07 Novembro 2024
"Para tornar a liturgia menos unilateral e mais inclusiva, teria que se ouvir mais vozes. Jovens e idosos, mulheres e homens, e dar prioridade às vozes das pessoas que são discriminadas", escreve Annette Jantzen, teóloga e membro da Diocese de Aachen na Alemanha. A tradução é de Ir. Roseldis Kuhn, idp.
O que se pode ouvir de Deus na liturgia católica é extremamente limitado e pouco atrativo para muitas pessoas. São muito poucas as imagens que trazem Deus à palavra: Pai, Rei, Senhor, Pastor, Juiz, Criador – e quase não existe mais que isso no repertório. Quão estreitas e inadequadas estas imagens parecem ser torna-se ainda mais evidente quando são alteradas, quando a imagem do pai é transformada em imagem da mãe e o rei se torna rainha. As imagens femininas não são apenas incomuns, mas também parecem muito estreitas. Por um lado, a inversão das imagens torna claro o quanto Deus é impregnado no gênero masculino na linguagem litúrgica católica, isto, porque as imagens de Deus não são neutras e, com certeza, não são entendidas de forma neutra.
Nós vemos e consideramos Deus em gênero, e exclusivamente masculino. É claro que Deus não tem um gênero, mas as nossas imagens têm e, portanto, nossa linguagem não é neutra, consequentemente, repete e confirma, sempre de novo, conceitos masculinos de Deus.
Desta forma, apenas algumas facetas de Deus entram em cena, embora cada imagem de Deus seja sempre mais diferente do que semelhante a Deus, como disse o 4º Concílio de Latrão no século XIII: Deus é Pai, mas na maior parte - uma construção auxiliar, porque é claro que não se trata de quantidades, mas o nosso cérebro não consegue entender de outra forma - na maioria das vezes, Deus é totalmente diferente do Pai e de jeito nenhum concebido como imagem do Pai.
Portanto, quanto menos imagens de Deus houver numa liturgia, mais de Deus nos escapa, mais da grandeza e da beleza de Deus não se expressa. Quando as imagens são invertidas, torna-se também claro o quanto a imagem do pai é identificada com o próprio Deus, ao ponto de já não ser reconhecida como uma imagem. Então, Deus É Pai, Deus É Senhor, e é exatamente disto que a proibição bíblica das imagens nos quer proteger: uma imagem toma o lugar de Deus, uma imagem se torna um ídolo.
Tornar a linguagem da liturgia menos masculinizada, mais justa, mais bela, mais atraente, mais íntima e mais tocante significaria, portanto, muito simplesmente, utilizar mais imagens de Deus e para Deus. Cada imagem é apenas uma pequena peça de mosaico da beleza de Deus. Quanto menos imagens tivermos, mais falta sentimos de Deus, menor tornamos Deus.
A pobreza e a estreiteza da imagem absolutizada de Deus são pouco notadas porque há pouco na liturgia para abrir e escancarar. Um serviço religioso funciona completamente sem vozes femininas, uma celebração eucarística não precisa de mulheres, enquanto que não funciona sem vozes masculinas.
Para tornar a liturgia menos unilateral e mais inclusiva, teria que se ouvir mais vozes. Jovens e idosos, mulheres e homens, e dar prioridade às vozes das pessoas que são discriminadas.
A memória coletiva também traz pouca contradição; uma imagem unilateral de Deus também se enquadra bem no espaço coletivo da memória e não causa qualquer irritação, porque este espaço da memória também é unilateral e caracterizado de forma discriminatória dominada pelos homens: A comemoração dos santos, assim como vem inscrita no decorrer do ano eclesiástico, que determina e reproduz a memória, aplica-se predominantemente aos homens e quase exclusivamente celibatários.
O fato de isto não ser uma coincidência, mas o resultado e a salvaguarda de uma hierarquia de gênero, torna-se claro, o mais tardar, pelo facto de haver uma regra para a Ladainha de Todos os Santos na profissão perpétua de uma freira: Pelo menos 50 por cento dos santos masculinos devem ser invocados nesta ocasião. Não existe uma regra comparável para a profissão perpétua de um monge.
Tornar a liturgia menos unilateralmente masculina seria, portanto, muito simplesmente recordar os muitos santos e santas que não se encontram no calendário eclesiástico, as mulheres e os homens, com quem aprendemos crer e que nos precederam.
Não é só a comemoração dos santos, mas muito mais, a ordem das leituras que caracteriza o espaço da memória na liturgia católica. Nela, cerca de um terço do texto bíblico é tornado audível ao longo de três anos. A seleção é tudo menos neutra; não são apenas os excessos de violência difíceis de tolerar que são omitidos. Pelo contrário, mulheres importantes do Primeiro Testamento não aparecem, e as que aparecem não são contadas na íntegra, mas quando a Bíblia fala delas com aspectos positivos e críticos, apenas as passagens críticas são apresentadas. É o que acontece com Miriam, a primeira profetisa, cujo cântico de vitória é cortado da leitura da Vigília Pascal, enquanto o castigo, que ela recebe por sua crítica a Moisés, faz parte da ordem de leitura. Mesmo antes dela, mulheres importantes não aparecem ou aparecem inadequadamente: Nem o ato de Agar que se dirige a Deus com nome de Deus - a primeira e única vez que tal coisa é dita de um ser humano na Bíblia! - nem as ações corajosas das parteiras Shifra e Puá, que permitem que o poder do Faraó sobre os filhos de Israel se desvaneça e não dê em nada.
Das quatro mulheres da árvore genealógica de Jesus, conforme Mateus, apenas Rute foi incluída no lecionário dominical com uma pequena parte da sua história. De Ester e Judite, heroínas de Israel, só se fala da sua oração (no caso de Ester) e do seu ascetismo e beleza (Judite), mas, não das suas ações determinadas e bem concretas para salvar o seu povo.
A profetisa Hulda, que atesta a autenticidade do rolo com os Dez Mandamentos e conclui o cânon judaico da profecia primitiva, é cortada do texto do Segundo Livro dos Reis da ordem de leitura dos dias de semana, de tal modo que parece que esse testemunho foi dado pelo sacerdote Hilquias e seus colegas. Assim, não apenas esta mulher, mas todo o ministério da profecia bíblica, que é superior à realeza e ao sacerdócio, é cortado do texto e substituído pelo sacerdócio. É preciso ousar fazer isso primeiro.
Igualmente manipulador é o tratamento do “elogio das mulheres” do livro dos Provérbios, em que toda a sua energia e vigor, sua autoridade e poder da figura feminina são retiradas e apenas a sua devoção e seu sacrifício são selecionados para o encontro dominical.
No Novo Testamento, as coisas não perecem melhores. A cura da mulher encurvada nunca é assunto do Evangelho dominical, a pecadora arrependida, apenas no contexto do pecado sexual. Narrativas significativas como a cura da mulher que sofria de hemorragia ou o diálogo entre o Ressuscitado e Maria de Magdala, na manhã de Páscoa, são apenas opcionais; podem ser omitidas se a apresentação do Evangelho parecer demasiado longa para o celebrante.
As histórias das mulheres dos Atos dos Apóstolos foram incluídas nas leituras dos dias úteis do tempo pascal, enquanto as histórias masculinas são recitadas aos domingos, e mulheres, como a diácona Febe, são omitidas das listas de saudações das cartas.
Aqueles, cuja piedade pessoal se orienta pela ordem de leitura, não têm conhecimento de muitas histórias importantes de mulheres na Bíblia. O que acontece com as mulheres, também se passa com as imagens de Deus: As imagens femininas de Deus, especialmente na profecia bíblica, são predominantemente cortadas e omitidas. No entanto, tanto as histórias de mulheres como as imagens femininas de Deus na Bíblia devem ser realçadas e celebradas, porque estes textos foram escritos num ambiente decididamente patriarcal, e quando contam histórias tão inesperadas, eles contam algo especial. É nestas passagens que algo de novo vem surgindo, em termos teológicos: Estes são os lugares de santidade no texto. Traduzir, suavizar, reduzir, omitir, mutila o testemunho bíblico.
Dada a abundância de tudo que não é lido, é escandaloso e chocante que uma passagem como a da carta deuteropaulina aos Efésios “Mulheres, submetei-vos a vossos maridos como ao Senhor” tenha sido incluída no lecionário dominical. Deveria ser um requisito básico absoluto não ler, no serviço das celebrações religiosas, quaisquer textos abertamente misóginos, o cenário, porém, consegue fazer com que isso não pareça um requisito básico, mas uma censura extrema e injustificada.
Neste contexto, celebrar a liturgia de uma forma mais equitativa em termos de gênero significaria escolher de forma diferente, ler as histórias das mulheres em números mais apropriados e, é claro, na íntegra.
Se a abundância de imagens bíblicas de Deus encontrasse seu caminho para a liturgia, mesmo de forma rudimentar, então as imagens de Deus dos celebrantes poderiam tornar-se mais amplas, menos inequívocas, mais desafiadoras, mais interessantes e, e sobretudo, mais relevantes.
As dimensões mencionadas - quem fala, quem é lembrado, que histórias bíblicas são contadas e como se fala de Deus – estas dimensões estão interligadas. Por isso, não é necessário mudar tudo de uma vez, pois, uma mudança num lugar resulta resulta em mudança na estrutura geral. (É por isso que o sistema de informação é tão sofisticado, pelo menos na Europa Ocidental, quando a assunção de responsabilidade litúrgica é vista como uma infração, não é esclarecida no local, mas comunicada diretamente ao bispo ou mesmo ao Papa).
Terá consequências se mais mulheres santas forem lembradas, também mais pessoas não celibatárias, e se as leituras bíblicas forem ouvidas na liturgia com maior amplitude e abrangência. Significará uma mudança quando, as comunidades em celebração, falarem mais abertamente de Deus, com coragem e reconhecimento de que todas elas são apenas imagens humanas de Deus: “Deus, para nós como...”
Vale a pena, porque Deus é muito mais interessante do que as poucas imagens linguísticas que, em grande parte, não falam e a celebração de Deus pode ser muito mais do que um prato quente para o patriarcado.
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Desmasculinizar a Igreja. O desafio de feminizar a linguagem da liturgia. Artigo de Annette Jansen - Instituto Humanitas Unisinos - IHU