04 Novembro 2024
“Penso que deveríamos refletir sobre a frase “não temos medo”. Por trás dessas três palavras é preciso haver um trabalho coletivo muito forte, que é o que permite às organizações seguir adiante mesmo quando tudo está contra e quando as maiorias se rendem aos poderosos”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 01-11-2024. A tradução é do Cepat.
Escutamos a frase há anos nos comunicados do EZLN e nas palavras das mulheres zapatistas. Agora, aparece em um vídeo do Xun Sero em homenagem ao Pe. Marcelo Pérez Pérez. A guerra contra os povos e a indiferença cúmplice dos poderes é o contexto em que se pronuncia esta afirmação de dignidade coletiva.
Em fevereiro de 2013, em um dos comunicados da série Eles e Nós é possível ler: “Estamos muito dispostos a tudo e não temos medo”. Na convocação para o primeiro Encontro Internacional de Mulheres que Lutam, em dezembro de 2017, a questão do medo aparece em lugar de destaque: “Mas de qualquer forma não temos medo ou, então, temos, mas o controlamos e não nos rendemos, e não nos vendemos e não fraquejamos”.
Em muitas outras ocasiões, o EZLN abordou esta questão, destacando inclusive que além do número de pessoas que resistem e não desistem, não ter medo se tornou uma senha de identidade do movimento. Solitariamente, o Pe. Marcelo repetiu o conceito, acrescentando: “Não temos medo, nunca mais”. Não tenho clareza se a sua pregação tem algum eco na Diocese de San Cristóbal de las Casas, mas pelo que parece uma parte de seus fiéis seguia essa orientação, como foi possível verificar nos dias seguintes ao seu assassinato.
Nas tradições revolucionárias, o tema do medo apareceu em raras ocasiões. Lembro-me de algumas frases de Che Guevara e pouco mais. Talvez pelo reconhecimento de que o medo não cabia em organizações que se consideravam de vanguarda e muito provavelmente porque a cultura patriarcal dominante não estaria disposta a aceitar o medo como algo natural nos coletivos humanos de baixo, perseguidos e assediados pelos poderosos. Gostaria de abordar algumas questões a partir da prática dos movimentos rebeldes.
A primeira é que a afirmação “não temos medo” é plural, coletiva, não individual. Fazer parte de povos e organizações revolucionárias permite trabalhar os medos a partir de outro lugar. Supõe reconhecer o medo sem negá-lo, trabalhá-lo para limitá-lo ou mantê-lo sob controle, não como na psicanálise, mas como nas práticas comunitárias que passam pela escuta dos idosos, o olhar para dentro e para o entorno. O medo na cidade não é o mesmo que nas montanhas e florestas, porque o diálogo com a vida nos coloca em outro lugar.
A segunda está relacionada à vanguarda. Não me lembro que na militância tenhamos debatido os medos em reuniões, antes ou depois de alguma ação, embora evidentemente os medos nos atravessavam. Meus medos estavam na tortura, se eu seria capaz de resisti-la. Contudo, algo nos impedia de reconhecê-lo e de falar a seu respeito, e acredito que seja pelo fato de acreditarmos que éramos superiores, “homens novos”. Já disse Stalin na homenagem a Lenin: “Nós, comunistas, somos homens de um temperamento especial. Somos feitos de uma trama especial” (Por motivo da morte de Lenin, Obras escolhidas, 1953).
Ao contrário, aqueles que integram o EZLN sempre me pareceram pessoas comuns, mas bem trabalhadas, formadas pela organização e pela história dos povos, com tal profundidade que são capazes de dedicar suas melhores energias à construção coletiva de um mundo novo. Nunca senti que se considerassem “especiais”, nem superiores, mas, muito pelo contrário, como parte de povos e comunidades que trabalham com simplicidade e paciência com os seus semelhantes. Falam pouco e fazem muito.
A terceira é que dizer “não temos medo” faz parte da autoafirmação coletiva, da determinação e da firmeza de ser o que somos, aceitando todas as consequências. Não se trata de um desafio aos poderosos, aos exércitos e aos maus governos, mas a consequência de um trabalho interno coletivo muito consistente, que nos permite garantir o não ter medo a partir da convicção e da confiança coletivas.
O fato de não se ter medo é a força interior e comunitária que permite enfrentar as tormentas, sobretudo as violências de cima, mantendo a calma e a orientação decidida. São em situações difíceis como as atuais que a organização e a firmeza no timão são mais necessárias. Para isso, é indispensável superar o medo.
A história dos processos revolucionários está repleta de programas e manifestos brilhantes que se tornam letra morta quando as tormentas se intensificam, porque em momentos assim são adotados os caminhos mais cômodos, não os que tinham sido decididos previamente. A crise da social-democracia europeia, quando eclodiu a guerra em 1914, é um bom exemplo de como o medo de perder o que foi acumulado gera desvios que levam a se afastar do caminho assumido.
Penso que deveríamos refletir sobre a frase “não temos medo”. Por trás dessas três palavras é preciso haver um trabalho coletivo muito forte, que é o que permite às organizações seguir adiante mesmo quando tudo está contra e quando as maiorias se rendem aos poderosos.
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Não temos medo. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU