A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho da Festa do Batismo do Senhor, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Lucas 3,15-16.21-22.
“Quando todo o povo estava sendo batizado, Jesus também recebeu o batismo” (Lc 3,21)
Terminado o “tempo natalino”, começamos o tempo litúrgico conhecido como “tempo comum” (Ano C), ou seja, a vida pública de Jesus, sua missão como Filho em favor dos filhos. Toda a liturgia deste ano (2025) deve estar iluminada pelo tema do “Ano Jubilar: Peregrinos de esperança”.
O relato do batismo – que marca a passagem da vida em Nazaré para a vida peregrina – faz referência a uma experiência fundante de Jesus: confirmado pelo Pai, impulsionado pelo Espírito, Ele descobre o sentido de sua vida e a missão que devia realizar.
Com o seu Batismo, Jesus “começa algo novo”, um movimento de vida, fora das estruturas religiosas de seu tempo. É a primeira coisa que os evangelistas deixam claro. Todo o anterior pertence ao passado. Jesus é o começo de um caminho novo e, com uma presença inconfundível, reacende a esperança nas pessoas, sobretudo naquelas mais excluídas.
O relato do evangelho deste domingo afirma que Jesus deixou Nazaré, sua casa e sua comunidade, e se dirigiu para as margens do Jordão, onde fora batizado por João. Começa sua vida itinerante.
A estrada é a vida e a missão de Jesus, enviado para revelar o rosto misericordioso de Deus à humanidade. A sua estrada é marcada pela solidariedade e cuidado para com os mais excluídos e sofridos.
Ele é o “autor” da estrada; Ele é a estrada do cumprimento da vontade de amor e de salvação do Pai; Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida. Essa estrada deverá ser a mesma também dos discípulos, a do seguimento, a que conduz à plena bem-aventurança. Um Caminho que faz viver e realiza a comunhão em plenitude.
Com os itinerantes Jesus dá início a um movimento a serviço do Reino e Ele mesmo é um itinerante. Não permanece numa casa, não se fecha em um lugar, não fundou uma instituição vinculada a um tipo de templo, sinagoga ou santuário, mas percorre, com um grupo de discípulos(as)/amigos(as), também itinerantes, os povoados e aldeias da Galileia, anunciando e realizando o Reinado do Pai.
Ele é o inspirador de toda itinerância; com sua peregrinação Ele abre possibilidade de outros caminhos. Ele convoca a todos a um seguimento que está profundamente conectado com o seu próprio destino.
“Fazer caminho” não significa apenas deslocamento geográfico. As travessias nunca são apenas exteriores. Não é simplesmente na cartografia do mundo que o ser humano anda. Isso significa não perceber a profundeza do seu ser; “deslocar-se”, querendo ou não, implica uma mudança de posição, uma expansão do próprio olhar, uma abertura ao novo, uma alteração do ângulo habitual, uma adaptação a realidades, tempos e linguagens, um encontro com o diferente, um diálogo inspirador ou deslumbrado, que deixa necessariamente impressões muito profundas.
Seguir Jesus Cristo é aderir a Ele incondicionalmente, é “entrar” no seu caminho, recriá-lo a cada momento e percorrê-lo até o fim. Seguir é deixar-se “configurar”, isto é, movimento pelo qual cada um vai sendo modelado à imagem d’Ele.
Para entrar em sintonia com o Peregrino, é preciso sair dos lugares estreitos, das posições fechadas, das ideias fixas..., e “fazer estrada” com Ele. Aqui está a verdadeira identidade dos(as) seguidores(as) de Jesus: o(as) “adeptos(as) do caminho”.
De fato, em seus inícios, o cristianismo era conhecido como “o Caminho” (At 18,25-26). Tornar-se cristão não era simplesmente entrar numa nova religião; era encontrar o caminho acertado da vida, caminhando sob as pegadas de Jesus, para viver com sentido e esperança. A fé cristã não era entendida como um “sistema religioso” (leis, ritos, doutrinas, hierarquias...), mas um “caminho novo e vivo” que fora inaugurado por Jesus, um caminho que era percorrido com os olhos fixos n’Ele. Ser cristão significava, para eles, “seguir” a Cristo. Isto era o fundamental, o decisivo.
Por isso, não é estranho que ainda hoje podemos encontrar muitas pessoas que se sentem cristãs simplesmente porque foram batizadas e cumprem alguns deveres religiosos, embora nunca tenham considerado a vida como um seguimento de Jesus Cristo. Este fato, bastante generalizado, seria inimaginável nos primeiros tempos do cristianismo.
Então, qual o sentido do batismo de Jesus? Trata-se de um acontecimento que traz uma mensagem nova e que supera radicalmente o Batista. Os evangelistas cuidaram com esmero desta cena. O céu, que permanecia fechado e impenetrável, se abre para mostrar seu segredo. Ao abrir-se, não descarrega a ira divina que João Batista anunciava, mas revela o amor de Deus, o Espírito, que pousa pacificamente sobre Jesus. Do céu se escuta uma voz: “Tu és o meu Filho amado”.
A alusão aos céus que se abrem definitivamente é a expressão de uma esperança de todo o AT: “Quem dera rasgasses o céu e descesses!” (Is 63,19). A comunicação entre o divino e o humano, que havia ficado interrompida por culpa da infidelidade do povo, é, a partir de agora, possível graças à total fidelidade de Jesus. A distância entre Deus e o ser humano fica superada para sempre. Jesus ouviu a voz dentro de si mesmo e esta lhe deu a garantia absoluta de que Deus estava com Ele para levar a missão a bom termo.
A mensagem é clara: com Jesus Cristo o céu permanece aberto; de Deus só brota amor e paz; podemos viver com confiança. Apesar de nossas limitações e de nossa mediocridade, também para nós “o céu se abre”. Também nós podemos escutar com Jesus a voz do Pai: “tu és para mim um filho amado, uma filha amada”. De agora em diante podemos assumir nossa história de vida como a marca da dignidade de filhos(as) de Deus, e que devemos cuidar com zelo e agradecimento.
Para quem vive a fé no Deus que “rasga os céus e desce”, a vida se revela cheia de momentos de graça: o nascimento de uma criança, o encontro com uma pessoa cheia de bondade, o serviço gratuito, a experiência de um amor oblativo, o cuidado com a criação..., que põem em nossa vida uma luz e um calor novos. De imediato nos parece ver “o céu aberto”. Algo novo começa em nós: sentimo-nos vivos, desperta-se o melhor que há em nosso coração, reacende-se uma nova esperança, novas relações interpessoais são vividas...
Talvez aquilo que sonhávamos secretamente, agora nos é presenteado de forma inesperada: um início novo, uma vida diferente, um “batismo de Espírito”. Por detrás dessas experiências está Deus nos amando como Pai, está seu Amor e seu Espírito, doador de vida.
Recebemos o batismo gratuitamente; talvez, por isso mesmo, não damos o devido valor.
Efetivamente, não fomos consultados para ser batizados, mas tampouco fomos consultados para nascer, nem na família que temos. Tampouco nos pediram opinião para amanhecer em determinado lugar do mapa, nem para ser de uma determinada raça. E, no entanto, tudo isso é decisivo e nos constitui como pessoas.
Por que não damos o devido valor ao nosso batismo? Por que não somos mais humildes e nos coloquemos na fila dos demais? Por que não somos mais agradecidos e, com Jesus, mergulhemos nas águas do Jordão para sermos re-batizados?
Esquecemos que “ser cristão” é “seguir” Jesus Cristo: mover-nos, dar passos, caminhar, construir nossa vida seguindo suas pegadas. Nossa vivência cristã, às vezes, permanece numa fé teórica e inoperante, ou se reduz a uma prática religiosa rotineira, estéril, sem maiores compromissos; não transforma nossa vida em seguimento. “Batiza-nos, Senhor, com teu fogo!”
Nutramos nosso “ser peregrino” que carregamos dentro de nós! Deixemos que ele se submerja nas águas da vida, para um novo renascimento.
Despertemos a esperança adentrando-nos em “nosso Jordão”! E desfrutemos da paisagem externa, descobrindo assim a paisagem de dentro. Deixemos emergir nosso mapa interior. Contemplemo-lo e agradeçamos... tudo. O bom. O boníssimo e o difícil ou tortuoso. Assim é o caminho da vida.
- Sua vivência batismal se reduz a algumas práticas religiosas egóicas? Ou ela tem a marca de Jesus que, após seu batismo, viveu o compromisso com os pobres e excluídos até a radicalidade?