06 Agosto 2019
Em seu novo livro, “Mentir e colonizar”, a autora sustenta que no atual cenário político opera a subjetividade neoliberal e através de suas próprias estratégias, alcança a obediência inconsciente de uma maioria.
A entrevista é de Oscar Ranzani, publicada por Página/12, 05-08-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
“O novo avanço neoliberal é um poder que vai se entramando em todos os aspectos da cultura e vai colonizando a subjetividade”.
“A servidão já não é sequer registrada como servidão porque estamos em presença de cidadão que se creem livres”.
Percebe a diferença entre o marketing e a política. Então, o cidadão compra. E compra coisas que não lhe servem, planos que não lhe servem, governos e personagens que não lhe servem.
Mentir y colonizar. Obediencia inconsciente y subjetividad neoliberal, de Nora Merlin, Editora Letra Viva
A psicanalista Nora Merlin pensou seu novo livro, “Mentir e colonizar. Obediência inconsciente e subjetividade neoliberal” (Editora Letra Viva, tradução livre), como uma continuação de sua publicação anterior, “Colonização da subjetividade. Os meios de comunicação de massa em épocas de biomercado”. Se naquele trabalho colocava o acento na concentração do poder financeiro e as corporações e na imposição invisível através de nefastas estratégias, nesse novo livro, Merlin analisa o conceito ao calor desses tempos de precípicio na Argentina: a obediência da massa. O conceito de massa, a autora desenvolveu amplamente em outro livro: “Populismo e Psicanálise”.
“Esses dois últimos livros estão em continuidade. Me propus falar da massa”, expressa Merlin. O dispositivo “massa”, segundo a psicanalista, consta de duas operações: idealização e identificação horizontal. “Muitos indivíduos põem o mesmo objeto no lugar do ideal. Agora, o que é o ideal nessa fase do capitalismo? São os meios de comunicação, que são a voz do poder. A característica que tem essa fase do capitalismo é a grande concentração econômica, simbólica, comunicacional, onde não há pluralidade de vozes, não há democratização da palavra”, sustenta. “Então, alguém poderia dizer: há discurso único. A tal ponto que se pode dizer que o neoliberalismo é um modo de totalitarismo”, agrega Merlin.
Um totalitarismo silencioso porque não se mostra como é?
Exato. Eu acredito que se rompeu o pacto das democracias do pós-guerra, com os Estados protetores. Quando havia guerra de inteligência, havia uma coisa um pouco mais balanceada. Era necessário que o capitalismo mostrasse sua verdadeira cara. Quando se termina esse limite do campo socialista, aparece um avanço do neoliberalismo em sua cara mais voraz, sem nenhum tipo de limite, porque se enfraquecem os Estados protetores, há uma queda no simbólico, caem os diques morais, a vergonha. Então, se irrompe o poder com uma ferocidade e uma violência sem nenhum tipo de cobrança. Tal é assim que o neoliberalismo é como um vírus que, como você disse, vai tomando a cultura silenciosamente.
Se o neoliberalismo é um totalitarismo e a massa é acrítica, onde se localiza a resistência?
É uma pergunta de alta complexidade. Tem que desenvolvê-la. Isso é uma imposição de um sistema de terror que não convém à maioria e que não se impõe visivelmente. Isso é, nós tivemos uma etapa na América Latina, onde o Plano Condor se impôs visivelmente, através das Forças Armadas. O novo avanço neoliberal vai por outro trilho. É um poder muito mais invisível, porém muito mais potentes e muito mais eficaz porque vai se tramando em todos os aspectos da cultura e vai colonizando a subjetividade.
Você disse que o neoliberalismo é uma nova subjetividade...
Sim, porém para impor um sistema que não lhe convém à maioria, se necessita um consenso obediente.
Utiliza o termo “obediência inconsciente”. Por que a relação entre a submissão e o poder não é voluntária?
Tem que se fazer um esclarecimento. Em meados de 1500 surgiu um personagem chamado Étienne de La Boétie que se perguntou sobre a relação da subjetividade com o poder. Por que muitos se submetiam ao poder de alguém, que era o poder real? A explicação naquele momento foi teológica: o rei é o herdeiro de Deus e, então, há de servi-lo e obedecê-lo. Era uma obediência consciente e voluntária. Depois, vieram as revoluções democráticas, os princípios de igualdade, liberdade e fraternidade. Passaram-se muitíssimos anos desde que De La Boétie se perguntou sobre a servidão voluntária. E estamos frente ao mesmo problema; quer dizer, porque os muitos se submetem a um, porém já não ao poder real do rei, mas sim ao poder real que hoje são as corporações. A servidão já não é sequer registrada como servidão porque estamos na presença de cidadãos que se creem livres.
Uma falsa autoconsciência?
A tradição marxista fala de falsa consciência, de que não se assume a consciência libertadora, emancipadora, que é a classe que, por natureza, tem que fazer a revolução. Nada disso se cumpriu. Eu não creio que haja consciência falsa e consciência verdadeira. Toda construção ideológica é performativa. Isso quer dizer que é um sistema de ideias que constrói realidade. Não é que há uma realidade e logo se representa. Não, a construção ideológica é uma ação discursiva.
Você mencionava recém, e também o destaca no livro, o tema da servidão quando ninguém a obriga.
Aparentemente ninguém a obriga, porque há uma imposição invisível.
Como analisaria esse conceito no contexto argentino atual? Crê que parte da sociedade está adormecida, por exemplo?
Há duas ideias centrais que organizam meus últimos livros. Uma é a colonização da subjetividade e outra é a obediência inconsciente.
Com a colonização da subjetividade me refiro ao poder do que falamos, invisível, sobretudo os meios de comunicação, porém não somente os meios, mas também a educação, a saúde mental ou distintos aspectos da cultura que operam sobre as mentes e os corpos. E alcançam, o que eu chamo “o colonizado”. O colonizado não é uma categoria de classe social, é um critério transversal. O colonizado tem um núcleo com preconceitos, sobre todo o ódio, e uma envoltura formal onde há identificações. E aí sim há tensões de classes sociais e de grupos. A trama argumental varia segundo a inscrição social, porém o núcleo, a estrutura do colonizado é a mesma. Então, não há que pensá-lo como falta de instrução ou que são todos estúpidos. Não. Há um trabalho muito sutil sobre a subjetividade. Para impor um sistema que não convém à maioria há que conseguir um consenso obediente. E a massa é o melhor sistema para conseguir esse consenso obediente. Há afetos e paixões característicos na massa. Por exemplo, a paixão pela ignorância na massa. Não tem a ver com quem foi ou não à universidade. Não tem a ver com isso. É um não querer saber nada. É não querer saber nada sobre o hetero, sobre o diferente, sobe a política, sobre o singular. Essa é uma das paixões que se estimulam na massa. Não é a única. O ódio é outra paixão.
Por que se o neoliberalismo instala o ódio aos setores populares há uma obediência inconsciente que reproduz esse ódio?
Primeiro, o melhor modo social para a obediência é a massa porque a estrutura da massa é hierárquica; é de poder e submissão. É necessário instalar esse sistema hierárquico, poder e submissão, de líder e de obediência de um sistema de uniformidade. Nesse sistema, todos dizem as mesmas frases, há como desejo de pertencimento imaginário. Não é uma inscrição real, porém há um desejo de inscrever nesse todo. Agora, o todo sempre produz secções. Os que não se inscrevem ali são rechaçados e são odiados. Aí vai a oposição, os dirigentes sociais a esse lugar de segregação, de rechaço e de demonização.
Que fator exercem as crenças na percepção da realidade que têm certos setores sociais?
Bom, se trabalha sobre as crenças, estimulam crenças. É muito certa essa frase de Walter Benjamin “O capitalismo é uma nova religião”. Uma religião, neste caso, construída dos meios de comunicação, que, como dizemos são a voz do poder. Então, vai produzindo uma nova subjetividade. E como o neoliberalismo é um sistema que se caracteriza por deixar os cidadãos indefesos – que são consumidores consumidos –, os deixa na situação de angústia com desamparo, sem defesa: as vezes, literalmente em situação de rua, sem direitos, porque vão despojando simbolicamente toda situação de ameaça à cidadania. Começam por alguns setores, porém cedo ou tarde somos todos.
Isso está relacionado com o conceito de bullying social que descreve em seu livro?
Há alguns conceitos que vão se desenvolvendo. A angústia é um. O cidadão fica despojado. A angústia e o medo vão de mão. Então para chegar à obediência é um passo. Aí está a instalação das crenças que falávamos, e o poder atua como concentração autoritária, onde não há o estado de direito posto em prática e o que há é um bullying social. O neoliberalismo surgiu nos anos 1990, depois da queda do muro dos estados socialistas. E começaram com uma mentira. Dizem: “Acabaram as ideologias”. Não se pode terminar as ideologias. Porém dizem isso e se começa a desenvolver uma nova ideologia que rechaça a política.
Nesse sentido, esse governo promove a desideologização dos sujeitos a partir de uma ideologia do ódio?
Exato. E o que eles chamam de gestão (porque é o tempo da gestão no lugar da política), é a administração do terror. E se administra mediante operações de inteligência, como as guerras judiciais, a instalação do ódio. O ódio se converteu em uma ferramenta muito eficaz.
Como se consegue que alguém vote contra os seus interesses?
É que está passando. São democracias neoliberais que não convém à maioria, mas somente aos grupos financeiros. Então, o único modo de conseguir essa imposição é colonizando a subjetividade e conseguindo a instalação de uma obediência inconsciente, onde o cidadão se crê livre e não faz mais que cumprir imperativos do consumo e do mercado. Agora, esses governos rechaçam a política e o que usam no lugar dessa é a gestão e as técnicas de marketing. Assim como o populismo é a instalação e a construção de demandas horizontais em uma vontade popular, aqui estão demandas construídas desde cima. Fixa-se a diferença entre o marketing e a política. Então, o cidadão compra. E compra coisas que não lhe servem, planos que não lhe servem e governos e personagens que lhe servem. A medida que foram desenvolvendo-se os meios de comunicação e a cibernética, tornou-se muito fácil manipular a subjetividade
Como acredita que se consegue equiparar uma denúncia a uma condenação, como acontece com a perseguição à Cristina Fernández Kirchner?
Eu creio que os meios de comunicação estão estropiando a cultura, as relações sociais. São a voz do poder, porém se convertem, às vezes, em juízes, estigmatizam uma pessoa, não cumprem com o procedimento normal judicial, a demonizam sem provas, ou sem que se cumpra o princípio de inocência. A verdade é que funciona como se fosse um estado de exceção. Os jornalistas da televisão são empregados da corporação. O plano em toda América Latina foi demonizar os líderes políticos da oposição. Uma das estratégias foi a instalação do ódio. Por isso, digo que também o campo popular está colonizado. Não é que “eles” são colonizados e “nós” estamos vacinados. São distintas colonizações, porém me parece que foi muito eficaz a instalação social do abismo, muito eficaz para o mal, porque é um desastre que estão fazendo romper o tecido social, os vínculos familiares, de amizade. Isso convém a quem? Ao poder. Então, o campo popular militou o ódio. E eu creio que essa foi uma colonização do campo popular porque uma coisa é o conflito político como conflito de interesses, como debate, como sublimação do ódio, e outra coisa é a promoção que se realizou o poder, sobretudo alguns jornalistas inomináveis. E o campo popular também se pôs a militar o ódio. Se nós falamos de batalha cultural, um dos primeiros programas nessa batalha cultural é resolver esse ódio. Há que resolvê-lo porque não é por aí que nós vamos orientar em um caminho emancipatório. O neoliberalismo precisa culturas sim política. O ódio é fantástico como cultura sem política porque se o conflito político tramitar como “bons” e “maus”, como “corruptos” e “decentes”, se transforma em um conflito moral. Essa é a forma que tem ideologias totalitárias como o nazismo e o neoliberalismo de tramitar o conflito político. É uma armadilha. Em lugar de conflito se produz a estratégia do inimigo interno. É o odiado.
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“O neoliberalismo é um modo de totalitarismo”. A psicanalista Nora Merlin e o novo paradigma político - Instituto Humanitas Unisinos - IHU