11 Novembro 2024
"A crise climática também é mais grave do que nos atos passados. Mas não resta outro caminho: o mundo precisa entender a gravidade do problema e agir à altura, com ou sem ajuda norte-americana", escreve Bruno Toledo Hisamoto, especialista em Política Internacional no ClimaInfo, em artigo publicado por ClimaInfo, 11-11-2024
O ano era 2000. Os Estados Unidos se preparavam para ir às urnas para escolher o sucessor do então presidente Bill Clinton: os candidatos eram o vice-presidente Al Gore e o governador do Texas, George W. Bush. A disputa era parelha, talvez a mais apertada desde a eleição de 1960, quando John F. Kennedy venceu o então vice-presidente Richard Nixon por pouco.
Nos oito anos como vice-presidente, Gore não encontrou muitas oportunidades para se envolver ativamente nas políticas do governo Clinton, especialmente na seara doméstica. Na política externa, Gore teve mais sucesso, especialmente nas negociações em torno do futuro Protocolo de Quioto, definido em 1997. Nele, os Estados Unidos, juntamente com outras nações desenvolvidas, se comprometeram com metas de redução de emissões de gases de efeito estufa causadores das mudanças climáticas. O documento foi assinado por Clinton em 1999 e encaminhado ao Senado norte-americano para ratificação.
Durante a disputa presidencial, Gore destacou o compromisso com o Protocolo de Quioto como um exemplo da liderança internacional dos Estados Unidos e sua disposição em encabeçar os esforços globais para avançar rumo a fontes energéticas mais limpas. Não era essa a visão da maior parte do Senado, à época sob controle do Partido Republicano de Bush.
Para os republicanos, o tratado trazia impactos diretos à economia norte-americana, além de isentar países não-desenvolvidos que cresciam significativamente naquela época, como China e Índia. Essa visão era compartilhada pela bancada democrata no Senado, que torcia o nariz para a iniciativa de Gore no tema climático e temia que isso virasse um argumento contrário ao partido nas disputas eleitorais pelo Congresso naquele ano.
Bush, por sua vez, se comprometeu a abandonar o Protocolo de Quioto caso fosse eleito. Queridinho da indústria petroleira norte-americana, em boa parte sediada em seu estado, o Texas, o filho do ex-presidente George H. W. Bush tinha interesse político direto no tema, já que sua campanha foi financiada em boa parte por empresas e executivos do setor.
A votação fez jus ao que as pesquisas indicavam. Por míseros 537 votos de vantagem na Flórida, depois de semanas de impasse jurídico, Bush foi declarado vencedor no estado, garantindo os 270 votos necessários no Colégio Eleitoral para se eleger presidente dos Estados Unidos.
O resto é história. No ano seguinte, os Estados Unidos retiraram sua assinatura do Protocolo de Quioto. Sem a maior economia do planeta a bordo, o tratado perdeu em grande parte sua relevância prática e só entrou em vigor em 2005, quase uma década depois de sua negociação. Naquela altura, os compromissos definidos em 1997 estavam defasados e, para o enfrentamento efetivo do problema climático, o mundo precisaria de um novo instrumento político.
O ano era 2016. De novo, mais uma disputa presidencial nos Estados Unidos. De um lado, estava a ex-senadora, ex-secretária de Estado e ex-primeira-dama Hillary Clinton; do outro, o empresário e celebridade de TV Donald Trump. As pesquisas não indicavam uma corrida tão parelha como em 2000, pelo contrário – a vitória de Clinton parecia encaminhada, especialmente por conta das polêmicas em torno de seu rival. Para alguns, não havia uma disputa de fato; a presidência ficaria no colo dos democratas.
De novo, a questão climática estava no bolo de temas da corrida eleitoral. Enquanto Clinton defendia a ação climática e a continuidade das iniciativas do então presidente Barack Obama nesta agenda, Trump negava a existência do problema climático. Em um texto infame no falecido Twitter, o republicano acusou a ciência em torno da crise do clima de ser uma “farsa criada pela China” para atingir os interesses econômicos dos Estados Unidos.
Nos anos anteriores, sob a gestão Obama, o governo norte-americano abandonou o isolamento político dos tempos de Bush para retomar seu envolvimento ativo nas negociações sobre o clima. Mesmo com o fracasso na COP15 de Copenhague, em 2009, onde se esperava definir um tratado sucessor ao Protocolo de Quioto, a Casa Branca seguiu engajada nas discussões.
A Casa Branca exigia alguns pontos no novo acordo. Primeiro, ele não deveria trazer compromissos vinculantes aos Estados Unidos – ou seja, sem obrigações legais de mitigação. A justificativa era exatamente a experiência do Protocolo de Quioto: se tivesse compromissos formais de mitigação, o Senado norte-americano precisaria obrigatoriamente ratificar o novo acordo. De novo, a maioria dos senadores era do Partido Republicano, de oposição, com poucos senadores democratas favoráveis à ação climática.
Assim, os Estados Unidos acabaram forçando um novo formato de acordo para o resto do mundo, no qual os compromissos de mitigação seriam voluntários por parte dos países, e não obrigatórios. Ao mesmo tempo, os países desenvolvidos não poderiam ser os únicos com metas de redução de emissões de GEE; era crucial que os países em desenvolvimento, especialmente as economias emergentes (como China, Índia e Brasil), também assumissem esses compromissos.
A novela diplomática só foi concluída em 2015, um ano antes da eleição nos Estados Unidos, com a aprovação do Acordo de Paris na COP21. Finalmente, o mundo tinha um instrumento político para reduzir suas emissões de carbono e limitar o aquecimento médio do planeta neste século. A partir disso, a expectativa era de discutir apenas a implementação do Acordo nos anos seguintes.
Pois bem… um ano depois, o eleitorado norte-americano decidiu colocar mais tempero na história. Em um resultado surpreendente, Trump acabou eleito presidente. Meses após assumir a Casa Branca, Trump retirou os Estados Unidos do Acordo de Paris e rompeu todos os compromissos de apoio financeiro para a ação climática nos países em desenvolvimento. Ele expurgou a questão do clima de toda a comunicação governamental e enfraqueceu as agências científicas e técnicas que lidavam com o tema.
Sem os Estados Unidos, o resto do mundo teve que assumir a responsabilidade política de manter vivo o Acordo de Paris. Do ponto de vista político, o esforço foi bem-sucedido: mesmo sem a participação norte-americana, os países seguiram a negociação em torno da implementação do Acordo. Ainda assim, a ausência de Washington trouxe um obstáculo prático: mais uma vez, a maior economia do planeta se omitia diante do problema climático global, dificultando ações imediatas para reverter a trajetória crescente das emissões de carbono do planeta.
O ano era (já estamos em novembro, então o pretérito já pode ser aplicado) 2024. Novamente, temporada eleitoral nos Estados Unidos. Mais uma vez, uma corrida acirrada pelo comando da Casa Branca. Defenestrado pelo eleitorado norte-americano em 2020, o republicano Donald Trump tentava retornar à Presidência norte-americana mesmo depois de patrocinar uma tentativa de golpe de estado em janeiro de 2021. Do outro lado, um troca-troca democrata: primeiro, o presidente Joe Biden, vencedor em 2020, mas que desistiu de tentar a reeleição por conta da impopularidade e da desconfiança do eleitorado sobre sua idade avançada; depois, a vice-presidente Kamala Harris, que teve que construir uma campanha presidencial em menos de 100 dias até a votação.
Diferentemente de 2000 e 2016, a questão climática não ficou reservada a nichos do eleitorado. Em plena temporada eleitoral, desastres climáticos afligiram os Estados Unidos, especialmente os dois furacões que se abateram sobre o sudeste do país num intervalo de duas semanas, trouxeram para a primeira página os impactos do clima extremo. Nos anos anteriores, uma sucessão de ondas de calor, seca, tempestades e furacões deixaram evidentes aos norte-americanos que o clima em transformação é uma ameaça até mesmo para a maior economia do planeta.
Harris sustentou sua argumentação climática em torno dos sucessos políticos da gestão Biden. Pela primeira vez, o governo norte-americano conseguiu aprovar um pacote de medidas climáticas no Congresso, com investimentos bilionários em transição energética e incentivos para indústrias estratégicas, como de baterias e carros elétricos. De volta ao Acordo de Paris, os Estados Unidos também voltaram à diplomacia climática internacional, restabelecendo o diálogo com a China, um dos ingredientes cruciais para o sucesso das negociações do Acordo nos anos 2010.
Trump, por sua vez, nunca deixou de ser Trump. Negacionista até o último fio de seu cabelo tingido de amarelo, o republicano recorreu a mentiras absurdas e distorções patéticas para desmerecer a questão climática. Acusou turbinas eólicas de causarem câncer e outras doenças sem qualquer evidência, criticou os incentivos aos carros elétricos (a despeito de ter sido apoiado efusivamente por um dos magnatas do setor, Elon Musk), e prometeu desmontar todas as políticas climáticas da gestão Biden.
Aliados de Trump, como a turma da Heritage Foundation e seu infame Project 2025, defenderam um desmonte ainda mais radical. Agências governamentais importantes como a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA) seriam extintas ou reduzidas a quase nada. Subsídios aos combustíveis fósseis aumentariam exponencialmente, permitindo a exploração de novos estoques de petróleo, gás e carvão sem qualquer preocupação com os impactos climáticos. Na seara internacional, os Estados Unidos se alinhariam a outros parceiros comandados pela extrema-direita para sabotar as negociações climáticas internacionais.
Frente a essas alternativas, era de se esperar que o eleitorado norte-americano escolhesse a opção que reconhecia o problema climático e que estava comprometida em enfrentá-lo. Especialmente em estados afetados pelo clima extremo, como Flórida, Georgia e Carolina do Norte, era de se esperar que a opção do eleitorado seria a candidatura que oferecia a disposição em não apenas resolver os efeitos de eventos climáticos extremos, mas também tomar medidas para evitar que eles se tornem mais frequentes no futuro.
Mas, como uma criança mimada que só consegue pensar em seu próprio umbigo e é supersuscetível ao bullying dos coleguinhas, o eleitorado norte-americano decidiu pela alternativa que nega o problema climático, que promete acabar com qualquer capacidade do governo em enfrentar a questão e que, repetidas vezes, demonstrou desprezo por quem sofreu com os efeitos do clima extremo (Porto Rico que o lembre).
Donald Trump foi reeleito presidente dos Estados Unidos, pela primeira vez com a maioria dos votos totais dos eleitores norte-americanos. Mais uma vez, os Estados Unidos darão as costas à crise climática e ao esforço global para enfrentar o problema. Mais uma vez, a maior economia do planeta se fingirá de morta frente a um desafio que ela própria foi uma de suas principais promotoras.
O quarto ato desta história começa nesta semana, com a abertura da COP29 de Baku. O mundo de hoje é mais instável do que o de 2000 ou de 2016. A crise climática também é mais grave do que nos atos passados. Mas não resta outro caminho: o mundo precisa entender a gravidade do problema e agir à altura, com ou sem ajuda norte-americana. Pois caberá ao restante do planeta, mais uma vez, liderar uma luta na qual sua potência mais poderosa teima em se omitir.
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O spoiler climático em três atos. Artigo de Bruno Toledo Hisamoto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU