várias propostas que chegam de quem está vivendo o drama insistente da catástrofe climática. Sem isso, vamos sair de Belém com a mesma indiferença que tem cercado os últimos eventos da ONU, uma indiferença que repercute em nossas práticas cotidianas e nos tornam mais apáticos e irresponsáveis.

Que possamos, ao contrário, ter consciência cada vez maior da gravidade dos fatos e mais ânimo para assumir a nossa tarefa. Também aqui a Filosofia e as demais ciências humanas têm uma responsabilidade central. Nossos cursos e programas de pós-graduação devem contribuir cada vez mais para o aumento da consciência e para ações práticas. Eventos, encontros, pesquisas, cursos e outras iniciativas, como essa da Unisinos, são absolutamente bem-vindas. Isso é também o que tem nos mobilizado no GT Hans Jonas da ANPOF, que reúne pesquisadores e pesquisadoras do Brasil e do mundo e no Centro Hans Jonas Brasil. O tema da justiça climática está na nossa pauta, como forma de dar concretude e atualidade às ideias de Jonas e, sobretudo, trazê-las mais para perto de nossa realidade. Isso tudo vai estar no livro Frágil equilíbrio: justiça climática e responsabilidade que está no prelo, escrito por Grégori de Souza, Thiago Vasconcelos, Lucas Miguel Bugalski e por mim próprio (Caxias do Sul: EDUCS, 2025). É uma contribuição para o debate desde o ponto de vista da filosofia. Quiçá ele possa ser lido e acolhido por todos e todas que partilham esses mesmos ideais.

Notas do IHU

(I) Hans Jonas (1903-1993): filósofo alemão de origem judia. É conhecido principalmente devido à sua influente obra O Princípio Responsabilidade (publicada em alemão em 1979, e em inglês em 1984) à qual se atribui o papel de catalisador do movimento ambiental na Alemanha. Já O Fenômeno da Vida (1966) forma a espinha dorsal de uma escola de bioética nos Estados Unidos, obra profundamente influenciada por Heidegger e que tenta sintetizar a filosofia da matéria com a filosofia da mente, produzindo um rico entendimento da biologia, em busca de uma natureza humana material e moral. Sobre seu pensamento, confira a Edição 540 da Revista IHU On-Line, de 02-09-19, intitulada Hans Jonas. 40 anos de O princípio responsabilidade, disponível aqui.

(II) Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900): filósofo, filólogo, crítico cultural, poeta e compositor prussiano do século XIX, nascido na atual Alemanha. Escreveu vários textos criticando a religião, a moral, a cultura contemporânea, a filosofia e a ciência, exibindo certa predileção por metáfora, ironia e aforismo. É famoso por sua crítica à religião, em especial o cristianismo. Sobre seu pensamento, confira a Edição 127 da Revista IHU On-Line, de 13-12-24, intitulada Nietzsche Filósofo do martelo e do crepúsculo, disponível aqui, de 01-10-2018, intitulada Nietzsche. Da moral de rebanho à reconstrução genealógica do pensar, disponível aqui.

(III) Jean-Jacques Rousseau (1712-1778): filósofo, teórico político, escritor e compositor genebrino cujas ideias influenciaram profundamente todo o Direito e outras áreas das ciências humanas na medida em que desenvolveram e aprofundaram conceitos como Estado, poder e soberania, tais quais conhecemos atualmente. A filosofia política de Rousseau influenciou o progresso do Iluminismo em toda a Europa, bem como certos aspectos da Revolução Francesa e o desenvolvimento dos pensamentos políticos, econômicos e educacionais posteriores, embora grande parte das reflexões rousseaunianas contraste radicalmente com a corrente iluminista, tendo sido classificada como romântica ou até mesmo como irracionalista por alguns de seus pares. Sobre seu pensamento, confira a Edição 415 da Revista IHU On-Line, de 22-04-13, intitulada Somos condenados a viver em sociedade? As contribuições de Rousseau à modernidade política, disponível aqui.

(IV) Henry David Thoreau (1817-1862): poeta, naturalista, pesquisador, historiador, filósofo e transcendentalista norte-americano, mais conhecido por seu livro Walden, uma reflexão sobre a vida simples cercada pela natureza, e por seu ensaio A Desobediência Civil. Sobre seu pensamento, confira a Edição 509 da Revista IHU On-Line, de 21-08-17, intitulada Henry David Thoreau - A desobediência civil como forma de vida, disponível aqui.

Notas do entrevistado

(1) NEWELL, P.; SRIVASTAVA, S.; NAESS, L. O.; CONTRERAS, G. A. T.; PRICE, R. Towards Transformative Climate Justice: Key Challenges and Future Directions for Research. Working Paper, Brighton, UK: Institute Development Studies, v. 2020, n. 540, jul. 2020. ISSN 2040-0209. Disponível aqui.

(2) HICKEL, J. Decrescimento. In: THUNBERG, G. O livro do clima. Tradução de Claudio Alves Marcondes. São Paulo: Companhia das Letras, 2023, p. 312.

(3) HICKEL, J. Decrescimento. In: THUNBERG, G. O livro do clima. Tradução de Claudio Alves Marcondes. São Paulo: Companhia das Letras, 2023, p. 310.

(4) CRIPPS, E. What Climate justice means and why we should care. London; Dublin: Bloomsbury Continuum, 2022, p. 51.

(5) WILLIAMS, J. Climate change is racist: race, privilege and the struggle for climate justice. Londres: Icon Books, 2021, p. 25.

(6) In: WILLIAMS, J. Climate change is racist: race, privilege and the struggle for climate justice. Londres: Icon Books, 2021, p. 28.

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