16 Abril 2025
Yanis Varoufakis, é um economista grego e líder do DiEM25, a aliança política paneuropeia de esquerda que cofundou, em 2016, junto com o filósofo croata Srećko Horvat, para “democratizar a Europa”. Durante a crise da zona do euro de 2015, conquistou fama como ministro das Finanças da Grécia e, desde então, escreveu vários livros de economia campeões, o mais famoso deles é Comportarse como adultos: Mi batalla con el profundo establishment europeo, que foi adaptado para o cinema pelo premiado diretor Costa-Gavras, em 2019.
Nesta entrevista ao Equal Times, descreve a mudança transcendental provocada pelas grandes empresas tecnológicas e o que pode ser feito para uma resistência, um tema que aborda em seu último livro Technofeudalism: What killed capitalism (Vintage, 2024).
A entrevista é de Arthur Neslen, publicada por Equal Times, 11-04-2025. A tradução é do Cepat.
Seu livro argumenta que vivemos em um novo sistema econômico “tecnofeudalista”. No entanto, não necessitou de uma revolução social como o capitalismo, nem de uma grande revolução agrícola como o feudalismo. Por que você acredita que se trata de um novo modo de produção?
O tecnofeudalismo se baseia em uma forma de capital inovadora e transmutada, qualitativa e quantitativamente diferente de todas as variedades conhecidas até o momento. Até 10 anos atrás, todas as formas de capital eram geradas através da produção, seja um arado, um martelo, uma máquina a vapor ou um robô industrial. No entanto, na última década, vimos uma nova forma de capital que ganha vida em nossos celulares, tablets e cabos de fibra óptica, que eu chamo de “capital da nuvem”.
Amazon, Alibaba, Uber, Airbnb não são mercados. Nem sequer são monopólios. São plataformas de comércio. O algoritmo (o capital da nuvem) que os constrói não produz nada exceto um feudo na nuvem onde nos reunimos como criadores, consumidores e usuários. Todos nós trabalhamos neles, seja como taxistas ou produtores de conteúdos, e o proprietário deste ambiente digital ganha rendas, como no feudalismo. Agora, não são rendas procedentes da terra, são rendas digitais. Eu as chamo de rendas da nuvem.
Nesse processo, os proprietários do capital da nuvem podem mudar o comportamento ou a mente do usuário. É uma forma de mudança do comportamento que cria um modo socioeconômico totalmente novo de produção, distribuição, comunicação e intercâmbio. Não é capitalismo, mesmo quando se baseia no capital. O capitalismo tem dois pilares: os mercados e os lucros. O capital da nuvem está rapidamente substituindo os mercados por feudos na nuvem e, como resultado, está desviando os lucros capitalistas que continuam sendo essenciais para o sistema, convertendo-os em rendas da nuvem.
De acordo com o senso comum socialista, o capitalismo criava seu próprio coveiro, ou seja, na forma de trabalhadores. Isto continua sendo válido com o tecnofeudalismo ou, em última instância, serão apenas robôs criando robôs para criar mais robôs?
A análise marxista é a melhor maneira de entender o tecnofeudalismo. O valor continua sendo produzido por seres humanos, não por robôs, algoritmos ou o capital da nuvem. Surge da atividade humana. Não surge de máquinas que constroem máquinas. A mudança é que agora temos muito capital que está sendo produzido por mão de obra gratuita.
Antes, Henry Ford usava máquinas para ajudar a produzir seus carros. Ele precisava fazer um pedido a outro capitalista que empregaria mão de obra assalariada para produzir aquele equipamento. Agora, a grande maioria do capital da nuvem é produzida por trabalhadores gratuitos que eu chamo de “servos da nuvem”. Toda vez que você posta um vídeo no TikTok, aumenta a capitalização na bolsa desta rede.
É claro que para o sistema se reproduzir, ainda precisa de mão de obra assalariada, de modo que se esta for eliminada, todo o sistema desmorona. Existem robôs que constroem robôs para construir robôs, mas o sistema é ainda mais instável e propenso a crises do que o capitalismo porque sua base, a mais-valia produzida pelo trabalho assalariado, está diminuindo.
Se uma empresa produz bicicletas elétricas, 40% do preço pago por elas na Amazon vai para [Jeff] Bezos [fundador e presidente executivo da Amazon], não para os capitalistas que as produzem, então, este capital é subtraído em uma espécie de renda da nuvem. Este dinheiro não retorna para a produção, nem para o setor capitalista tradicional, razão pela qual a demanda agregada, que sempre foi escassa sob o capitalismo, agora, é ainda mais escassa.
Essa situação cria pressão sobre os bancos centrais para que imprimam mais dinheiro com o propósito de repor sua perda de poder aquisitivo, criando assim mais pressões inflacionárias. O tecnofeudalismo é, portanto, um sistema muito pior e mais propenso a crises do que o capitalismo.
Sua ideia parece sugerir que uma espécie de filtro algorítmico agora domina até mesmo a nossa percepção da realidade. Qual o impacto disso na consciência de classe?
Tem um impacto enorme. Quando digo que nosso trabalho gratuito reconstitui e reproduz o capital na nuvem de Bezos, Google e Microsoft, eles respondem: “Sim, mas vocês adoram fazer isso”. Agimos voluntariamente. Bem, isso não muda o fato de que é trabalho gratuito.
Também temos o que meu amigo [escritor de ficção científica e ativista dos direitos digitais] Cory Doctorow chama de um processo de “emerdamento” (“enshittification”). Quanto mais você interage nas plataformas com as quais contribui voluntariamente com o seu trabalho, pior é a experiência que você tem e mais irritado você fica com outros usuários, não com o capitalista da nuvem que é dono, então, é um dissolvente da consciência de classe.
Você diria que o populismo autoritário que vivemos desde 2008 é, em parte, a expressão política desse novo modo de produção?
O ano de 2008 foi o 1929 da nossa geração. Não tem nada a ver com o capital da nuvem, porque o capital da nuvem não existia naquele momento. Foi o resultado do colapso do sistema capitalista financeirizado posterior aos Acordos de Bretton Woods, mas, sem a intenção, a resposta a este colapso, ou seja, o resgate de bancos e, essencialmente, imprimir 35 trilhões de dólares para os banqueiros, contribuiu para acelerar a acumulação de capital da nuvem, pois foram os únicos investimentos realizados entre 2009 e 2022.
De fato, a impressão de dinheiro resultante da flexibilização quantitativa coincidiu com um período de austeridade generalizada, razão pela qual as empresas capitalistas tradicionais não investiram. Pegaram dinheiro dos bancos centrais e recompraram suas próprias ações. Apenas os proprietários de capital da nuvem investiram em máquinas, o que provocou um aumento assombroso da qualidade e quantidade do capital da nuvem, o que levou ao ChatGPT e a OpenAI.
Toda vez que há um acúmulo tão massivo de capital, ocorre uma mudança paralela na sociedade. Elon Musk, por exemplo, chegou tarde ao jogo do capital da nuvem. Era um capitalista tradicional. Fabricava carros e foguetes. Não era um “cloudalista” até perceber que as plataformas da Tesla e da Starlink pediam a gritos uma conexão com o capital da nuvem e que ele não tinha uma interface, então, comprou o Twitter [agora chamado X] por uma miséria.
Esta é minha opinião, que entra em choque com a de todos, mas 44 bilhões de dólares [o valor que Musk pagou para comprar o Twitter, em 2022] não é nada. É uma ninharia para ele, e agora está criando, a partir do X, um aplicativo que conecta tudo e que conecta a Starlink a todos os carros Tesla do mundo. Inclusive, fundiu suas redes com os sistemas informáticos do Governo Federal, e sua ideologia fascista, quase ou talvez plenamente desenvolvida, anda de mãos dadas com isso.
Quando Peter Thiel [o bilionário investidor de capital de risco e libertário de extrema direita] afirmou recentemente que o capitalismo é incompatível com a democracia, algo em mim aplaudiu. Tinha toda a razão, mas foi preciso o capital da nuvem e a Palantir Technologies, a empresa de software fundada por Thiel que fornece principalmente dados e suporte de vigilância aos organismos militares, de segurança e de inteligência], assim como o X, para que disseram: “Sabe de uma coisa? A democracia, mesmo a mais tímida, é uma carga e um obstáculo para o nosso poder, então, optamos pelo fascismo”.
Não obstante, não teriam feito isso se não tivessem um vínculo direto com nossos cérebros, porque, ao contrário de Henry Ford e Thomas Edison, que tiveram que comprar jornais para buscar formas de nos influenciar, se você possui capital da nuvem, possui essencialmente as cadeias mentais de milhares de milhões de pessoas.
A visão utópica alternativa, segundo a qual um comunismo de luxo totalmente automatizado poderia nos libertar do trabalho, é mais provável do que o controle algorítmico da população, ou mesmo a interiorização decidida por algoritmos?
Terminei meu livro ( Conversando sobre economia com a minha filha), em 2017, afirmando que o futuro da humanidade se direciona para Matrix ou Star Trek. O caminho de Star Trek é o comunismo libertário de luxo, e o de Matrix é o tecnofeudalismo em sua pior variante. Para onde iremos dependerá da nossa capacidade de reavivar a política democrática, o que continha sendo incerto.
Como o capital da nuvem pode ser reajustado para um nível mais humano? Que tipo de regulamentação seria eficaz?
Penso que o mais óbvio é a interoperabilidade. Por exemplo, eu queria sair do Twitter [X] porque se tornou uma cloaca de veneno e lama, mas tenho 1,2 milhão de seguidores. Fui para o Bluesky e tinha 100, agora, tenho 30.000. Então, não posso abandonar o X. Mas imagine se os reguladores impusessem a interoperabilidade ao X dizendo: “Se vocês querem continuar funcionando, precisam permitir que os seguidores de qualquer pessoa inscrita no X que mude para o Bluesky continuem recebendo suas mensagens do X no Bluesky”. É o mesmo que obrigou as empresas de telecomunicações a permitir que as pessoas mantivessem seus números de telefone, após mudarem para uma concorrente.
É interessante observar que, no ano passado, legislou-se a interoperabilidade na China para os provedores [digitais] e os aplicativos. Isso nunca acontecerá no Ocidente, é claro, mas se acontecesse, seria um grande golpe contra o poder e os privilégios dos ‘cloudalistas’.
A legislação antimonopólio tem sido eficaz, como quando [o ex-presidente estadunidense] Teddy Roosevelt a utilizou para dividir a Standard Oil [em 1911], um monopólio que cobria todos os Estados Unidos, em 50 empresas diferentes, uma por estado. Mas como fazer isso com o Google e o YouTube? Não podem ser divididas porque não faz sentido. Em última instância, a questão é quem é o proprietário?
A única maneira de acabar decisivamente com o tecnofeudalismo é passar do marco do direito de sociedades capitalistas, segundo o qual “você pode possuir quantas ações tiver em dólares ou euros”, para um sistema em que cada trabalhador obtenha uma ação da empresa em que trabalha, e que não possa possuir uma ação da empresa a menos que trabalhe nela. Podem legislar, ao mesmo tempo, as corporações autogeridas por trabalhadores e as que são propriedade dos trabalhadores. Se acrescentarmos a isto um júri de cidadãos encarregado de avaliar o desempenho social das empresas, é possível continuar tendo mercados, mas sem capitalismo.
Para alcançar esse objetivo, o que os sindicatos deveriam fazer? Você ainda os considera agentes fundamentais neste novo mundo?
Definitivamente! Contudo, precisam ir além do projeto de garantir salários justos. Os salários nunca podem ser justos, independentemente do seu nível, em um sistema tecnofeudalista, porque há uma enorme desigualdade de poder entre os proprietários do capital da nuvem e os trabalhadores. Constata-se esta realidade, agora, no Vale do Silício. Também há muitos trabalhadores que não recebem sequer um centavo pelo trabalho gratuito que realizam. O que eu gostaria de ver são sindicatos radicalizados, que exijam “um trabalhador, um membro, uma ação de empresa, um voto”, em vez de salários justos.
Considera que a esquerda política está naturalmente adaptada a este novo mundo? Até o momento, é a extrema direita que está falando mais alto. Como podemos subverter o tecnofeudalismo?
Em primeiro lugar, sensibilizando acerca do fato de que o sistema atual de criação e distribuição de valor certamente nos levará a uma morte prematura e a uma diminuição constante das perspectivas da grande maioria, com resultados muito piores do que sob o capitalismo.
Em segundo, demonstrando que a tecnologia pode ser muito melhor, caso seja socializada. Se o seu município tivesse um aplicativo próprio que substituísse o Airbnb ou o Deliveroo, bem como um aplicativo de pagamentos bancários, e se empregos de qualidade fossem criados em nível municipal para que os programadores criassem esses aplicativos, as vantagens seriam facilmente acessíveis.
Em terceiro lugar, destacando como a concentração extremamente bipolar do capital da nuvem nas mãos de pouquíssimas pessoas, especialmente no Vale do Silício e na costa leste da China, dá lugar a uma nova Guerra Fria que pode facilmente se transformar em uma guerra termonuclear.
É isso que está por trás dos crescentes ataques dos Estados Unidos à China. Não se trata de Taiwan. Taiwan e a política de uma só China sempre conviveram conosco. Não se trata do fortalecimento da potência militar chinesa. É um absurdo. Trata-se de um desafio à hegemonia do dólar mediante a fusão da grande tecnologia chinesa com as finanças chinesas e a moeda digital do Banco Central da China. A paz mundial é, portanto, a terceira vantagem.
Você ainda considera que a ação fora dos Parlamentos é fundamental para consolidar essa mudança?
Não há substituto para a construção de movimentos extraparlamentares. No entanto, as greves e a luta contra a mudança climática exigem um programa que motive as pessoas a agir em nível local, então, ambas devem ser complementares. Agora, existe um precariado generalizado cada vez mais difícil de organizar em torno das linhas dos sindicatos tradicionais. Ao precariado, soma-se toda essa mão de obra gratuita fornecida, especialmente por jovens, no TikTok e no Instagram. Precisamos encontrar formas de unir os servos da nuvem e o precariado ao proletariado. Em termos práticos, não basta que os sindicatos organizem uma greve em uma fábrica. É necessário combiná-la, ao mesmo tempo, com boicotes de consumidores e campanhas militantes na nuvem.