29 Abril 2025
"A imagem que desde 2015 norteia o itinerário pastoral de Bergoglio é a Casa Comum. Em tempos de fragmentação sociopolítica e crise climática, a Laudato Si' nos recorda que habitamos a mesma casa, uma casa fragilizada pela negligência de seus habitantes, ocupados com desejos egoístas", escreve Rodrigo de Andrade.
Rodrigo de Andrade, atuo profissionalmente como Gerente de Extensão Universitária na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e integra o Observatório Internacional do Pacto Educativo Global junto ao Dicastério para a Cultura e a Educação (Vaticano). É doutor (2020) e bacharel (2012) em Teologia pela PUCPR, mestre em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Paraná - UFPR (2015), além de Especialização Lato Sensu em Gestão de Processos Pastorais (2014) pela PUCPR.
Ao longo dos séculos, as Cartas Encíclicas (Literae Encyclae = cartas circulares) têm servido como instrumentos privilegiados do magistério petrino para orientar a Igreja. Seguindo a tradição de seus predecessores, Francisco também recorreu a este poderoso recurso pastoral, publicando quatro documentos que oferecem valiosos ensinamentos sobre a missão cristã no contexto contemporâneo: Lumen Fidei, sobre a fé; Laudato Si', sobre o cuidado da Casa Comum; Fratelli Tutti, sobre a fraternidade e a amizade social; e Dilexit Nos, sobre o amor humano e divino do Coração de Jesus.
Contudo, Francisco parece ter ido além. Mais do que ensinar pela escrita, Bergoglio transformou seu pontificado em uma verdadeira encíclica de atitudes, um magistério dos gestos que se tornou conhecido em todo o mundo. Suas atitudes, quase sempre, precederam seus discursos. Muitos de nós guardamos na memória momentos marcantes em que seus gestos dispensaram palavras. Recordo dois eventos emblemáticos: a visita à ilha de Lampedusa, ao expor ao mundo o drama dos refugiados, e a oração solitária pelo fim da pandemia de Covid-19, na Praça de São Pedro deserta. Duas das muitas cenas repletas de simbolismo, que serão lembradas por gerações.
A trajetória de Bergoglio testemunha sua atuação como educador na Companhia de Jesus. Como todo bom mestre, este jesuíta desenvolveu uma didática peculiar, um modus operandi que o acompanha no exercício do magistério eclesial. Por diversas vezes, evocou a tripla linguagem — cabeça, coração e mãos —, associada à educação integral proposta por Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827), para promover projetos educativos que favoreçam pensar no que se sente e faz, sentir o que se pensa e faz, fazer o que se pensa e sente. Trata-se da imagem da cabeça, do coração e das mãos, integrando pensamento, sentimento e ação.
Imagem, ideia e ação: três palavras que ecoam no método proposto por Francisco na Evangelii Gaudium (n. 157). O que surgiu como sugestão para a pregação se consolidou como a estrutura central do plano pastoral de seu pontificado, sustentáculo da encíclica viva que Francisco lega à história.
Ao adotar imagem, ideia e ação como coordenadas de seu magistério, Francisco reafirma sua convicção de que “a realidade é mais importante do que a ideia” (EG, n. 231-233). É da realidade contemporânea que parte sua proposta evangelizadora, em profunda comunhão com o espírito do Concílio Vaticano II. Para Francisco, a realidade é o lugar da encarnação da Palavra, exigindo respostas criativas aos sinais dos tempos, em vez da cristalização ou ideologização da Boa Nova.
A imagem que desde 2015 norteia o itinerário pastoral de Bergoglio é a Casa Comum. Em tempos de fragmentação sociopolítica e crise climática, a Laudato Si' nos recorda que habitamos a mesma casa, uma casa fragilizada pela negligência de seus habitantes, ocupados com desejos egoístas. Francisco parece responder ao mesmo chamado dirigido ao Pobrezinho de Assis: “Francisco, não vês que a minha casa está em ruínas? Vai, pois, e restaura-a para mim”.
A partir dessa imagem, o papa argentino convoca Igreja e mundo a comprometerem-se com uma Ecologia Integral — uma utopia capaz de alimentar sonhos e gerar ações concretas em favor da Casa Comum. Num tempo de desaparecimento das grandes narrativas, Francisco ousa propor um horizonte civilizacional plural, ultrapassando a mera questão ambiental, ao sugerir uma profunda revisão dos modelos relacionais antropocêntricos. Assim, resgata o ideal da Civilização do Amor proposto por Paulo VI e dialoga com cosmovisões ancestrais como o Sumak Kawsay (Bem Viver), da cultura quéchua, e a Yvy Marã (Terra sem Males), dos povos guarani. Trata-se de uma imagem que aproxima, exemplifica e facilita a compreensão dos sinais do Reino de Deus.
Da imagem da Casa Comum brota a ideia de uma nova economia. A Ecologia Integral clama por novas regras de convivência na Casa Comum (oikonomía), uma nova organização econômica “que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza”. A Economia de Francisco — e Clara, como reivindica a articulação brasileira — inspirada no modo de vida de Francisco de Assis e lançada em 2019, tornou-se um movimento mundial que reúne visões econômicas diversas em torno da superação da cultura do descarte. “Não se trata de aplicar pinceladas de tinta, não: a estrutura deve ser mudada”, adverte o pontífice. Se a imagem da Ecologia Integral indica o horizonte a ser buscado, a ideia da Economia de Francisco aponta o caminho a ser percorrido. A imagem inspira a ideia; a ideia orienta o caminho; o caminho conduz à nova realidade. Afinal, a realidade é superior à ideia (EG, n. 233).
“Visto que toda a mudança precisa de uma caminhada educativa para fazer amadurecer uma nova solidariedade universal e uma sociedade mais acolhedora”, a imagem e a ideia requerem a ação. Foi com este intuito que Francisco propôs o Pacto Educativo Global. Provavelmente inspirado na experiência das Escuela de Vecinos e Escuelas Hermanas — iniciativas que ajudou a criar durante a crise argentina dos anos 2000, e que culminaram na fundação do movimento Scholas Occurrentes, em 2013 —, o papa propõe agora a construção de uma aldeia global. Trata-se de uma aliança entre todos os habitantes da Casa Comum, em que cada um assume sua responsabilidade de educar para uma nova economia e uma nova visão de mundo. Esta ação educativa exige coragem: a coragem de resgatar o valor do ser humano, de dedicar-se inteiramente e de formar para o serviço. O Pacto Educativo Global é a ação que dá sentido, anima e prepara para o caminho de uma nova economia e rumo à Ecologia Integral.
Ao longo dos doze anos do pontificado de Francisco, a Ecologia Integral, a Economia de Francisco e o Pacto Educativo Global delinearam itinerários evangelizadores em sintonia com o Jubileu da Esperança. O cuidado, o perdão e a libertação (Lv 25,11-41), marcas veterotestamentárias do ano santo, assim como o anúncio, a restituição e a liberdade (Lc 4,18-19), proclamados por Jesus como sinais do tempo da graça, parecem ter inspirado o método bergogliano. A imagem da Ecologia Integral evoca o cuidado da terra (Lv 25,11) e o anúncio de uma nova realidade (Lc 4,19); a ideia da Economia de Francisco inspira o perdão das dívidas (Lv 25,13) e a restituição da dignidade humana (Lc 4,18); a ação do Pacto Educativo Global visa à libertação (Lv 25,10; Lc 4,18) da ignorância e do individualismo com vistas à constituição da aldeia global. Assim, a encíclica viva da esperança que Bergoglio escreveu na história já antevia o ano jubilar como sua síntese, mas sua Páscoa na Páscoa fez do Jubileu a sua conclusão.
Tal como as encíclicas escritas, o término da carta viva de Francisco não representa o fim da ação evangelizadora ecológica, econômica e educacional em favor da esperança. O profeta vindo "do fim do mundo" anunciou outra humanidade possível, ao mesmo tempo em que denunciou os sistemas sociopolíticos, econômicos e até religiosos que feriram a Criação. Compete agora a nós fazer frutificar esta semente. Ainda imersos no luto pela partida deste irmão que tanto nos inspirou, somos chamados a multiplicar seu testemunho de esperança, animados por suas últimas palavras pascais: “a ressurreição de Jesus é o fundamento da esperança: a partir deste acontecimento, ter esperança já não é uma ilusão. [...] E não se trata duma esperança evasiva, mas comprometida; não é alienante, mas responsabilizadora. Quem espera em Deus coloca as suas mãos frágeis na mão grande e forte d’Ele, deixa-se levantar e põe-se a caminho: juntamente com Jesus ressuscitado, torna-se peregrino de esperança, testemunha da vitória do Amor e do poder desarmado da Vida”.