O integralismo de Plínio Salgado foi reconfigurado para o bolsonarismo e deixa de ser uma “cultura mítica para se tornar um mito sem cultura”. Não se trata de simples continuidade política, mas de um imaginário autoritário que se reinventou e encontrou eco social.
“Grande parte das reflexões sobre o fascismo brasileiro tende a tratá-lo como uma cópia mal-acabada dos movimentos europeus do início do século XX. O problema central dessa perspectiva é que, ao enfatizar um mimetismo imperfeito, ela negligencia a complexidade das relações políticas, sociais, econômicas e culturais do Brasil, ao mesmo tempo em que minimiza o engajamento teórico e a produção ideológica desenvolvidos nesse contexto”, adverte William Costa Filho.
Para o pesquisador, “o que se vê é uma transmutação: o integralismo foi reconfigurado, deixou de ser uma cultura mítica para se tornar um mito sem cultura. A unidade nacional, que antes se pretendia espiritual, agora depende de adornos cromáticos e de uma estética instrumental, onde o verde e o amarelo não simbolizam uma nação, mas uma espécie de sentimento vazio”. E acrescenta: “Nesse novo fascismo, o Messias lidera uma caçada militar, e a anta da cultura integralista é sacrificada como emblema da nova ordem: uma ordem militar sem espírito, sem arte, sem reflexão. E, ainda assim, o projeto fascista permanece reconhecível. As diretrizes centrais do integralismo dos anos 1930 continuam operantes: a defesa da democracia cristã, a consagração da trindade ‘Deus, pátria, família’, o aparelhamento das forças militares, o culto à figura do líder e o nacionalismo vazio. A permanência não está apenas nos símbolos, mas na estrutura de pensamento que os sustenta”.
Professor Dr. William Costa Filho | Foto: Arquivo Pessoal
Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da Universidade Estadual do Ceará (UECE), assessor de planejamento e avaliação do Escritório de Cooperação Internacional da UECE, William Costa Filho é coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa Ética, Política e Justiça, e do Laboratório de Estudos sobre Direitos Humanos e Violência. Membro do núcleo de sustentação e atual coordenador do Grupo de Trabalho Filosofia Política Contemporânea da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (ANPOF), é graduado em Filosofia (UFU), mestre em Filosofia (UFU) e doutor em Filosofia (Unisinos). Escreveu Inconfidências do agora (Milfontes, 2022) e Políticas da exceção: da potência soberana ao terrorismo de Estado (Milfontes, 2020).
Grande parte das reflexões sobre o fascismo brasileiro tende a tratá-lo como uma cópia mal-acabada dos movimentos europeus do início do século XX. O problema central dessa perspectiva é que, ao enfatizar um mimetismo imperfeito, ela negligencia a complexidade das relações políticas, sociais, econômicas e culturais do Brasil, ao mesmo tempo em que minimiza o engajamento teórico e a produção ideológica desenvolvidos nesse contexto. Sob esse ponto de vista, o fascismo brasileiro não passaria de uma etapa histórica já superada pelos próprios acontecimentos que o sucederam. E o bolsonarismo, por exemplo, frequentemente definido como uma manifestação contemporânea desse fascismo, seria visto não como algo enraizado no passado nacional ou sustentado por uma elaboração ideológica própria, mas apenas como reflexo da ascensão global de movimentos neofascistas. Em contraposição a essa leitura, enfatizamos a importância de compreender o fascismo brasileiro a partir de seus elementos constitutivos, sem com isso ignorar o cenário internacional, mas, sim, buscando delimitar um enfoque que permita reconhecer que o fascismo não emerge como um movimento desprovido de fundamentação teórica e filosófica. Nosso objetivo é justamente destacar esse aspecto, demonstrando como, na intersecção entre romance e filosofia, Plínio Salgado fez emergir uma doutrina fascista ou, como ele próprio define, uma “filosofia da cultura (e) do espírito”, que persiste e se atualiza de acordo com as necessidades do presente.
A história política do fascismo integralista brasileiro se confunde com a trajetória de Plínio Salgado. Natural do interior paulista, da cidade de São Bento do Sapucaí, Salgado começou cedo sua vida intelectual e política. Aos vinte anos, fundou o jornal semanal Correio de São Bento. Dois anos depois, ajudou a criar o Partido Municipalista e, pouco tempo depois, mudou-se para a capital paulista, onde passou a trabalhar como redator no Correio Paulistano. Mais tarde, em parceria com Augusto Schmidt, fundou A Razão, um jornal que se tornaria um dos espaços centrais de sua atuação política e intelectual. Nos intervalos de seu trabalho como editor e escritor de textos políticos, Plínio dedicava-se à produção literária, escrevendo romances e ensaios. Em grande parte, essas obras abordavam de forma crítica a situação política do Brasil, elaborando personagens que permitiam ao leitor uma identificação direta com os dilemas nacionais. Salgado rapidamente conquistou prestígio entre jornalistas, escritores e políticos de sua época, sendo reconhecido como o homem do interior que soube transitar, com espírito de redator, pelos caminhos da literatura política.
Seu primeiro romance, O Estrangeiro (1926), chamou a atenção de importantes intelectuais, como Cassiano Ricardo e Menotti Del Picchia, com quem viria a fundar a Escola da Anta. Suas críticas às transformações urbano-industriais que remodelavam São Paulo foram fundamentais para o surgimento de um movimento nacionalista no campo das artes e da cultura. Em O Estrangeiro, Plínio Salgado expressa sua preocupação com as degradações cultural e moral do Brasil, que ele via como consequências da difusão dos ideais liberais, das doutrinas comunistas, do cosmopolitismo e da apatia do povo. Para o autor, o processo de urbanização e industrialização das cidades engendrava uma espécie de decadência espiritual que comprometia os fundamentos da identidade nacional.
Três figuras contrastantes compõem o núcleo simbólico do romance: os italianos Mondolfi, o caboclo Nhô Indalécio e o mestre-escola Juvêncio. Esses personagens habitam o cenário de uma modernização marcada pelo confronto entre campo e cidade, entre estrangeiros e os trabalhadores nativos da terra. Enquanto os Mondolfi encarnam a ascensão econômica dos imigrantes no estado de São Paulo, e Nhô Indalécio representa a apatia política de um Brasil rural à margem do poder, é em Juvêncio que Salgado encontra a possibilidade de uma síntese regeneradora. O mestre-escola emerge como uma figura heroica, capaz de reunir elementos dispersos entre os estrangeiros e os filhos da terra, compondo assim o arquétipo do “bandeirante moderno”, expressão do nacionalismo integralista. Juvêncio representa, portanto, o herói de uma miscigenação necessária, não apenas étnica, mas sobretudo espiritual e moral, para resistir aos efeitos dissolventes do liberalismo e do comunismo, os quais, na visão de Salgado, ameaçavam desconfigurar o espaço mítico do campo. Ao privilegiar o universo rural, o autor o faz por acreditar que nele reside o espírito autêntico da nação: uma pátria verde-amarela, enraizada em valores tradicionais e distante das corrupções da modernidade urbana.
Foi com base nesse romance que se formou a aliança entre Salgado, Cassiano Ricardo e Menotti Del Picchia. Juntos, no contexto do modernismo Verde-Amarelo, passaram a defender um nacionalismo literário avesso à influência estrangeira. Rejeitavam as ideias de Oswald de Andrade, em especial o Manifesto Pau-Brasil (1924), acusando-o de promover um “afrancesamento” da cultura brasileira. Em resposta, Salgado fez a conferência A Anta e o Curupira (1926), na qual defendia uma visão de brasilidade ligada à terra e aos mitos indígenas, em oposição à antropofagia oswaldiana. O nome do movimento foi inspirado num animal com forte valor simbólico na cultura tupi. A anta foi escolhida como emblema da resistência silenciosa e da força pacífica do povo brasileiro.
No Manifesto Nhengaçu Verde-Amarelo, o grupo exaltava a anta como um ser que “abre caminhos”, conectada com a terra e os ciclos da natureza. O verdadeiro brasileiro, diziam, era aquele que, ao pisar neste chão, lançava ao mar os preconceitos e filosofias estrangeiras – inclusive o “cadáver de Zaratustra” (1), como metáfora para a rejeição das ideias filosóficas que, a seu ver, afastavam o país de sua essência espiritual. Era o nascimento de um nacionalismo sentimental, moldado por uma vivência mítica da identidade nacional.
Esse nacionalismo reaparece em O Esperado (1930), romance em que Plínio Salgado dramatiza as tensões entre o campo e a cidade, entre as engrenagens da modernização, com suas máquinas e arranha-céus, e as miudezas e grandezas da vida cotidiana das pessoas. O próprio título da obra já provoca o leitor: somos imediatamente apanhados pela expectativa da chegada de um sujeito esperado. No prefácio da segunda edição da obra (1936), Salgado acrescenta uma explicação sugestiva, revelando que havia sido criticado, especialmente por grupos cristãos, que esperavam encontrar na obra uma narrativa messiânica em sentido estritamente religioso. Antecipando as leituras equivocadas, ele adverte que o romance é, antes de tudo, uma exposição dos estados de espírito nacionais. Seu objetivo, segundo o próprio autor, sempre foi o de “combater o fatalismo messiânico, o sebastianismo do povo brasileiro” (2). Salgado afirma que, quando os “messiânicos, os agitados, os delirantes” julgam ver surgir O Esperado, ou seja, o Messias, o cavaleiro desejado, o príncipe encantado, o salvador, “caem as trevas mais espessas, no desejo vibrante, sobre todos os gestos, sobre todos os gritos”. Apesar desse claro tom antimessiânico, há uma mudança significativa de perspectiva na terceira parte da obra, intitulada “O Ofício das Trevas”. Ali, a epígrafe revela o retorno simbólico do ideal messiânico: “e até que chegue o Desejado, serão multiplicadas as angústias, e a Pátria terá, como nos dolorosos ritos, o seu Ofício de Trevas” (3).
O messianismo, então, reaparece sob nova forma: não mais como ilusão religiosa ou espera paralisante, mas como projeto político. O Esperado surge como figura capaz de congregar as massas a partir de um espírito de liderança redentor. Ele brota, como um Messias-anta, símbolo nacionalista, vestido de verde-amarelo, com a missão de erradicar o sofrimento universal e redimir a angústia coletiva. Esse Messias-anta, contudo, nada tem em comum com as demais formas de messianismo histórico que Salgado condena: o racista, o totalitário, o socialista, o democrático, o da destruição e da vingança, o da igualdade absurda, ou aquele das reivindicações feministas. Para ele, todos esses são expressões do que chama de “messianismos negativos” (4) ou disfarces do “Arcanjo das Trevas”, que desintegram a vida heroica do homem do interior e o desviam para os caminhos dissolventes do liberalismo e do comunismo. A peregrinação pelas particularidades aniquila o espírito comum e macula a conduta moral do povo, segundo Salgado. Apenas uma revolução nacionalista, conduzida por um messias enraizado no solo simbólico do Brasil poderia reconduzir, para Salgado, a nação a seu centro espiritual e restabelecer sua unidade perdida.
Os artigos jornalísticos e os romances proporcionaram a Plínio Salgado o reconhecimento necessário para se destacar no cenário político, então fortemente influenciado por intelectuais brasileiros. Em 1932, nutrindo simpatias pelas ideias do fascismo de Mussolini, do integralismo lusitano e da doutrina católica, Salgado fundou a Ação Integralista Brasileira (AIB) e, poucos meses depois, lançou o Manifesto de Outubro de 1932 e O que é o Integralismo (1933). A primeira seção do Manifesto, intitulada “Concepção do Universo e do Mundo”, revela a filiação de Salgado à filosofia idealista. Ao mesmo tempo em que reclamava a unidade nacional a partir de um modelo antropológico-metafísico fundado nas vocações individuais, ele consagrava o movimento integralista como algo “genuinamente brasileiro, como uma própria filosofia” (5). Entretanto, essa pretensa fundamentação filosófica do integralismo se sustentava por meio da inversão, da instrumentalização e da distorção de categorias filosóficas fundamentais, especialmente as do idealismo alemão, em particular de Hegel, moldadas para servir a um projeto autoritário de homogeneização nacional.
Salgado apresenta o integralismo não apenas como doutrina política, mas como uma filosofia do espírito capaz de moldar o pensamento político a partir de uma visão sobre o mundo e o homem (6). Para ser uma “ciência do espírito”, o integralismo deveria adotar uma concepção total, ou melhor, totalitária (7), do ser humano e da realidade, sem, contudo, diz Salgado, se confundir com o totalitarismo político ou econômico. Trata-se, porém, de uma distinção retórica: o que está em jogo é justamente a produção de um aparato ideológico que legitime a construção de um Estado autoritário em nome de uma “consciência superior”.
A apreensão da totalidade do mundo, segundo Salgado, exigiria uma filosofia voltada a conduzir o espírito humano à consciência da nação como expressão última da totalidade. Nesse sentido, caberia ao “homem integral” cumprir o télos da humanidade tanto no plano transcendental do intelecto quanto no plano imanente da moral. A filosofia é convertida aqui em instrumento, pois o espírito só se realiza plenamente quando se submete ao destino coletivo da nação. Compreender o mundo e a totalidade dinâmica de suas relações dependeria, então, da capacidade de o espírito se distender para além das exigências materiais imediatas. Essa compreensão permitiria ao homem integral reconhecer-se como sujeito livre, em conformidade com as leis internas da natureza, desvelando um sentido mais profundo da existência, não enraizado na luta social ou na experiência histórica concreta, mas na elevação espiritual e cultural da pátria. O mundo seria, assim, um imperativo dado, uma realidade que antecede e condiciona a experiência, enquanto o homem se apresentaria como um imperativo construído, fruto de um processo histórico-espiritual no qual a consciência se eleva para além da factualidade.
Inspirado no trajeto hegeliano do Espírito Absoluto, Salgado argumenta que, por meio da arte, da religião e da filosofia, o espírito manifesta-se e revela uma relação na qual a consciência desperta para a totalidade do mundo, refazendo-se e descobrindo-se no processo. Mas essa operação filosófica oculta, contudo, a exigência de conformidade com uma ordem espiritual pré-estabelecida, cujo conteúdo impede qualquer liberdade de pensamento ou de criação. Nesse movimento, natureza e história convergem para formar uma “realidade integral”, uma nação.
Sob essa perspectiva, a nação se apresenta como a forma concreta pela qual o homem se reconhece como parte de um todo, não apenas geográfico ou político, mas espiritual e cultural. A nação é o mundo para o homem: o espaço simbólico onde se dá a fusão entre indivíduo e coletividade, entre história e transcendência. O nacionalismo, assim compreendido, não se limita a um sentimento de pertencimento territorial. Ele é, antes, um movimento dinâmico no qual o espírito se integra à totalidade do mundo, reconhecendo-se como continuidade e expressão de um destino comum. Contudo, ao enraizar a identidade nacional em uma metafísica do espírito e da tradição, Salgado esvazia o conflito social e político da história brasileira, ocultando desigualdades em nome de uma unidade patriótica. Contra o “estrangeirismo” e a “decadência” liberal, o integralismo propõe uma identidade nacional rigidamente definida, cuja função é preservar um modelo de sociedade.
Mundo e homem se integram, segundo Salgado, por meio da relação espiritual que se realiza na nação. Nesse contexto, o Estado figura como o instrumento jurídico da nação (8), sua expressão institucional. Para Salgado, o Estado é um organismo vivo, cuja dinâmica acompanha as transformações históricas. Trata-se de um conceito revolucionário, mas não nos termos dos materialistas históricos. A revolução, para ele, não é fruto das contradições materiais da sociedade, mas um movimento ético, guiado pela intervenção consciente do espírito. O Estado integralista é, assim, uma forma revolucionária ética (9), pois propõe um modelo de pensamento e de ação voltado para a totalidade da nação. Ele não se funda sobre a lógica da evolução, mas sobre o movimento consciente da interferência espiritual. A revolução, nesse sentido, é a ação do espírito que reordena a história em direção a um télos coletivo. O Estado integral nasce, portanto, com um impulso revolucionário inscrito em sua própria finalidade: servir ao homem enquanto condutor de sua elevação espiritual. Sua missão é organizar corporativamente a nação, orientar a economia de modo orgânico e representar o país acima dos interesses particulares. Além disso, deve proteger a cultura nacional das influências estrangeiras, preservando sua autenticidade e seu enraizamento espiritual.
Contra os projetos que propõem uma vida social autogerida ou mediada pela racionalidade liberal e representativa, cuja promessa de felicidade repousa na ideia de igualdade formal, o Estado integral se apresenta como substância e forma, como unidade metafísico-política que encarna e defende a nação. Essa unidade é sustentada por um princípio espiritual de totalidade que Salgado concebe como uma “esperança jamais imaginada” (10). Contudo, essa esperança é menos um horizonte de abertura do espírito do que um fechamento dogmático da experiência política: ao se apropriar da linguagem filosófica, Salgado espiritualiza a política para melhor submetê-la a um modelo autoritário de organização social.
A organicidade do Estado integral, segundo Salgado, decorre da força jurídica que ele incorpora para defender a nação. O Estado deve operar como um centro de determinação a partir do qual se consagra o espírito nacional. Nesse sentido, a dimensão messiânica do pensamento de Salgado ressurge no plano político: o Messias-anta encontra no Estado a estrutura necessária para unir o povo em torno de um destino comum. Daí a legitimidade de o Estado depender de um fundamento espiritual assentado na cristandade patriótica. Para Salgado, o Estado não é laico, ele é cristão. Sua constituição se dá pela integralidade espiritual da nação, concebida como uma forma de democracia cristã. Em 1946, ao redigir a primeira versão de O Conceito Cristão da Democracia, Salgado define a democracia não apenas como a forma de governo mais sensata por proteger o povo das arbitrariedades de outros homens, mas também por garantir que as nações não sejam absorvidas por potências estrangeiras. Essa concepção de democracia se ancora no princípio espiritual da nação e se opõe ao domínio externo, reivindicando a autonomia cultural e moral do povo.
A democracia cristã, segundo Salgado, deveria constituir-se como uma “razão ética, imperativo espiritual, imposição do afeto e da solidariedade de milhões de filhos de um mesmo povo” (11). Nesse sentido, ressurge o apelo ao velho lema fundacional do movimento integralista: Deus, pátria, família. Embora estas três palavras possam parecer meramente retóricas, é pertinente reavaliá-las à luz da articulação entre a democracia cristã e o Estado integral. O projeto de institucionalizar a democracia cristã como regime de governo ganhou consistência a partir da defesa do princípio de comunhão nacionalista, que, segundo Salgado, deveria ser inculcado no indivíduo desde a infância. Esse princípio só poderia se enraizar no homem se fosse internalizado precocemente, sobretudo no seio da família. É no espaço familiar que o indivíduo se abre espiritualmente à vida social. A família, nesse sentido, prepara o espírito humano como uma microestrutura da nação. Ela inaugura os primeiros laços sociais e cultiva as virtudes necessárias à consolidação do Estado.
A relação entre o indivíduo e a família, portanto, fundamenta a existência da sociedade civil e esta, a do Estado. Entretanto, a mera existência do Estado não é garantia contra a decadência moral nem contra o empobrecimento cultural. Apenas um Estado forte, o Estado integral, na formulação de Salgado, poderia combater eficazmente as mazelas sociais. Essa força do Estado está intimamente ligada à democracia cristã: a família deveria funcionar como base espiritual para o cultivo dos valores morais e culturais que sustentam o Estado forte, enquanto este, por sua vez, teria o dever de proteger intensamente a família contra os “valores pervertidos” (12). Nessa complementaridade entre família e Estado, o projeto de Salgado se estrutura como uma tentativa de espiritualizar a política e politizar a moral, fundando uma ordem nacionalista e cristã como forma de redenção do corpo social e de restauração do modelo familiar cristão.
É a partir dos valores cristãos cultivados nas famílias e respaldados pelo Estado que, segundo Salgado, a verdadeira democracia deve emergir. Tal democracia não pode ser neutra: ela deve estar orientada para os fins, entendidos como o télos da integração espiritual do homem. Por isso, sua existência só é possível sob a égide da lei de Deus. A democracia cristã, nesse sentido, orienta a vida do espírito humano “na família, pela pátria, para Deus” (13). Esse princípio ganha maior densidade quando Salgado apela diretamente ao “brasileiro modesto”, o trabalhador que sofre, nas cidades e nos campos, sustentado pela crença em uma esperança messiânica encarnada na promessa da democracia cristã. A centralidade de Deus na ordem do mundo é inegociável: é ele quem governa as leis da vida, e cabe ao Estado organizá-las no interior do tecido nacional.
A ruptura dessa ordem, especialmente pela desintegração da família, representa um duplo crime: atenta contra os fundamentos da formação natural e divina do ser humano, e destrói os alicerces sobre os quais se ergue o Estado integral. Nesse cenário, a “santa trindade” do integralismo – Deus, pátria, família – adquire novo significado: trata-se de uma reforma da própria democracia, convertendo-a em regência de um Deo pater familias, espiritual e simbolicamente encarnado no Estado e em sua liderança. É a partir dessa metáfora teopolítica que a democracia cristã se torna, para Salgado, o horizonte de uma espera messiânica: a esperança da renovação nacional se confunde com a espera de O Esperado, tornando-se fé política e promessa espiritual de redenção coletiva.
Para Plínio Salgado, a crise mundial, manifestada na superprodução econômica, no desemprego em massa, nas convulsões sociais e nas perversões morais e culturais, tem, como causa imediata, a crise da autoridade (14). Em sua visão, a desintegração do tecido nacional, o colapso do senso coletivo e a fragmentação dos valores não são fenômenos autônomos, mas efeitos diretos da ausência de um princípio ordenador. Assim, para ele, a restauração da autoridade seria o passo inaugural rumo à reconstrução da unidade nacional. Foi com essa tese que Salgado colocou no mesmo trilho Francisco Suarez e o fascismo. Partindo da ideia suareziana de que a autoridade é uma instituição humana, estabelecida por um pacto entre os homens para garantir a ordem comum, Salgado afirma que essa construção política deve se realizar sob a égide de uma autoridade restaurada e forte. O fascismo, nesse sentido, aparece como o modelo político capaz de oferecer o solo fértil para essa reconstrução.
O fascismo, “como doutrina de Estado, encerra uma síntese cultural e traz consigo a possibilidade da restauração da autoridade governamental, sem a qual nada será possível fazer” (15), daí a força da autoridade emergente. Não se trata, aqui, apenas de um regime político, mas de uma missão espiritual e moral, de uma reforma integral do corpo da nação por meio da reinstituição da figura do líder. O nacionalismo, portanto, se concretizaria com a revalorização da figura de um líder capaz de encarnar a vontade da nação, como um guia infalível e redentor. Essa inversão revela o núcleo problemático da apropriação filosófica de Salgado: ao deslocar o conceito de autoridade do campo da legitimidade racional para o da autolegitimação mística, ele rompe com qualquer possibilidade de mediação democrática. A autoridade fascista não é produzida pela soberania popular, mas imposta a ela. A “restauração da autoridade” defendida por Salgado, longe de constituir um projeto de ordenamento coletivo, opera como técnica política: uma autoridade que se absolutiza ao se declarar necessária.
