04 Fevereiro 2025
“Estamos no maior ponto de inflexão da história. Toda a infraestrutura sobre a qual nossa civilização se sustenta está se tornando obsoleta”, alertou Jeremy Rifkin. O sociólogo, economista e ensaísta falou no Fórum Econômico Internacional América Latina e Caribe 2025, organizado pelo Banco de Desenvolvimento da América Latina e Caribe (CAF), no Centro de Convenções do Panamá, que analisou os desafios do futuro imediato da região. Entre eles, o avanço da inteligência artificial (IA) e a crise das mudanças climáticas são evidentes.
A reportagem é de Gabriela Esquivada, publicada por Infobae, 01-02-2025. A tradução é do Cepat.
Rifkin, autor de A Terceira Revolução Industrial e The Green New Deal, foi um dos especialistas convidados para dar uma conferência magistral, em seu caso sobre as mudanças climáticas, que são particularmente prejudiciais para uma região que pouco contribuiu para esta crise. Outra grande conferência contou com Rachel Adams, fundadora e CEO do Centro Global de Governança da IA, que abordou o impacto da IA no Sul Global. Adams expôs como a revolução tecnológica liderada por grandes corporações do Norte Global reconfigura economias, mercados de trabalho e estruturas de poder em todos os lugares.
Esses assuntos podem parecer independentes, mas - sem entrar no assunto da água usada para resfriar as instalações de computação por trás de um aplicativo de IA - poucas coisas merecem esse adjetivo ultimamente. O futuro da América Latina depende do que ela fizer diante da automação e da crise climática.
Rachel Adams começou pelo tema que ainda estava fresco na memória dos mais de 1.400 participantes do Fórum Econômico CAF 2025: o caso DeepSeek. “Trabalho com IA há anos, mas nunca houve um momento mais importante para falar sobre o que ela significa para o futuro de nossas sociedades”, disse.
“A DeepSeek era um ator menor em inteligência artificial”, explicou Adams. Contudo, desafiou as grandes empresas de tecnologia ocidentais: “Criou o seu modelo com apenas 2.000 chips especializados e um custo de treinamento de pouco mais de 5 milhões de dólares”, resumiu Adams. “Para efeito de comparação, a OpenAI gastou mais de 100 milhões de dólares e usou pelo menos 10 vezes mais capacidade de computação”.
Embora realmente pouco se saiba sobre a DeepSeek, sabe-se o que produziu nos Estados Unidos quando lançou seu chatbot em 20 de janeiro: tornou-se o aplicativo gratuito mais baixado - uma humilhação para o ChatGPT - e a Nvidia, que detém 90% do mercado de chips para IA, perdeu 18% de seu valor em 24 horas.
“O governo dos Estados Unidos tinha construído uma narrativa sobre a necessidade de grandes investimentos em infraestrutura computacional para liderar a corrida da IA”, lembrou Adams. Apenas uma semana antes do lançamento do DeepSeek, o presidente tinha anunciado um plano de investimento privado de 500 bilhões de dólares para reforçar a supremacia da OpenAI e de outras empresas estadunidenses.
Para Adams, o DeepSeek “colocou em xeque” essa narrativa “justamente quando acabava de se consolidar”. Também levanta questões profundas sobre a relação entre poder, inovação e acesso à tecnologia. “Até agora, o poder de um modelo de IA era medido pelo poder de computação usado para treiná-lo. Não havia uma metodologia precisa para medir sua real eficácia.” E se a disrupção na IA é possível, por que não na América Latina?
Na opinião da especialista, “a oportunidade da IA deveria ser para todos”, já que pode transformar setores-chave no Sul Global, da saúde à educação e a economia.
Adams destacou como a IA já melhora os diagnósticos médicos e otimiza o atendimento em regiões onde os profissionais de saúde são escassos. “Modelos de IA foram usados para detectar tuberculose em áreas remotas, permitindo intervenções precoces na África Oriental”, disse. Também mencionou o aplicativo Jacaranda Health, que oferece consulta em tempo real para centenas de milhares de mulheres grávidas e mães novas. “Melhora os cuidados de saúde e permite que as mulheres em áreas rurais acessem informações que não teriam de outra forma”.
Em relação às “soluções fintech impulsionadas pela IA, como o dinheiro móvel e os algoritmos de pontuação de crédito”, Adams disse que “podem expandir a inclusão financeira ao oferecer serviços bancários a populações antes desatendidas”.
A educação também é um campo com oportunidades significativas. Adams destacou como os modelos de IA podem personalizar a aprendizagem e adaptá-la a contextos específicos, como “criar livros didáticos e materiais de leitura em línguas africanas locais”.
Além dos benefícios individuais, Adams enfatizou que a IA pode desempenhar um papel central na sustentabilidade e no desenvolvimento. “Pode otimizar a gestão de recursos, monitorar o desmatamento e permitir o desenvolvimento de redes elétricas inteligentes”, ou ser aplicada a modelos climáticos para prever inundações, secas e incêndios florestais.
“O desafio é que essas oportunidades não se materializarão automaticamente”, alertou. “Exigem investimento, políticas adequadas e estratégias de adoção que evitem que a IA reproduza desigualdades, em vez de resolvê-las”.
“O impacto nos mercados de trabalho é o que mais preocupa os formuladores de políticas em todo o mundo”, reconheceu Adams. À medida que a inteligência artificial se incorpora a diferentes indústrias, o trabalho humano muda e, nos países mais pobres, isto significa um novo problema.
“Máquinas são mais baratas que os humanos. “O trabalho que antes era terceirizado para países de baixos salários, agora, está retornando aos países ricos porque a IA pode fazê-lo”. Na América Latina e no Caribe, onde a criação de empregos formais é difícil, a IA pode agravar o quadro de informalidade e precariedade. Segundo o Banco Mundial, até 5% dos empregos na região correm risco de automação, e as mulheres são as mais afetadas.
Um problema inerente ao trabalho digital são suas condições: “A economia das plataformas cresce rapidamente, mas sem segurança, estabilidade ou proteções”, disse Adams. Mencionou que até o final de 2025, 30% da economia global será baseada em plataformas digitais, com a faixa de 30 a 40 milhões de trabalhadores no Sul Global. “Motoristas, entregadores e milhões de pessoas treinando a IA”.
Esse trabalho invisível abarca da moderação de conteúdo violento à rotulagem de dados. Em acampamentos de refugiados - citou Dadaab, no Quênia, como exemplo -, as empresas de tecnologia têm uma fonte de trabalho mais do que ultrabarato: Pagam os residentes com tokens para ser utilizados no local, não em dinheiro real”.
A extração de recursos é outro ponto central. “O lítio é essencial para as baterias da IA, carros elétricos, celulares e computadores”, recordou Adams. “60% das reservas de lítio estão nos salares da América do Sul, mas o processo de extração destrói os ecossistemas locais”. E os benefícios econômicos não permanecem nos países. “O Chile extrai o lítio, mas o processamento e a fabricação de produtos acabados ocorrem em outras partes do mundo, principalmente na China”.
“Vivemos em um planeta de água, mas não entendíamos isto até recentemente”, confirmou Jeremy Rifkin, e muitos na plateia franziram a testa, confusos. Em seguida, contou que por milhares de anos a humanidade imaginou a Terra como um mundo de planícies, montanhas, vales e desertos, e projetou sua infraestrutura com base nessa visão: cidades, estradas, barragens e redes de produção fundadas na premissa de que o solo era o principal. No entanto, a crise climática demonstrou que a verdadeira força que governa o planeta não é a terra, mas a água. “A hidrosfera determina tudo: a atmosfera, a biosfera e a litosfera. “Sem água, não há vida”, arrematou.
Para Rifkin, a civilização baseada em combustíveis fósseis vive seus últimos dias. “Por 200 anos, escavamos o solo e desenterramos carvão, petróleo e gás”, explicou. Os recursos que impulsionaram a Revolução Industrial encheram a atmosfera com gases do efeito estufa, que consiste em uma camada que impede que o calor saia do planeta. “Para cada grau Celsius que a temperatura aumenta, a atmosfera absorve 7% a mais de umidade dos oceanos, rios, lagos, solos e florestas”.
O resultado é uma disrupção total do ciclo da água. Há rios atmosféricos, nevascas onde nunca tinha caído um floco, inundações e secas, ondas de calor que quebram o recorde de cada ano anterior, incêndios florestais e furacões cada vez mais destrutivos. “Não é um fenômeno isolado. Estamos na sexta grande extinção em massa”, avaliou Rifkin.
Os cientistas estimam que a Terra pode perder até 50% das espécies vegetais e animais durante a vida das crianças que nascem hoje. “Nem sequer aparece nas notícias. A última vez que algo assim aconteceu foi há 360 milhões de anos”.
A crise climática também é econômica e social. “Toda a nossa infraestrutura está obsoleta”, afirmou Rifkin. “Represas, diques e reservatórios foram projetados para um mundo estável. Agora, a água está reconfigurando o planeta e 60% dessas estruturas estão em risco de colapso nos próximos 20 anos”.
Rifkin acredita que está na hora de entrar na terceira Revolução Industrial e adotar uma nova infraestrutura baseada na água. Disse: “A água não é um recurso, é uma força vital. Não podemos controlá-la, apenas nos adaptar a ela”.
As mudanças de paradigma, disse, repetem um padrão: “Em determinado momento, emergem tecnologias novas e começam a se fundir”. No caso das revoluções industriais, juntaram três elementos-chave: um novo sistema de comunicação, uma nova fonte de energia e um novo modelo de transporte.
A primeira: “A máquina a vapor, o carvão e a ferrovia”, listou. A segunda: “O telefone, o petróleo e o automóvel”.
Agora, essas três dimensões voltam a sofrer uma mutação.
“A Internet já conecta 4,5 bilhões de pessoas em tempo real, com mais poder de computação em seus telefones do que o que levou os astronautas à Lua”, começou sua lista. “Milhões de pessoas já estão aproveitando o sol e o vento em suas casas, escritórios e comunidades”, continuou. E concluiu: “O transporte elétrico e movido a hidrogênio está substituindo os veículos fósseis, ao mesmo tempo em que se integra à rede digital e energética”.
Segundo Rifkin, esse novo modelo é descentralizado. “As duas primeiras revoluções industriais foram baseadas em energias concentradas e escassas: carvão, petróleo, gás. Eram caras, exigiam investimentos enormes e estavam nas mãos de poucos players globais”, explicou. Ao contrário, nesta nova era, a energia solar, eólica e o acesso digital estão descentralizados. “Estamos passando de uma economia de integração vertical para uma de integração horizontal”.
Essa mudança redefine o poder econômico. “As 500 maiores empresas do mundo representam um terço do PIB global, mas só empregam 65 milhões de pessoas em um planeta com 3,5 bilhões de trabalhadores”, destacou. A nova era favorecerá pequenas e médias empresas de tecnologia, capazes de operar de forma descentralizada.
As mudanças climáticas não têm fronteiras e afeta a todos, independentemente das políticas de cada país. Para Rifkin, isto nos obriga a repensar o modelo de governo global. “Os Estados-nação são uma relíquia da Revolução Industrial. A nova infraestrutura que estamos construindo não é nacional, é biorregional”, afirmou.
Os primeiros exemplos já estão em curso. “Na América do Norte, os estados de Washington, Oregon, Idaho e a província canadense Colúmbia Britânica formaram Cascadia, uma biorregião que gerencia recursos e responde coletivamente à crise climática”. O mesmo acontece com a região dos Grandes Lagos, onde oito estados dos Estados Unidos e duas províncias canadenses administram 20% da água doce do planeta. Na Europa, Rifkin mencionou o caso de Occitânia, Pireneus e Catalunha, que integram sua gestão territorial para além das fronteiras nacionais.
A China já está avançando neste modelo. “Identificaram oito biorregiões para adaptar sua infraestrutura à nova realidade climática”, destacou Rifkin. O ponto principal é que esses esquemas não eliminam os estados, mas os forçam a cooperar em função dos ecossistemas e não das fronteiras políticas.
Para a América Latina e o Caribe, a oportunidade é clara. “México, América Central e do Sul têm a maior biodiversidade do mundo. “Seus ecossistemas não seguem fronteiras, e o governo do futuro deve refletir isso”, disse Rifkin. Além disso, propôs um modelo de infraestrutura compartilhada: “Por que não ter uma rede elétrica continental, do Alasca ao Chile, baseada em energia solar e eólica? Ou um corredor de hidrogênio para o transporte?”.
“A crise climática não é apenas uma ameaça, é uma oportunidade para redesenhar a maneira como nos organizamos”, concluiu Rifkin. “O velho modelo está entrando em colapso. A questão é se vamos esperar que ele desmorone ou vamos construir o que vem a seguir”.