Multas por coleta de lixo aumentam 7 vezes e catadores se dizem perseguidos por Melo, prefeito de Porto Alegre

Foto: Senado Federal | Flickr cc

08 Junho 2021


Em abril deste ano, a catadora autônoma Roselaine Ayres da Conceição, moradora da Ilha Grande dos Marinheiros, foi multada pela Prefeitura de Porto Alegre enquanto recolhia resíduos recicláveis descartados pela população nas vias públicas da cidade. Além da multa, Roselaine conta que a fiscalização também recolheu os materiais que ela havia coletado e levou os documentos de sua kombi, veículo que ela usa para trabalhar. “Afetou muito meu trabalho, porque, até pegar os documentos, ficamos uma semana sem poder trabalhar. Pra quem trabalha por conta, um dia sem trabalhar é difícil”, relata.

A reportagem é de Annie Castro, publicada por Sul 21, 06-06-2021.

Roselaine é apenas uma de dezenas de catadores que trabalham de maneira autônoma na Capital e contam estar enfrentando dificuldades ainda maiores neste ano de pandemia em razão das frequentes multas aplicadas pela Prefeitura por coletarem resíduos sólidos, o chamado lixo seco, nas ruas da Capital. Segundo relatos, além das multas, que variam de R$ 1 mil a até R$ 7 mil, a Prefeitura também está, durante as fiscalizações, recolhendo os materiais dos catadores e, em alguns casos, até mesmo os veículos que eles usam para recolher e transportar os recicláveis.

Desde 2014, o Código Municipal de Limpeza Urbana de Porto Alegre determina que somente o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) é autorizado a prestar os serviços públicos de saneamento básico, limpeza urbana e de coleta, transporte e destinação dos resíduos sólidos descartados pela população na Capital. Ao longo de todo ano de 2020, no entanto, o DMLU emitiu 28 multas por coleta irregular de resíduos sólidos durante ações conjuntas de fiscalização com equipes da Prefeitura. Já entre janeiro e maio deste ano, foram aplicadas 84 multas aos catadores autônomos – sendo 78 delas por coleta irregular e quatro por atos lesivos à limpeza urbana. Ou seja, a média mensal de autuações saltou de 2,3, em 2020, para 16,8, em 2021, cerca de sete vezes maior.

“A partir de janeiro começou a vir multa em abundância, uma por cima da outra. Tem catador que tem nove multas, outro que tem cinco, outros que tem seis. Isso virou perseguição”, afirma o líder comunitário Venâncio Castro, da Ilha Grande dos Marinheiros, que reuniu cerca de 30 autuações recebidas por catadores informais da região para entregar à Defensoria Pública do Rio Grande do Sul e tem atuado no movimento dos catadores autônomos.

A Prefeitura argumenta que as multas, aplicadas por coleta irregular de resíduos, estão de acordo com o Código Municipal de Limpeza Urbana de Porto Alegre, instituído em 2014 pela Lei Complementar nº 728, e estão acontecendo durante ações conjuntas de fiscalização com várias equipes do Poder Municipal. Ainda segundo o Município, em alguns casos, também ocorre autuação por conta da condição do veículo usado pelos recicladores.

Ações conjuntas de fiscalização com equipes da Prefeitura aumentaram em 2021. (Foto: Divulgação DMLU/PMPA)

Com a intensificação das fiscalizações desde que Sebastião Melo (MDB) assumiu a Prefeitura, catadores e catadoras autônomos o acusam de estar promovendo uma perseguição à categoria. “Ele sempre perseguiu a nossa classe de trabalho, desde que era vice-prefeito do [José] Fortunati. Tudo que ele pode fazer para prejudicar a nossa classe, ele fez”, diz o catador Rafael Gomes Vargas. “Quando entrou o Marchezan, parece que essa Lei sumiu, porque não houve perseguição nas vias, como ocorre agora, ou nos condomínios. E agora que ele [Melo] ganhou de prefeito, ele tá impondo como prioridade dele a perseguição à nossa categoria de trabalho”, complementa.

O catador Valdenir Macedo da Silva, conhecido como Vavá, ressalta que essa não é a primeira vez que catadores e catadoras informais são alvo de Sebastião Melo e relembra a Lei nº 10.531, apelidada de Lei das Carroças. Criada por Melo quando era vereador de Pelo Alegre, a legislação foi aprovada na gestão de José Fortunati e, em 2013, passou a proibir a circulação de Veículos de Tração Animal (VTA) nas ruas da Capital, o que afetou inúmeras pessoas que utilizavam as carroças como principal meio de trabalho. “Ele [Melo] tirou nossa ferramenta de trabalho, que era nossa carroça, e agora tá tirando nossa kombi, nosso caminhãozinho, nosso carrinho”, afirma.

 

Impactos comunitários

Apesar das multas, os catadores dizem não ter escolha e seguem recolhendo o lixo reciclável nas ruas de Porto Alegre. Desde que foi autuada, Roselaine alterou a rotina de trabalho. “Mudamos os horários, mas não adianta nada, eles continuam perseguindo os recicladores autônomos. A gente tem que andar como ladrão, fugindo pra não ser multado”, relata. Assim como para ela, a mudança nos horários de coleta para evitar receber multas também tem sido uma realidade para outros catadores autônomos da Capital.

“Aumentou bastante os catadores nas noites, porque, imagina no caso de quem comprou uma kombi parcelada e tá trabalhando todos os dias pra pagar, aí chega os cara e leva ela. Tu fica sem veículo e o cara que te vendeu vai querer receber. Eu, por exemplo, tô saindo de madrugada pra eles não me pegarem, porque minha kombi tá com tudo em dia, mas, como a menor multa é R$ 1.448,00, não posso arriscar”, conta Vavá, que é integrante da Associação de Moradores da Vila Dique e trabalha desde 1978 como catador autônomo.

O catador Valdenir Macedo da Silva, conhecido como
Vavá, é integrante da Associação de Moradores da
Vila Dique e catador autônomo desde 1978.
(Foto: Arquivo pessoal)

Morador da vila Santo André, na Zona Norte de Porto Alegre, e trabalhando com reciclagem há 15 anos, o catador Rafael Gomes Vargas recebeu multa de coleta irregular de resíduos no valor de cerca de R$ 4 mil. “Afeta totalmente o nosso serviço”, ele explica. “A gente fica com medo de acontecer novamente, de eles nos multarem de novo ou de recolherem nosso veículo.”

Rafael denuncia a forma como estariam sendo conduzidas as abordagens durante as fiscalizações da Prefeitura. “Eles já chegam abordando como se a gente fosse um criminoso, um marginal que tá assaltando na rua. Chegam destratando a gente da pior maneira possível; invadindo tua propriedade, teu veículo e te dão multa de tudo que eles puderem dar como multa: do caminhão, de todos equipamentos”, relata Rafael. “É até constrangedor o jeito que eles tratam a gente. A gente se sente impotente diante deles”, complementa.

Além de quem é autuado, as multas e o recolhimento dos veículos afetam outras pessoas das regiões onde esses catadores vivem. Muitas dessas comunidades estão localizadas em lugares de vulnerabilidade social e têm a reciclagem como principal fonte de renda e trabalho para seus moradores. Na vila Santo André, no bairro Humaitá, cerca de 80% da comunidade trabalha com materiais recicláveis, segundo o catador Rafael. “Aqui é uma comunidade bem carente, onde a maioria do pessoal depende disso pra sobreviver. Essa perseguição afeta muitas famílias, prejudica muitas famílias que dependem disso pra pagar as contas”, diz.

O mesmo ocorre na Vila Dique, onde das 350 famílias cerca de 150 têm a reciclagem como única fonte de renda. “Além dos que buscam os materiais, tem também as famílias que ajudam a separar os recicláveis”, explica Vavá. “Só comigo trabalham três famílias, porque eu trago os recicláveis na kombi e eles trabalham na reciclagem”, complementa o catador.

 

Alternativas

Após manifestação que reuniu dezenas de catadores e catadoras autônomos em caminhada na manhã da última segunda-feira (31), os recicladores informais foram recebidos no Paço Municipal pelo secretário Municipal de Governança Local e Coordenação Política (Smgov), Cassio Trogildo, com os secretários adjuntos Luciano Marcantônio e Alexandre Borck, e o chefe de Gabinete do Prefeito, André Coronel. Na ocasião, ficou acordado que os catadores e catadoras informais deverão realizar um levantamento sobre a realidade dos trabalhadores autônomos, como quantitativos de resíduos coletados, região de atuação, número de pessoas envolvidas no processo e como as coletas são realizadas.

Assim que os dados forem repassados ao Executivo, o DMLU irá organizá-los e montar uma proposta para inserir os catadores autônomos no sistema regular de coleta de resíduos recicláveis, segundo informações do próprio Departamento. Além disso, também ficou decidido na reunião que os recicladores autônomos deverão apresentar as autuações que teriam sido aplicadas, de modo indevido, por coletas realizadas em condomínio, já que a lei proíbe apenas o recolhimento nas ruas, mas não impede a entrega voluntária de resíduos aos catadores por condomínios.

Após a manifestação na segunda-feira (31), a Prefeitura realizou reunião com recicladores autônomos. (Foto: Giulian Serafim / PMPA)

A formalização dos trabalhadores autônomos em cooperativas ou associações é apoiada pelo Fórum de Catadores de Porto Alegre, entidade composta por 21 grupos, dentre eles Unidades de Triagem (UTs), associações e cooperativas de reciclagem que possuem algum vínculo com o DMLU. Daniel Holmos de Mesquita, presidente da Associação de Catadores da Padre Cacique e um dos coordenadores do Fórum, ressalta que é necessário que aqueles que trabalham de maneira informal com a reciclagem realizem algumas prestações de informações para a Prefeitura:

“Tivemos uma conversa com um dos coordenadores do movimento dos catadores irregulares e sugerimos que eles buscassem a legalização, que fizessem um mapeamento de quantos grupos são para ter pelo menos dados. Se tu quer direito ao trabalho, tu tem que estar organizado para pedir isso. Pra tu querer direitos tu tem deveres. Tem que prestar contas pra Prefeitura, nem que seja de como será feita a coleta, do material recolhido, do que foi comercializado, sobre para onde vai o rejeito, isso é feito desde a década de 90”, afirma.

Além disso, há também um projeto de lei complementar em tramitação na Câmara de Vereadores de Porto Alegre que visa impedir que o Município possa implementar multas em quem tem a reciclagem como a única atividade econômica. De autoria da vereadora Bruna Rodrigues (PCdoB), o projeto prevê a inclusão de um parágrafo no Código Municipal de Limpeza Urbana para “desencobrir de infração grave punível com multas as pessoas recicladoras de resíduos sólidos que detêm sua subsistência de recolher, transportar e reciclar descartes de resíduos”

Segundo a vereadora, o projeto foi criado e protocolado após seu gabinete receber diversas denúncias de catadores e catadoras informais sobre o aumento das multas. “Temos uma série de mulheres e homens chefes de família que têm na reciclagem a única fonte de renda familiar. E aqui estamos falando de pessoas que lutam apenas pelo direito de existir, de ter o mínimo, que é o arroz e o feijão na mesa, e estão sendo multadas por isso. Estão sendo criminalizadas famílias que lutam pelo direito de existir com o mínimo possível, nem é o com o digno, é com o mínimo”, disse a vereadora ao Sul21.

Porém, a extinção de multas a quem recolhe resíduos de forma irregular não é consenso nem mesmo no Fórum de Catadores de Porto Alegre. “Acabar com as multas ou liberar a coleta irregular de maneira descontrolada é, no meu ponto de vista, um retrocesso. Mas, enquanto Fórum, não temos nenhuma posição oficial porque defendemos que eles [autônomos] tenham o direito ao trabalho, mas temos uma certa discordância quanto às ações”, afirma Daniel Mesquita.

Daniel relata que essa falta de consenso dentro do Fórum acontece, em parte, porque a maioria dos integrantes de todos os grupos são favoráveis às multas por coleta irregular de resíduos: “O ponto de convergência nesses dois movimentos é o direito ao trabalho, mas é difícil juntá-los porque, quem faz a coleta irregular acaba tirando parte dos resíduos das UTs, associações e cooperativas. Não tem como dizer que não, porque isso acontece”.

Ele também ressalta que até mesmo os galpões que possuem algum vínculo, seja por contrato ou por convênio, com a Prefeitura recebem multas, passam por fiscalizações e precisam prestar contas ao Município. “Estamos sempre com acompanhamento, tentando regularizar com o meio ambiente, tirar licença ambiental, fazer alvará. A Prefeitura nos pressiona, nós levamos multa. Eles, catadores irregulares, têm deveres a cumprir também”, diz.

Entretanto, outra parte dos catadores e catadoras formais da reciclagem também é a favor do fortalecimento das categorias pelo fim da perseguição, repressão e multas aos autônomos. No último dia 19, lideranças de catadores e catadoras das UTs de Porto Alegre e os catadores autônomos estiveram reunidos e decidiram unificar as lutas dos dois movimentos pela valorização do trabalho de recicladores e para que a coleta seletiva na Capital seja realizada pelos catadores e catadoras.

“Após colocações desta injusta realidade, onde a Prefeitura investe milhões de reais para destinar os resíduos ao aterro (que poderiam ser reciclados) e um pequeno valor para as Unidades de Triagem, que não dão conta nem sequer dos custeios operacionais, e para os catadores autônomos, somente repressão, ficou encaminhado que a luta é uma só, indiferente dos locais de trabalho. Seja nos galpões ou nas ruas, a categoria exige respeito, reconhecimento e valorização”, diz nota publicada pelo Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR).

 

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