Para não se expor à fragilidade, essa autoridade precisa se blindar. Uma das estratégias para isso é revesti-la de uma aura militar, uma forma de sacralização do poder por meio de práticas e discursos marcados pela disciplina, pelo heroísmo e pela obediência. No pensamento de Salgado, o militarismo, sobretudo identificado pelo Exército, oferece o esteio simbólico para o poder do líder. O soldado aparece não apenas como defensor da pátria, mas como encarnação moral da autoridade restaurada. Salgado idealiza o militar como um tipo de sacerdote da nação: “um asceta, um herói, um esteio da nossa liberdade, da nossa soberania, um baluarte da nossa grandeza, o irmão a quem confiamos tudo: nosso lar, nossa família, nossa bandeira, nossa carta geográfica, o nome da nossa Pátria!” (16) Nesse imaginário, a autoridade do líder fascista se ancora no ethos do soldado: disciplinado, silencioso, abnegado, disposto ao sacrifício e à obediência incondicional. O Estado fascista é, por essência, um Estado militar, não apenas em sua estrutura coercitiva, mas em seu modelo simbólico de organização. A militarização da vida civil, da cultura e da política é, então, o meio pelo qual a autoridade se consagra como princípio absoluto.
O fascismo integralista brasileiro se constitui como uma filosofia da cultura. Suas bases, marcadas pelo idealismo espiritual e pelo antimaterialismo, permanecem centrais na renovação dos movimentos fascistas no Brasil. É necessário compreender que o fascismo brasileiro não é uma invenção recente, mas uma atualização daquilo que nunca deixou de existir: uma permanência disfarçada sob novas formas, mas ainda fiel a suas raízes fundacionais. O germe do fascismo brasileiro não reside apenas nas práticas sociais, mas, sobretudo, nos vetores ideológicos que procuram reatualizá-lo, combatendo justamente aquilo que reconhecem como seu antagonista essencial: a cultura nacional. A cultura, aqui, não é entendida como patrimônio criador, mas como ameaça. A operação ideológica consiste em deslocar o nacional para o plano meramente discursivo, esvaziando-o de densidade artística, filosófica e simbólica. O objetivo não é a eliminação da cultura, mas sua neutralização: restringir acessos, cortar fomentos, reduzir circulação, como forma de impedir que a cultura cumpra seu papel de crítica, imaginação e transformação.
Nesse sentido, o fascismo brasileiro atual repete, com nova roupagem, a concepção de Salgado de uma cultura subordinada à autoridade. Plínio Salgado tentou fundar uma metafísica da cultura nacional, cujos símbolos deveriam servir à edificação espiritual da nação e à consagração do Estado. Sua filosofia da cultura era instrumental: operava como um aparato de homogeneização simbólica, onde arte e filosofia convergiam para reforçar a figura do líder e a unidade mística do povo. A figura da anta era símbolo dessa unificação, um totem do nacional. No entanto, no fascismo bolsonarista, esse símbolo foi revertido em seu contrário. A anta, antes símbolo da filosofia cultural integralista, é agora caçada, eliminada, fragmentada, e seus ossos são comercializados ou exibidos como troféus da destruição. A metáfora do Messias também é subvertida: em vez de conduzir a nação a uma redenção espiritual, o novo Messias devora a alegoria que um dia deveria encarnar. A caçada substitui a promessa; a destruição se torna projeto.
O que se vê é uma transmutação: o integralismo foi reconfigurado, deixou de ser uma cultura mítica para se tornar um mito sem cultura. A unidade nacional, que antes se pretendia espiritual, agora depende de adornos cromáticos e de uma estética instrumental, onde o verde e o amarelo não simbolizam uma nação, mas uma espécie de sentimento vazio. Nesse novo fascismo, o Messias lidera uma caçada militar, e a anta da cultura integralista é sacrificada como emblema da nova ordem: uma ordem militar sem espírito, sem arte, sem reflexão. E, ainda assim, o projeto fascista permanece reconhecível. As diretrizes centrais do integralismo dos anos 1930 continuam operantes: a defesa da democracia cristã, a consagração da trindade “Deus, pátria, família”, o aparelhamento das forças militares, o culto à figura do líder e o nacionalismo vazio. A permanência não está apenas nos símbolos, mas na estrutura de pensamento que os sustenta.
A diferença mais significativa está no plano ideológico. Se o integralismo de Salgado, ainda que autoritário, articulava-se a partir de um idealismo filosófico, o fascismo bolsonarista abandona essa pretensão e se entrega abertamente à lógica econômica do capital. O que antes se pretendia espiritual, agora se dissolve no utilitarismo econômico: comercializar a destruição e comercializar destruindo. A trindade integralista, a democracia cristã e o militarismo ainda subsistem, mas agora como engrenagens de uma máquina econômica que os instrumentaliza para fins de acumulação e dominação. Nenhuma das categorias anteriores escapa à operação do capital. Todas se tornam slogans de um mito sem cultura.
Assim, a trajetória que vai do integralismo de Plínio Salgado ao bolsonarismo revela não uma simples continuidade política, mas a permanência de um imaginário autoritário que soube se reinventar ao longo do tempo. A figura da anta, antes símbolo mítico de unificação e identidade nacional, transformada em troféu de caça, ilustra a inversão brutal do projeto de nação: onde havia um esforço (ainda que ideologicamente equivocado) de forjar uma totalidade cultural, há agora a fragmentação, o esvaziamento e o saque. O Messias contemporâneo não conduz à salvação, mas à destruição; ele devora os próprios símbolos de coesão e os transforma em mercadoria.
O fascismo brasileiro, hoje, já não opera com grandes elaborações teóricas, ainda que não as prescinda: ele opera na lógica do espetáculo, da violência performativa, da economia como fundamento absoluto. Mas isso não significa que ele seja menos perigoso; ao contrário, sua força está justamente na banalização dos símbolos, na apropriação superficial da estética nacionalista e na destruição sistemática da cultura como forma de resistência. O combate ao fascismo, portanto, exige mais do que denúncia: requer a reconstrução da cultura e da filosofia como espaços vivos de pensamento crítico, criação e enfrentamento das práticas e ideologias fascistas.
(1) Manifesto Nhengaçu Verde-Amarelo (1929).
(2) Ibid.
(3) Ibid., p. 167.
(4) SALGADO, Plínio. Primeiro, Cristo. São Paulo: Voz do Oeste, 1934.
(5) SALGADO, Plínio. A quarta humanidade. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1934, p. 88.
(6) SALGADO, Plínio. O integralismo na vida brasileira. Rio de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, 1953, p. 60.
(7) Para isso, Salgado estabelece três modos de formação: desenvolvimento intenso esforço cultura através de cursos e conferências destinadas ao estudo de problemas nacionais e humanos; focalização em modelos educacional de moral e cívica para preparar a juventude; instrução do povo brasileiro acerca do que lhe convém saber de sua tradição e possibilidades, o que deveria ser feito por meio de jornais, livros e revistas.
(8) SALGADO, Plínio. O que é o integralismo. São Paulo: Editora Clássica Brasileira, 1935, p. 33.
(9) SALGADO, Plínio. Psicologia da revolução. Rio de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, 1933, p. 55.
(10) Manifesto de 7 de outubro de 1932, p. 12.
(11) SALGADO, Plínio. A quarta humanidade. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1934, p. 111.
(12) Salgado se refere, principalmente, a perversões sexuais ou da sensibilidade, i. e, a comportamentos homossexuais e feministas.
(13) SALGADO, Plínio. Páginas de combate. Rio de Janeiro: Livraria H. Antunes, 1937, p. 15.
(14) SALGADO, Plínio. O sofrimento universal. Rio de Janeiro: José Olympio, 1934, p. 128
(15) Ibid, p. 131.
(16) SALGADO, Plínio. A doutrina do sigma. São Paulo: Frente Santa Cruz, 2024, p. 36.