Receita explosiva: big techs lucram alto com mentiras e golpes e não têm apreço à democracia. Entrevista especial com Marcelo Chiavassa

As big techs constituem uma oligarquia tecnocrática e descentralizada que controla as informações e a política em prol do lucro. Na lógica das plataformas, a desinformação funciona melhor e deve circular a qualquer preço

Arte: Marcelo Zanotti | IHU

Por: Elstor Hanzen | 24 Abril 2025

As plataformas de redes sociais e os motores de busca recebem mensalmente bilhões de empresas que tentam atingir seu público-alvo por meio do chamado microtargeting, ou seja, o uso de dados para identificar o real interessado em um produto ou serviço. Para essa engrenagem funcionar da forma mais lucrativa, costuma haver uma série de ingredientes, composto por uma receita explosiva de risco à democracia, segundo o professor de Direito e Tecnologia e doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo – USP.

Para começar, segundo Marcelo Chiavassa, conteúdo falso e absurdo (teorias da conspiração e afins) gera mais engajamento do que o verdadeiro. “Isso se dá por um motivo muito lógico: o absurdo mexe com a emoção das pessoas e gera mais envolvimento – visualizações, curtidas, comentários e compartilhamentos”.

Esses conteúdos também são mais fáceis de serem monetizados, o que propicia o surgimento de uma cadeia de desinformação, que gera retorno altíssimo para seus idealizadores, tanto do ponto de vista econômico quanto do ponto de vista de gestão de narrativa e manipulação das massas. Na sequência, os conteúdos podem ser patrocinados para aplicar golpes financeiros em idosos, ou para espalhar mentiras em escala, como no caso da taxação do Pix no início do ano.

Quando esse ecossistema de desinformação é direcionado às instituições democráticas, como vem acontecendo no mundo e no Brasil, há uma evidente ameaça à democracia. “A fragilização das instituições democráticas permite o surgimento de vias alternativas que podem ter como objetivo exatamente se aproveitar desse momento de fragilidade para chegar ao poder”, alerta o pesquisador nesta entrevista ao Instituto Humanitas UnisinosIHU por e-mail.

Ele explica que as instituições e pessoas tentam se defender das teorias da conspiração e dos absurdos por meio da lógica e da razão, mas isto acaba não gerando o mesmo engajamento e repercussão. E, quando as instituições eventualmente conseguem se defender, o ecossistema da desinformação rapidamente muda de foco. Para Chiavassa, em último caso, “essas ideias absurdas acabaram gerando verdadeiros movimentos sociais de ataque às instituições democráticas, como se viu recentemente em Washington e em Brasília”.

Para o professor, as plataformas têm "o mesmo grau de periculosidade que o tráfego de drogas e outros crimes mais graves, pois são elas o motor catalisador desse crime". Para frear essa avalanche de abuso econômico e político dos donos das big techs, Chiavassa defende a responsabilização das plataformas pelos conteúdos danosos à sociedade, como já vem acontecendo em diversos países europeus. “Entre as regiões mais atrasadas em relação ao tema da regulação, certamente temos a América Latina como um todo e o continente Africano”, afirma.

Marcelo Chiavassa (Foto: Arquivo Pessoal)

Marcelo Chiavassa de Mello Paula Lima é professor de Direito Civil e Direito e Tecnologia, doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, especialista em Direito Contratual pela PUC-SP e especialista em Direito Civil italiano pela Universidade de Camerino, Itália. Advogado e consultor jurídico.

Confira a entrevista.

IHU – Quais conclusões já se podem tirar da relação dos donos das big techs e com o governo Trump?

Marcelo Chiavassa – O primeiro mandato do presidente Trump foi permeado por polêmicas envolvendo as big techs. Ainda durante a corrida eleitoral, o Congresso norte-americano apurou o envolvimento do Facebook na manipulação do eleitorado em favor de Donald Trump, caso que ficou conhecido mundialmente pela empresa de marketing/análise de dados responsável pela inteligência da campanha do candidato – Cambridge Analytica.

O Facebook inclusive recebeu uma multa de 5 bilhões de dólares do Congresso norte-americano pelo seu envolvimento com as campanhas falsas e manipuladoras que visavam atacar a reputação da então candidata Hillary Clinton.

Posteriormente, durante o primeiro ano da Covid-19, o então Trump confrontou as big techs, especialmente no envolvimento com notícias e conteúdos que pareciam confrontar o que dizia a ciência naquele momento. Por essa razão, teve alguns de seus posts silenciados nas redes sociais (especialmente Twitter), tendo sido posteriormente banido das plataformas da Meta (Facebook e Instagram) e do Twitter (atual X).

Nesse momento, Donald Trump ameaçou as plataformas com uma maior regulação e tentou aprovar leis que restringissem seus poderes, tendo, inclusive, assinado um decreto para essa finalidade.

Observa-se, portanto, que as tensões e conflitos envolvendo big techs e Trump não vem de agora, e nem sempre os interesses parecem alinhados. Neste segundo mandato, o presidente Trump parece tentar construir uma relação mais próxima com as big techs, inclusive concedendo a seus proprietários, cargos políticos em sua administração.

Fusão das big techs e Trump 

Com isso, a figura pessoal dos proprietários e das pessoas jurídicas (plataformas) parecem se misturar ainda mais, tendo as plataformas sido grandes defensoras do Trump. Inclusive durante a corrida presidencial.

Ao mesmo tempo, a abertura dada às big techs demonstra o indiscutível poder político-econômico que elas possuem neste primeiro quarto do século XXI, que já não pode ser mais ignorada nem mesmo pelo presidente da maior economia do mundo.

Vale dizer que este não é um momento singular no governo Trump. Logo após sua eleição em 2016, Trump organizou um evento com os CEOs das principais big techs na Trump Tower.

Tal qual acontece agora, Elon Musk também já teve participação política no governo de Trump, tendo sido anteriormente (2017) nomeado para dois conselhos consultivos de Trump (Manufacturing Jobs Iniciative e Strategic and Policy Forum). Vale a lembrança de que Musk se retirou dos conselhos após Trump anunciar a saída dos EUA do Acordo de Paris, inclusive tendo atacado o então presidente pela decisão que ele considerava não ser boa nem para os EUA e nem para o mundo.

Assim, não há nada de realmente novo na presença das big echs na posse de Trump, senão uma tentativa de reaproximação de uma relação que foi bastante conturbada durante seu primeiro mandato.

IHU – Há um paralelo do apoio dos bilionários ao nazismo com os das big techs?

Marcelo Chiavassa – Os crimes perpetuados pelo movimento nazista na metade do século passado constituem uma das maiores atrocidades da história, não só pelo resultado, mas principalmente pelas ideias que a ideologia carregava – e carrega – até os dias de hoje.

O momento atual é, acima de tudo, de observação e reflexão. A elite, seja ela econômica, seja ela política ou intelectual, sempre esteve no centro dos acontecimentos da humanidade, sejam eles bons, sejam eles maus. Não há uma grande evolução/revolução social sem que alguma das elites esteja envolvida.

Neste caso, a participação e o apoio das big techs chamam sim atenção de quem estuda o tema, mas isso não significa por si só algo ruim ou sequer próximo do que foi o nazismo ao longo do último século.

IHU – Em março deste ano, uma revista americana fez um levantamento das maiores fortunas do mundo. Diz que as big techs não estão no topo da lista, por isso não seriam oligarquias. Mas, neste caso, não se trata apenas de poder econômico? Como avalia isto?

Marcelo Chiavassa – A análise baseada apenas no poderio econômico é um retrato do capitalismo do século XIX e de uma sociedade que já ficou para trás. Atualmente, o poder político está nas mãos de quem concentra a maior quantidade de informação e dados, razão pela qual cientistas políticos qualificam nosso atual estágio como “sociedade da informação”.

Assim, a formação das oligarquias modernas não pode ter como único ponto de análise o poderio econômico, mas também a capacidade de acessar, controlar e processar dados disponíveis na sociedade, gerando assim informação qualificada.

As atuais oligarquias centradas na sociedade da informação receberam a alcunha de tecno-oligarquias e são aquelas que basicamente controlam as infraestruturas de comunicação e o fluxo global de informações, permitindo, desta forma, que controlem o acesso ao consumo e ao trabalho, além de controlarem o comportamento das massas por meio de seus algoritmos.

As big techs constituem assim uma oligarquia tecnocrática e descentralizada, a qual apesar de não deter o maior capital, controla as formas de poder estrutural.

IHU – Em recente artigo, a filósofa italiana Gloria Origgi fez esta constatação: “Não está claro o que deve ser feito para neutralizar tal avalanche, mas uma coisa é certa: a revolução se moveu para a direita”. Concorda, e há uma “gramática” das redes sociais que favorece a extrema-direita? Por quê?

Marcelo Chiavassa – Me parece que a direita aprendeu mais rapidamente a jogar o jogo das redes sociais. O precursor disso tudo é Steve Bannon – e sua plataforma de notícias Breitbart News, que fez escola em países como Itália, Hungria, EUA e Brasil. Foi a mente por trás do uso da Cambridge Analytics na primeira campanha presidencial de Trump.

Enquanto a esquerda continua tentando fazer política por meio de argumentos lógico-racionais e sem conseguir criar sucessores para as figuras mais carismáticas, a direita se renova com extrema velocidade e consegue se comunicar com muito mais eficiência com as novas gerações.

Além disso, as falas absurdas (antissistema e convocando para o combate) e permeadas de discursos emotivos e fantasiosos (desinformação) criam um frenesi gigante na mídia, que impulsiona cada vez a candidatura dessas pessoas. A campanha presidencial Bolsonaro mostrou isso de forma bem contundente, tendo sido ele o primeiro presidente eleito tendo apenas 15 segundos de propaganda eleitoral na televisão e tendo perdido a maior parte dos debates políticos.

A cena política não está mais na TV e nos debates e sim no frenesi das redes sociais. E a direita conseguiu entender isso antes de todo o restante, inclusive mediante articulação de uso de bots coordenados (estratégia que a esquerda também tenta reproduzir).

O ponto central disso tudo é que as plataformas foram criadas para dar lucro aos seus criadores (absolutamente normal), e não se preocupam com a proteção da democracia e de suas instituições, o que é, no mínimo, perigoso.

IHU – Segundo o laboratório de pesquisa da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Meta recebeu mais de 1,7 mil anúncios falsos no caso do Pix em 10 dias. Como é possível uma empresa faturar tanto ao entregar mentiras ao público?

Marcelo Chiavassa – As plataformas de redes sociais e motores de busca recebem mensalmente muito dinheiro de empresas que tentam atingir seu público-alvo por meio do chamado microtargeting, ou seja, o uso de dados para identificar o real interessado naquele produto/serviço.

As plataformas possuem um conjunto de métricas que permite vender ao anunciante exatamente o perfil desejado, que por sua vez passa a ter mais convicção de que o público-alvo será atingido.

Ao mesmo tempo em que isso é excelente para todos os envolvidos (empresas que desejam vender e pessoas que desejam comprar aquilo que realmente lhes interessa). Isso também abre possibilidades do uso malicioso dessa ferramenta, seja para fins eleitorais (novamente aqui o exemplo da Cambridge Analytics), seja para fins criminosos.

Golpe em idosos

Se desejo aplicar um golpe financeiro e sei que idosos, por exemplo, são mais suscetíveis a eles, basta criar um anúncio falso e pedir que a plataforma direcione esse conteúdo aos idosos de determinado perfil socioeconômico. A receita explosiva seguramente causa muitos danos financeiros a esse público-alvo.

E quanto mais idosos caem no golpe, mais e mais os criminosos percebem que o estratagema funciona e os fundos destinados à publicidade aumenta. Consequentemente, mais e mais dinheiro ganha a plataforma, que por sua vez passa a priorizar cada vez esse tipo de anúncio.

Essa bola de neve só pode ser detida com incentivos reais de combate à anúncios fraudulentos por meio das plataformas, que, deve ser dito, perderão receita caso implementem essas medidas. Esses incentivos devem vir por meio de lei e regras rígidas que imponham responsabilidade social à essas empresas, que devem enxergar que esse problema possui o mesmo grau de periculosidade que o tráfego de drogas e outros crimes mais graves, e que são elas (plataformas) o motor catalisador desse crime.

IHU – Como analisa a necessidade e a viabilidade de regulação das big techs no Brasil?

Marcelo Chiavassa – Atualmente, a lei mais importante de regulação das big techs no Brasil é o art. 19 do Marco Civil da Internet, que estabelece a regra de que as plataformas não respondem por conteúdo criado por terceiros. Exceto se, depois de intimadas judicialmente para tal, não removerem o conteúdo.

A regra brasileira possui forte influência dos modelos regulatórios norte-americano (Communications Decency Act) e europeu (Diretiva 31/2000 de Comércio Eletrônico da EU), que estabelecem o mesmo padrão regulatório.

Antes de pensar em um novo modelo de regulação, temos de aguardar o posicionamento do Supremo Tribunal Federal a respeito da constitucionalidade, ou não, do artigo 19 do Marco Civil da Internet.

A eventual declaração de inconstitucionalidade abriria um vácuo regulatório que pode ser bastante problemático de lado a lado, caso o legislativo não estabeleça um novo marco regulatório o mais rapidamente possível.

A questão é bastante complexa. De um lado, a isenção de responsabilidade das plataformas, tal qual estipulado atualmente, parece ignorar que elas se beneficiam, inclusive economicamente, do modelo de negócio, sem que tenham responsabilidade alguma sobre o conteúdo dos posts de terceiros. Em outras palavras, lucram, sem ter de arcar com os riscos do negócio criado.

Pauta complexa

Por outro lado, a imputação de toda e qualquer responsabilidade às plataformas criaria uma corrida massiva ao judiciário, em quase toda interação, com milhares de novas demandas com pessoas se queixando sobre o conteúdo de cada mensagem/post. A insegurança jurídica poderia fazer com que as plataformas simplesmente deixassem de operar no Brasil, o que poderia, em último caso, inibir a inovação e o desenvolvimento tecnológico no país.

Caso as plataformas sejam responsáveis por todos os conteúdos gerados por terceiros, teríamos ainda um outro possível problema: para diminuir seu risco, provavelmente teríamos um grande filtro de uploads dos conteúdos, o que poderia causar censura e violar a liberdade de expressão.

Como se pode observar, a pauta é bastante complexa e atualmente esta questão encontra-se sob judice no Supremo Tribunal Federal, que tende a dar uma solução de interpretação à luz da Constituição Federal.

IHU – Há exemplos de países com regulação das redes sociais mais avançadas que podem servir de modelo? E quais ainda estão mais atrasados com essa pauta?

Marcelo Chiavassa – A União Europeia parece estar na dianteira na temática envolvendo a regulação das big techs.

Recentemente, duas grandes normas entraram em vigor: a) Digital Services Act, que estabelece regras sobre moderação de conteúdo, combate à desinformação, transparência algorítmica, combate a risco sistêmico à democracia; e b) Digital Markets Act, que visa criar mecanismos a livre concorrência e evitar práticas anticoncorrenciais, tema que ainda é muito pouco discutido no Brasil.

Além disso, temos exemplos interessantes também da Alemanha (NetzDg, 2017), que obriga as plataformas à removem conteúdos ilícitos, tais quais discurso de ódio e incitação à violência, e da Índia (2021), que separa a responsabilidade das plataformas de redes sociais de acordo com a quantidade de usuários ativos e estabelece normais mais rígidas àquelas com grande base de usuários.

Entre as regiões mais atrasadas em relação ao tema, certamente temos a América Latina como um todo e o continente Africano.

IHU – Diante de tudo isso, quais os riscos à democracia sem uma moderação e regulação das redes sociais?

Marcelo Chiavassa – A obra “Engenheiros do Caos” nos ajuda a entender como o conteúdo falso e absurdo (teorias da conspiração e afins) geram mais engajamento do que conteúdos verdadeiros. Isso se dá por um motivo muito lógico: o absurdo mexe com a emoção das pessoas e gera mais engajamento (visualizações, curtidas, comentários e compartilhamentos).

Desta forma, esses conteúdos também são mais fáceis de serem monetizados, o que propicia o surgimento de toda uma cadeia de desinformação, que gera retorno altíssimo para seus idealizadores, tanto do ponto de vista econômico quando do ponto de vista de gestão de narrativa e manipulação das massas.

Quando esse ecossistema de desinformação é direcionado às instituições democráticas, temos uma grande ameaça à democracia. A fragilização das instituições democráticas permite o surgimento de vias alternativas que podem ter como objetivo exatamente se aproveitar desse momento de fragilidade para chegar ao poder.

Isso acontece porque as instituições democráticas tentam se defender do alto engajamento das teorias da conspiração e dos absurdos por meio da lógica e da razão, o qual não gera engajamento, comoção e emoção, atingindo, portanto, pouquíssimas pessoas, quando em comparação com o outro lado.

E quando eventualmente essa defesa consegue alto engajamento, os financiadores do ecossistema de desinformação rápida e habilmente mudam o foco para outro fato absurdo/conspiratório, fazendo com que as instituições democráticas – ou qualquer que seja o seu alvo – não consigam se defender de maneira adequada e equilibrada, transformando isso em um verdadeiro massacre individual/coletivo.

As campanhas políticas/marketeiros já perceberam isso e quase sempre os políticos mais votados são aqueles que aprenderam a jogar esse jogo de fatos absurdos/conspiratórios, criando dezenas de pautas diferentes toda semana, impedindo qualquer defesa por parte de seus adversários.

Em último caso, essas ideias absurdas acabaram gerando verdadeiros movimentos sociais de ataque às instituições democráticas, como se viu recentemente nos Estados Unidos da América (Washington) e Brasil (Brasília).

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