08 Janeiro 2025
Prefeitura pretender passar a coleta de resíduos sólidos para uma empresa privada por 35 anos
A reportagem é de Luciano Velleda, publicada por Sul21, 07-01-2025.
A vitória folgada na eleição de outubro do ano passado deu ao prefeito reeleito Sebastião Melo (MDB) força política para seguir adiante com seu processo de privatização de serviços públicos. Além de querer alterar o conselho do Departamento Municipal de Água e Esgoto (Dmae), proposta vista como o primeiro passo para a venda do órgão e que foi momentaneamente barrada na Justiça, a Prefeitura anunciou, logo após o pleito, o edital de Parceria Público-Privada (PPP) na gestão de resíduos sólidos da Capital por 35 anos.
A medida causou revolta entre as cooperativas e associações de catadores, que também buscam na Justiça a garantia da realização de audiências públicas e a ampliação do debate. Fagner Antonio Jandrey, catador e secretário estadual do Movimento Nacional de Catadores e Catadoras de Material Reciclável (MNCR), denuncia que a situação atual dos catadores em Porto Alegre é de extrema precariedade, com estruturas de trabalho sucateadas e sem investimento ao longo de sucessivas gestões no governo municipal. Ele destaca que o último investimento foi feito há cerca de 10 anos nas Unidades de Triagem (UTs).
Para ele, os catadores passam por uma situação de não reconhecimento e de desvalorização do trabalho executado, situação representada pelo “contrato mísero” das cooperativas que trabalham nas UTs com a Prefeitura. “É um contrato que mal paga o custeio do serviço, não paga a força de trabalho das pessoas. É um dos piores contratos do Brasil”, afirma.
A Capital tem atualmente 25 Unidades de Triagem, sendo 17 com contratos com a Prefeitura, em vigor desde 2019. Os contratos permitem o pagamento entre R$ 3 mil e R$ 7 mil, com o máximo indo para a melhor unidade – só tem contrato as UTs com certidão negativa de débito. Em média, cerca de 20 catadores trabalham em cada galpão de triagem. Do valor recebido, os catadores pagam luz, telefone e outras despesas, para depois dividirem entre eles o recurso final, cuja média, diz Jandrey, tem sido em torno de R$ 800 por catador. Devido ao baixo valor, os catadores têm recebido um auxílio emergencial de R$ 670, porém a ajuda se encerra agora em janeiro.
A realidade também é de criminalização dos catadores, acusa o secretário estadual do MNCR, principalmente daqueles que trabalham nas ruas, contra quem há uma lei que proíbe a circulação dos seus “carrinhos” (ainda que a entrada em vigor da lei tenha sido prorrogada por mais um ano). “É uma situação de perseguição e de criminalização de quem protege a cidade, cuida da cidade, do meio ambiente e da saúde pública.”
Há três categorias de catadores em Porto Alegre: os que atuam nas ruas (a maioria); os que trabalham nas Unidades de Triagem com contrato com a Prefeitura e os que também trabalham nas Unidades de Tiragem, mas sem contrato com o governo municipal. Jandrey estima que Porto Alegre tenha cerca de 500 catadores atuando nas Unidades de Triagem e 7 mil trabalhando nas ruas da cidade.
“A gente tem várias situações dentro da categoria, mas o que unifica todo mundo é a precariedade de não ser reconhecido, valorizado pelo trabalho, não ter investimento e a única alternativa que a Prefeitura propõe é justamente terminar com a categoria”, lamenta. Como exemplo, ele cita que uma das propostas da Prefeitura para os catadores de rua é oferecer curso para mudar de profissão, ação que ele interpreta como uma forma de deslegitimar o trabalho dos catadores.
O anúncio da PPP dos Resíduos Sólidos pegou de surpresa os catadores devido ao momento escolhido pelo governo Melo. Isso porque, ao longo de 2024, a Prefeitura e as cooperativas e associações de catadores estavam negociando ajustes no contrato por meio de uma mediação promovida pelo Tribunal Regional do Trabalho (TRT). As reuniões vinham alimentando a esperança dos catadores em obter “um contrato digno”, além da perspectiva de que o processo da PPP fosse melhor discutido. Após a eleição que garantiu a reeleição de Melo, entretanto, a Prefeitura surpreendeu e decidiu sair da mesa de negociação.
Foram quatro sessões durante o ano de 2024, nas quais ficou estabelecido que os contratos seriam revistos na mesa de mediação e que o contrato novo, construído com a participação da Defensoria Pública, do Ministério Público, do Ministério Público do Trabalho, do Tribunal de Contas, da Justiça do Trabalho, da Prefeitura e dos catadores, seria incorporado pela PPP, cujo o edital só seria publicado depois.
O resultado, entretanto, foi diferente. Na reunião de novembro, a Prefeitura disse que não tem condições de melhorar o contrato e comunicou que não participaria mais da mediação. Pelo edital da PPP, os catadores poderão optar entre manter o mesmo contrato com a Prefeitura, em condições que eles afirmam ser precárias, ou fazer contrato com a concessionária, porém, no mesmo padrão do contrato atual.
“Todo mundo foi surpreendido com o abandono da Prefeitura, que abriu mão da mediação no TRT e na outra semana lançou o edital de consulta pública da PPP”, recorda Fagner Jandrey. O catador reclama do período escolhido para a consulta pública, considerando a dificuldade de haver participação e mobilização social no final do ano e no verão. “Além de ter sido lançado num período inadequado para participação social, o processo também tem uma série de inconsistências ao não prever audiências públicas e ter como única forma de participação um formulário do Google limitado e que não tem como contribuir para uma proposta. É essa inconsistência do processo que motivou o pedido de liminar suspendendo a consulta pública até que se estabelecesse outros instrumentos e meios de participação efetiva da sociedade no processo.”
A liderança dos catadores avalia que a proposta da Prefeitura na PPP dos Resíduos Sólidos impacta de forma muito negativa a categoria, mas também a sociedade como um todo. Como exemplo, cita a transferência da coleta para uma empresa privada por 35 anos, a não previsão de controle social sobre o trabalho da concessionária e o uso do recurso da taxa de coleta de lixo paga pela população para custear o serviço da empresa. “A Prefeitura fala que não tem recurso, mas como é que para bancar a empresa tem recurso?”, questiona.
Jandrey se refere ao investimento inicial previsto para ser feito pela empresa que vencer a concessão, que depois será pago com recurso da taxa de coleta do lixo. “A PPP vai ser bancada com dinheiro público através da taxa de coleta do lixo que é cobrada de todo porto-alegrense.” Ele ainda ressalta que o edital da PPP prevê a continuidade do atual modelo de gestão dos resíduos sólidos, sem qualquer inovação, com a maioria do material devendo seguir para aterros sanitários.
Em relação aos catadores, o secretário estadual do Movimento Nacional de Catadores e Catadoras de Material Reciclável (MNCR) avalia que o edital da PPP os coloca apenas como pessoas beneficiárias de uma política assistencial e não como protagonistas do serviço de limpeza urbana.
Ele explica que o único espaço colocado para os catadores na proposta é continuar como triadores dentro das cooperativas nas Unidades de Triagem (UTs). Segundo Jandrey, a medida desrespeita o Plano Municipal de Gestão de Resíduos, que trata da coleta seletiva ser feita com as cooperativas de catadores, assim como desrespeita a Política Nacional de Resíduos. Além de ter só o espaço nas UTs, ele conta que a PPP não determina qual será a garantia contratual dos catadores, não diz quanto será pago pelo serviço e nem como será pago.
Para a liderança dos catadores, a postura da Prefeitura faz parte de uma visão deturpada sobre a importância e a capacidade deles em exercer o serviço como profissionais da coleta seletiva. “A gente tem condições de assumir mais partes do serviço, tem legislação para isso, falta vontade política mesmo.” Por outro lado, Jandrey acredita que o trabalho dos catadores é bem visto pela população em geral, ainda mais depois da enchente de maio de 2024 e no contexto da crise climática, em que tratar os resíduos é muito importante, aliado a um programa de educação ambiental que estimule as pessoas a participarem da coleta seletiva.
Advogada da Ação Civil Pública que ingressou com pedido de liminar pleiteando a ampliação do debate sobre a Parceria Público-Privada (PPP) na gestão dos resíduos sólidos e a suspensão da consulta pública com data de término inicialmente prevista para dia 1º de fevereiro, Paula Garcez Corrêa Silva explica que o governo Melo, no último dia 23 de dezembro, estendeu o prazo da consulta até 21 de fevereiro. Além disso, a Prefeitura publicou o chamado da consulta pública no Jornal das Cidades, veículo que o município entende ser de grande circulação, mas que ela acredita não ser suficiente, pois o jornal não é conhecido do público, sendo mais um jornal de editais.
“A PPP, tal como proposta, representa a extinção dos trabalhadores organizados, representa a extinção da categoria dos catadores. É uma extinção lenta e gradual, provocada há muito tempo”, afirma Paula. Ela justifica sua opinião ao enfatizar que a PPP coloca o resíduo como fonte de renda alternativa para a concessionária, enquanto a legislação situa o catador como protagonista na gestão de resíduos. “Esse é o primeiro grande problema. Ela vai absolutamente contra tudo o que as boas práticas recomendam no mundo inteiro de construção de parceria a respeito da gestão de resíduos.”
A advogada destaca que, segundo a PPP proposta pela Prefeitura, o resíduo não é visto como fonte de trabalho e renda para os catadores e sim como fonte de resultado para a concessionária privada.
“A segunda questão é que os catadores só podem triar (separar), eles não podem fazer nenhuma outra espécie de trabalho, enquanto a concessionária tem garantido o direito de explorar a coleta seletiva solidária e a compostagem”, explica Paula. “Aos catadores só resta triar dentro de um galpão, com a opção de escolher serem contratados pela concessionária ou pela Prefeitura. A PPP é o corolário de um processo que vem acontecendo há muito tempo de criminalização e de alegação de informalidade”, sustenta.
Ela enfatiza que a PPP não coloca o catador como prestador de serviço ambiental, mas como alguém que deve ser auxiliado, um conceito muito diferente da luta que tem sido feita pela categoria. Além disso, a advogada critica a falta de transparência, participação e controle social, porque a entidade fiscalizadora da concessionária será indicada numa lista tríplice pela própria concessionária. “Há um longo processo de precarização que está sendo consolidado com essa PPP”, afirma.
A profissão de catador é regulamentada no Brasil desde 2003. Em 2007, houve um marco considerado fundamental para os catadores que foi a permissão para que as cooperativas pudessem ser contratadas pelos municípios, sem licitação, para fazer a coleta, processamento e comercialização em áreas com sistema de coleta seletiva. Em 2010 foi então criada a Política Nacional de Resíduos Sólidos, com o resíduo sendo considerado criador de trabalho e renda e o catador estando no centro da gestão de resíduos.
No Rio Grande do Sul, cidades como Gravataí, Viamão, Santa Cruz do Sul, Uruguaiana, Canoas, Sapucaia e Cruz Alta têm sua coleta seletiva feita por cooperativas de catadores. A capital gaúcha está fora da lista, embora tenha fechado seus lixões em 1990 e, em seguida, construído os galpões de triagem pela Metroplan. “Porto Alegre é uma vergonha, porque é o berço da coleta seletiva e não tem inclusão de catadores”, afirma.
Para ela, até a PPP ser aprovada, a tendência é de que os catadores continuem vivendo num “galpão podre”, de modo a dificultar que cumpram o que a PPP espera deles. Caso isso se concretize, quem assumirá o serviço de triagem pode ser a concessionária. “Tudo isso sob uma aura de legitimidade. Os catadores estão ferrados, mas a população também porque isso é uma coisa que vai impactar a vida de todo mundo, são 35 anos e é muito dinheiro.”
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‘Os catadores estão ferrados, mas a população também’: PPP de Melo para o lixo é alvo de críticas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU