06 Novembro 2024
"A teologia não nasce de si mesma nem paira sobre si mesma; não é teoria de teoria. É inteligência da fé ou da salvação ou do Reinado de Deus. Enquanto tal, ela é um momento da vida/práxis do crente e da comunidade de fé (momento inteligente) e está constitutivamente referida à realidade teologal (inteligência de).Por mais irredutível que seja enquanto atividade intelectiva, é inseparável dos demais aspectos ou momentos da vida/práxis", escreve André Castro, graduado em Teologia, mestre em Ciências da Religião (UMESP), autor de Breve história da Teologia da Libertação protestante (2022) e que agora está publicando A luta que há nos deuses: da Teologia da Libertação à extrema direita evangélica (2024) pela Editora Machado; é editor e colunista da Revista Zelota.
Epistemologia é uma daquelas palavras que dão sono e medo aos estudantes do primeiro semestre em qualquer graduação de Humanas. Sempre citadas e quase nunca explicadas. Não por acaso, o debate sobre o fundamento do conhecimento talvez seja um dos mais complexos de explicar para os não iniciados, e não menos fundacional para quem quer começar a estudar uma ciência. Para a Teologia a coisa fica mais difícil ainda: onde fundamentar o conhecimento sobre Deus? Na revelação, diria o estudante do primeiro semestre.
Talvez a novidade da teologia da libertação tenha sido reportar que o acesso à revelação se dá na história e, naquele contexto mais específico, é produzido por um sujeito político-teológico. Ou seja, os signos da fé ganham significado na experiência de fé dos cristãos. E essa forma de produzir sentido religioso, dando razão de totalidade para a luta política, se validava na releitura bíblica. Os signos da fé, a tradição, eram reinterpretados a partir de uma experiência espiritual nova. Como dizia Pablo Richard, o que importa é a experiência espiritual e não o texto bíblico em si, já que é a partir da experiência espiritual que o texto bíblico ganha razão na vida do crente.[1]
O livro em questão quer debater exatamente isso. Os oito ensaios compõem, cada um a seu modo, uma leitura que o autor há muito tem feito sobre a epistemologia da teologia. Não é o livro de estreia do autor no cenário nacional; na realidade, o mesmo faz uma republicação de diversos artigos que anteriormente haviam sido escritos para revistas acadêmicas. A qualidade da obra, assim, reside na forma como organiza a própria reflexão que Francisco de Aquino tem feito ao longo dos anos; sem reduzir a extensa obra do autor, de certo modo revela um rumo teórico que o mesmo segue. É a segunda obra de uma nova coleção de textos da editora Paulus, que ganha o mesmo nome que o livro: Teologia em Debate: Sobre o estatuto epistemológico da teologia (2024). Dado o título, tomamos liberdade de também entrar no debate.
Dos oito textos, podemos dizer que existem três blocos: o primeiro debate epistemologias teológicas específicas, como o Concílio Vaticano II, a Teologia Política e um diálogo com Claude Geffré, cada um em um artigo; o segundo trata da TdL (Teologia da Libertação), com três artigos; e o terceiro tem um enfoque mais contemporâneo, envolvendo a Comissão Teológica Internacional e o Papa Francisco. Mesmo que o primeiro bloco tenha sua relevância, dado sua precisão teórica e densidade argumentativa, e, em certo sentido, alguns pontos sejam retomados posteriormente, são nos dois últimos blocos que nos deteremos.
Os três textos sobre a Teologia da Libertação (TdL) têm como núcleo o debate sobre o locus teológico, ou seja, o lugar onde a teologia deve encontrar sua fonte e, a partir dele, o sentido que a reflexão teológica deve assumir. Começa-se por uma apresentação mais geral do que o autor entende como as Questões fundamentais da Teologia da Libertação. Longe de repetir as já muito proscritas retrospectivas históricas, ele pretende apresentar a epistemologia que envolve a TdL, entendida tanto como movimento eclesial, um modo de “ser Igreja”, quanto como um momento declaradamente reflexivo e teórico. A TdL “seria tanto uma ‘práxis teologal’ quanto uma 'teoria teológica’, vividas e elaboradas a partir dos pobres e oprimidos e no horizonte de sua libertação.”[2] Uma formulação ambígua, segundo o próprio autor, mas que serve justamente para expor essa maneira particular de fazer teologia, que nasce na própria práxis e se torna racional na reflexão. Sendo assim, a régua e o compasso da feitura teológica estão lá onde a fé produz sentido para a vida. Nas palavras de Gutiérrez, citadas pelo autor brasileiro:
No ponto de partida de toda teologia encontra-se o ato de fé. Não, porém, como simples adesão intelectual à mensagem, e sim como acolhida vital do dom da Palavra escutada na comunidade eclesial, como encontro com o Senhor, como amor ao irmão. Trata-se da existência considerada em sua totalidade. Acolher a Palavra, fazê-la vida, gesto concreto, está no início de qualquer compreensão da fé.[3]
É nesse sentido que Aquino aponta a centralidade da práxis na TdL, já que é ela que orienta a teologia. A TdL estaria na realidade histórica que procura inteligir e na busca de mediações concretas da efetivação da libertação, e não no debate conceitual clássico na teologia.[4] Assim, lendo muito bem os autores que cita, ele resume de forma magistral:
A teologia não nasce de si mesma nem paira sobre si mesma; não é teoria de teoria. É inteligência da fé ou da salvação ou do Reinado de Deus. Enquanto tal, ela é um momento da vida/práxis do crente e da comunidade de fé (momento inteligente) e está constitutivamente referida à realidade teologal (inteligência de).Por mais irredutível que seja enquanto atividade intelectiva, é inseparável dos demais aspectos ou momentos da vida/práxis.[5]
A teologia é, então, a reflexão da fé, mas o que faz da teologia ser “da libertação” é o núcleo de referência dessa experiência de fé estar relacionado com a luta política que se aglutina na ideia de Libertação. É aí que entra o próximo artigo, Teologia e o Poder da Libertação. Este faz uma releitura bíblica, apontando o que seria referência na tradição que dá sentido a uma experiência de fé libertadora.
Nesse momento, o autor se posiciona mais como teólogo da libertação do que como comentador, mas logo retorna ao seu modo de comentador da TdL, ressaltando que, não importa o quão avançada, progressista ou revolucionária seja uma teologia, se ela não estiver ligada aos dinamismos do processo de libertação, não passa de um discurso ou teoria ineficaz.[6] Afinal, estaria aí a vitalidade da TdL, sua “ligação visceral” com a fé libertadora, vivida como processo de libertação. Se não fosse assim, argumenta ele, ela não teria sido objeto de investigação do Conselho de Segurança dos EUA, nem de perseguição pelos setores dominantes na igreja e na sociedade.[7]
O último artigo sobre TdL aprofunda um debate entre as formas de ler essa tradição teológica em Gustavo Gutiérrez e Clodovis Boff. Trata-se, no caso, de uma fé positiva ou dogmática, defendida pelo segundo, contra uma fé como ato ou vida, defendida pelo primeiro. A discussão não é secundária, já que aborda o próprio estatuto epistemológico da teologia e como a TdL traz uma novidade nesse ambiente como um novo modo de fazer teologia. Pelo menos, essa é a posição de Gutiérrez, do autor e a nossa. Assim, Clodovis Boff reduz a TdL a uma “teologia do político”, que comporia a teologia em sentido geral — “Em síntese, para Clodovis Boff, o ponto de partida da teologia ou sua ‘fonte primeira e decisiva’ só pode ser a ‘fé-palavra’, isto é, a ‘fé positiva ou dogmática’ ou a ‘fides quae’”[8] —, enquanto para Gutiérrez o ponto de partida da teologia deve ser a vivência da fé cristã. Considera essa vivência, ou espiritualidade, como um “primeiro ato”, essencial para se alcançar um “segundo ato”, que é a reflexão teológica propriamente dita. É a prática concreta que possibilita uma abordagem autêntica sobre Deus, onde a vida cristã se torna a base para qualquer elaboração teológica.[9] O valor da teologia, seu estatuto epistemológico, está na vida cristã do povo pobre latino-americano, não em uma fonte primeira abstrata. E é essa visão da TdL que nosso autor defende.
Após esse arco de textos, temos dois artigos que seriam contemporâneos. Até aqui seguimos em uma revisão bibliográfica que poderia ser localizada nos anos 80, o que não é um passadismo do nosso autor, mas uma demonstração do contexto histórico da própria TdL. Iniciando a última parte do livro, Sobre o documento da Comissão Teológica Internacional “Teologia hoje: Perspectivas, princípios e critérios”, lendo esse documento produzido em 2012, Aquino critica o fato de que o documento estaria em sintonia com as preocupações e orientações teológico-pastorais de Bento XVI, e, assim, favorecia mais a identidade teológica interna à igreja católica. Para ele, citando Francisco como referência, seria mais relevante apostar em uma igreja mobilizada por uma teologia em saída para as periferias do mundo. A descrição de como exatamente isso está em Francisco é o conteúdo do artigo seguinte, sobre Francisco e o Quefazer teológico.
A estrutura do livro sugere um caminho histórico que começa nos debates do Vaticano II, passando pela Teologia política europeia e também pela virada hermenêutica, culminando na TdL enquanto grande referência de um novo modo de fazer teologia. Os últimos dois artigos são mais atuais, e não parece ser aleatório que o último seja sobre Francisco. Na realidade, mesmo em artigos sobre a TdL, o papa é colocado como um momento de retomada desse movimento: “A eleição do papa Francisco em 2013 e seu projeto de ‘uma Igreja pobre para os pobres’, de alguma forma, retoma, reatualiza e projeta para o conjunto da Igreja as intuições fundamentais que estão na base do movimento teológico-pastoral conhecido como TdL”.[10] Mas isso não é uma característica particular de Aquino.
Como se sabe, desde os anos 90 estamos debaixo de um céu sem estrelas. Como diagnosticado por Elsa Tamez, nos anos 80, mesmo na falta de pão, trabalho e paz, havia esperança inspirada pela imensidão estrelada, um convite para sonhar com um Deus libertador. Contudo, a globalização dos anos 90 parece ter devastado essas esperanças.[11] Os anos 2000 foram recheados de revisões e tentativas de retomada da força dos movimentos de base.[12] As eleições do projeto democrático popular à presidência pareciam ser uma vitória, ao mesmo tempo em que esse mesmo projeto se tornou uma gestão da vida social em frangalhos. Muita produção teórica, mas quase nenhuma relevância social. No deserto do real, a chegada de Francisco parece ter enchido de ar fresco os velhos pulmões liberacionistas. São incontáveis os teólogos da libertação que viram no papa latino-americano uma renovação. Até o renomado sociólogo Michael Löwy vê no sumo sacerdote uma esperança face ao crescimento evangélico que assola a América Latina, indissociável da nova onda de extrema direita que parece engolir a todos. Se, quando fala da TdL, Aquino fala da experiência espiritual do povo enquanto fonte da reflexão teológica, ao se aproximar do nosso tempo, a referência passa a ser o magistério da igreja sob a autoridade de Francisco.
Lá nos meados dos anos 80, após e em reação à publicação das famosas Instruções sobre alguns aspectos da “Teologia da Libertação” (1984), Pablo Richard escreve um texto chamado Para entender a Teologia da Libertação (1984).[13] O argumento é bem simples. A Teologia da Libertação nasce de uma experiência espiritual do povo latino-americano. Ele aponta três níveis: a experiência espiritual do povo, a teologia orgânica das Comunidades de Base e a teologia profissional. Nas suas palavras, é a primeira que informa o sentido da teologia, a segunda que dá certa organização comum a essa experiência na leitura do texto bíblico, e o papel do teólogo é apenas dar conteúdo teórico a essa experiência espiritual. Assim, quase ironicamente, sem citar nenhuma palavra das instruções proscritas pelo Vaticano, Richard demonstrava que aquelas densas argumentações de Ratzinger em sua crítica teológica à TdL não significavam nada, já que aqueles argumentos se direcionavam à mera aparência, à formulação teológica, e não à essência do movimento, que era a experiência de fé dos pobres latino-americanos daquele momento.
As intuições de Richard parecem se assimilar significativamente ao que Aquino aprendeu com Gutiérrez e Ellacuría. A diferença é que já não vivemos mais naquela circunstância histórica que dava sentido à experiência de fé dos pobres enquanto luta de libertação. Em um momento em que os pentecostais seguem sendo o grupo religioso que mais cresce e o catolicismo é o doador universal das conversões, o que resta de crescimento no catolicismo está nas parcelas “pentecostalizadas”[14] deste. Aquela fé, ato primeiro, parece não ter mais sentido, restando somente o ato segundo, mas já sem vitalidade. Aí sim o magistério se torna relevante. A sutil ironia de Richard volta-se agora contra nós, como se as coisas tivessem sido invertidas. Mais um dos curto-circuitos que dão forma a nossos dias: temos o papa, mas não temos o povo.
[1] RICHARD, Pablo. “Para entender la teología de la liberacíon”. In: BOFF, L. Teología de la liberacíon: documentos sobre una polémica. San José: DEI, 1985.
[2] AQUINO JÚNIOR, Francisco de. Teologia em debate: sobre o estatuto epistemológico da teologia. São Paulo: Editora Paulus, p. 81.
[3] GUTIÉRREZ, Gustavo. A verdade vos libertará: confrontos. São Paulo: Loyola, 2000, p. 20. Apud. Ibid. p. 84.
[4] AQUINO JÚNIOR, Francisco de. Ibid. p. 91.
[5] Ibid. p. 102.
[6] Ibid. p. 118.
[7] Ibid. p. 119.
[8] Ibid. p. 129.
[9] Ibid. p. 132.
[10] Ibid. p. 77-8.
[11] TAMEZ, Elsa. Bajo un cielo sin estrellas: lecturas y meditaciones bíblicas. San José: DEI, 2001.
[12] Não foram poucos os diagnósticos que apontavam o ocaso da TdL enquanto resultado da sua “defesa de um sujeito histórico particular”, e em reação a esse erro surgiram mil e uma abordagens que tentaram resolver esse problema.
[13] Texto originalmente publicado em Teología de la liberación: documentos sobre una polémica (1984), uma coleção organizada pelo Departamento Ecumenico de Investigações.
[14] Estamos nos referenciando à pesquisa feita por Isabella Tritone Medeiros em Aqui como em Pentecostes: Considerações sobre a nova matriz do cristianismo no Brasil. In DUARTE, J. M; CASTRO, A; ROGER, J. Formação do Brasil avivado (no prelo).
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O curto-circuito da Teologia da Libertação hoje: Resenha do Teologia em debate de Francisco de Aquino Júnior. Artigo de André Castro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU