09 Janeiro 2025
Uma mudança transformadora para deter a crise da biodiversidade planetária. O ‘IPCC’ da biodiversidade - a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES) - lançou o seu último relatório há duas semanas, elaborado por 165 importantes especialistas internacionais de todas as regiões do mundo, ao longo de três anos de trabalho. Para resolver a perda de riqueza natural que se acelerou, é indispensável compreender que se trata de uma policrise, advertem.
Essa mudança transformadora, como a IPBES a chama, engloba a proposta de uma série de mudanças fundamentais em todo o sistema: nas visões da sociedade (formas de pensar, saber e ver); nas estruturas (formas de organizar, regulamentar e governar); e nas práticas (formas de fazer, comportar-se e relacionar-se).
Lucas Garibaldi, doutor em Ciências Agropecuárias e codiretor do relatório, classifica esta pesquisa como um “marco histórico”, avaliando que é o resultado de um consenso científico-político promovido por 147 países “com base na melhor ciência que possuem”. “A história nos mostra – insiste – que as sociedades podem se transformar em grande escala, como fizeram durante a Revolução Industrial. “Ainda que essa era tenha gerado custos ambientais e humanos terríveis, é a prova de que é possível uma mudança fundamental e sistêmica”.
A entrevista é de Ariadna Martínez, publicada por El Diario, 02-01-2025. A tradução é do Cepat.
Por que consideraram ser necessário um relatório como este e o que o faz singular?
Descobrimos que de alguma forma, durante as últimas décadas, embora tenha havido muitos esforços para sair desta trajetória de destruição planetária, tais esforços não tiveram sucesso em escala global. O saldo continua negativo: não se conseguiu mudar a curva de destruição da biodiversidade. Portanto, vemos que é necessária uma mudança que seja qualitativamente diferente: uma mudança transformadora.
As abordagens anteriores não costumavam levar em conta as causas profundas da perda de biodiversidade, tais como os nossos valores. A maioria das pessoas ainda pensa que o seu bem-estar não depende da natureza. Sentem-se, consciente ou inconscientemente, completamente desconectadas dela, e isto é um erro, porque vivemos em um sistema ecológico onde o nosso bem-estar depende diretamente dela. Estamos ultrapassando os limites planetários e já são vistas as consequências de não se reconhecer também que, na verdade, toda a economia depende da natureza, as consequências da falta de reconhecimento de que existem leis ecológicas.
Muitas pessoas veem as mudanças apenas como renúncias. No entanto, também podemos obter outras coisas delas. O que receberíamos como ‘retorno’, se começássemos a ativar essas estratégias?
De alguma forma, as pessoas estão começando a perceber que algo ruim está acontecendo: trabalham muito, mas não são felizes; não conseguem ter acesso a coisas básicas para o bem-estar; percebem que a única coisa que podem fazer é gastar dinheiro em coisas que têm a ver com o curto prazo; quase não têm acesso à natureza; a felicidade que obtêm é muito rasa, muito superficial, por assim dizer; tudo tem que ser rápido, fácil, no imediato. É difícil olhar para o longo prazo, que compramos coisas e quando as compramos nos sentimos muito bem, mas dois dias depois já é algo velho e precisamos comprar mais alguma coisa.
Isso soa como um padrão semelhante aos vícios...
Sim. Estamos em uma sociedade que se baseia nessa série de vícios. No entanto, as pessoas estão começando a perceber que muitas coisas acabam não funcionando, que as coisas em que investimos muito tempo e dinheiro não geram em nós uma paz duradoura, por assim dizer.
O relatório aponta que precisamos repensar algumas questões: como a que vivemos em um mundo em que apenas dez pessoas têm uma riqueza exagerada e isso afeta verdadeiramente o bem-estar do planeta e da maioria da população. Ou se verdadeiramente temos de consumir tanto, ou desta forma, ou quais tipos de produtos convêm consumir. E, nesse sentido, geralmente as coisas que são mais benéficas para o meio ambiente também são mais benéficas para nós. Além disso, as pesquisas indicam que mais de 10 trilhões de dólares em oportunidades de negócio poderiam ser gerados e que, com este enfoque, 395 milhões de empregos poderiam ser sustentados a nível mundial até 2030.
A primeira estratégia trata da conservação, restauração e regeneração. Você pode dar exemplos de casos reais que resumam esta primeira estratégia?
Existem muitos exemplos de áreas de conservação cogeridas com as populações locais, em quase todos os países. Algumas delas inclusive estão apoiadas na legislação. Em alguns destes casos, por exemplo, as pessoas não têm a visão de que a natureza deve ser preservada sem ser tocada, mas que, ao contrário, de alguma forma podemos gerir os recursos naturais, obter benefício com isto, mas criando sinergias.
Existem muitas iniciativas vinculadas ao turismo onde as populações locais encontram mais valor no meio ambiente através dos benefícios que o turismo proporciona – controlado e regulamentado – do que em destruir a natureza para obter uma série de produtos ou serviços que possuem um valor muito baixo. Um caso é Galápagos, mas há muitos lugares do mundo onde podemos ver exemplos que estão potencializando isto.
A segunda e a terceira estratégias propostas por vocês é promover uma mudança sistemática. Ou seja, a integração da biodiversidade nos setores mais responsáveis pela deterioração da natureza, e transformar os sistemas econômicos em prol da natureza e a equidade. Nesse sentido, onde isto já aconteceu?
Por um lado, o tema de transformar os sistemas econômicos buscaria promover diferentes métricas de êxito econômico e em como poder transformar os nossos sistemas econômicos para que nossas métricas de êxito do país não sejam o crescimento ou o PIB, mas, ainda que sejam interessantes e devam continuar existindo, sejam mais complementadas com medidas que levem em conta a natureza e o bem-estar das pessoas.
Ou, em vez de subsidiar setores que destroem a natureza, subsidiar uma agricultura que seja climaticamente inteligente, tecnologias verdes, títulos para a recuperação de florestas... Há vinte anos, estas eram ideias que estavam em desenvolvimento, mas hoje temos exemplos por todos os lados, e funcionam.
E há muitos exemplos. Um deles está na Espanha, na Galiza, e é a reserva marinha Os Miñarzos. Foi gerida conjuntamente por pescadores, cientistas e pelo governo, após um vazamento de petróleo. Esta colaboração melhorou as populações de peixes, restaurou a biodiversidade marinha e aumentou os benefícios econômicos para a pesca em pequena escala.
Você pode explicar como transformar os sistemas de governança para que sejam inclusivos, responsáveis e adaptáveis, e mudar as perspectivas e os valores para reconhecer a interconexão entre os seres humanos e a natureza?
Existem muitos sistemas de governança que são inclusivos, participativos e que estão funcionando. Na Tanzânia, o planejamento participativo do uso da terra permite às comunidades locais equilibrar a conservação com as necessidades de desenvolvimento. Este enfoque inclusivo fomenta a gestão sustentável dos recursos, ao mesmo tempo em que capacita as populações rurais. Ou a proibição nacional de plásticos descartáveis em Ruanda, que reduziu a poluição plástica urbana em 90%. Estas políticas demonstram como regulamentações rigorosas podem mudar rapidamente as normas e os comportamentos sociais em prol da sustentabilidade.
Por outro lado, existe a estratégia que fala sobre os valores e as visões. As visões são para onde queremos ir, qual é a nossa meta como sociedade. E esse mundo que queremos se vê com base em valores. Há lugares que reacomodam suas cidades de forma que seja possível ira ao trabalho de bicicleta. E daí se obtém um benefício para a saúde e também um benefício para o meio ambiente. Outro caso concreto é o sistema educacional da Finlândia, que integra a conexão com a natureza em seus planos de estudo, ensinando aos estudantes o valor da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos.
Sem uma mudança de valores não é possível conseguir tudo?
Dizemos que tudo tem de acontecer: a mudança nos valores, nas práticas e nas instituições. Em muitos dos exemplos, as instituições começam a mudar, depois as práticas e depois os valores. Em outros, mudam as práticas, depois as instituições e depois os valores. E em outros, primeiro os valores, depois as instituições e depois as práticas. Nos casos que vimos, tem de tudo. Às vezes, as mudanças de valores vêm dadas pelos governos e tem vezes que acontece ao contrário.
Existem muitas forças, destacam, que bloqueiam esta mudança transformadora. Você poderia nos falar sobre elas?
Sem dúvida, existem muitos grupos de poder estabelecidos, transnacionais, em diferentes países, que têm rendas extraordinárias e claramente não as querem perder. Existem lobbys que bloqueiam novas tecnologias ou mudanças que possam ser mais reveladoras para a sociedade. Isto também acontece com a medicina, por exemplo: poderíamos ter uma medicina mais voltada à prevenção. Isto faz mais sentido do que ir acobertando problemas. Ou o sistema de saúde: a inércia do livre mercado vai levar a um ponto em que você terá que pagar por tudo. E conseguir fazer com que isto não aconteça depende de lutas, de valores, de movimentos sociais e de um sistema democrático e de governança que precisa dar sustentação.
Você afirma que, no melhor dos casos, menos acaba sendo mais...
De alguma forma, se para que as pessoas estejam melhor, em geral, você precisa perder 10% de sua riqueza, não gostará. Mas, paradoxalmente, perdendo 10% da sua riqueza você será ainda mais feliz do que antes. É aí que está esse aspecto dos valores, de como estamos tão envolvidos nesta corrida contra a vida a tal ponto que, de repente, a vida passou, morremos, e a única coisa que conseguimos ver quando olhamos para trás é o que acumulamos e o que produzimos e não percebemos que, às vezes, menos é mais.
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“Não se conseguiu mudar a curva de destruição da biodiversidade”. Entrevista com Lucas Garibaldi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU