21 Setembro 2024
“Uma vez desaparecida a intenção de integrar as classes perigosas, ou de “comprá-las”, segundo Immanuel Wallerstein, há um retorno da periculosidade. Paralelamente, cresce a desigualdade e o 1% mais rico não confia mais na polícia estatal para proteger os seus interesses”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 20-09-2024. A tradução é do Cepat.
O “monopólio da violência legítima” é para Max Weber a síntese do Estado moderno, uma definição aceita e raramente questionada. Penso que desde que o Estado foi privatizado pelo grande capital não é mais assim. Um bom exemplo é a proliferação de policiamento privado em todo o mundo, que não é seriamente regulamentado e expande suas áreas de intervenção.
Existe um mercado global de 248 bilhões de dólares para serviços de segurança privada que “está transformando a aplicação da lei em quase todas as partes” (Asia Times, 11/09/24). Segundo o Asia Times, na maioria dos países, a polícia privada supera a polícia estatal. Nos Estados Unidos, a proporção é de três para dois.
Na África do Sul, onde existem quase 3 milhões de agentes de segurança privada registrados, a proporção é de quatro para um. No Brasil, é de cinco para um, e é muito provável que na maioria dos países os dados estejam incompletos.
Um relatório da Prensa Comunitaria, de 2019, afirma que “as agências de segurança privadas são o ramo comercial que mais cresceu nas últimas décadas e o negócio segue em expansão”. No México, atuam cerca de 6.000 empresas de segurança, com 500.000 empregados, aos quais deve se somar o setor administrativo e de apoio. “Geram o equivalente a 1,4% do produto interno bruto (PIB) nacional”, além de existir 3.500 definidas como “irregulares”.
Se antes protegiam edifícios e pessoas influentes, agora, patrulham bairros e intervêm em crimes como o roubo de veículos. O problema central é que as empresas de segurança pública operam sob contrato e “não possuem o mesmo nível de regulamentação, supervisão e prestação de contas”, observa o Asia Times.
“A América Latina tem mais de 16.000 empresas militares privadas que empregam mais de 2 milhões de pessoas, muitas delas superam em número as forças policiais em mercados pouco regulamentados. A sua rápida expansão deu origem a problemas graves, como a infiltração criminosa em empresas militares privadas no México e em El Salvador e denúncias de execuções extrajudiciais na Guatemala”, aponta o Asia Times.
Destaco três aspectos nesta breve análise.
Em primeiro lugar, o policiamento privado surge com o neoliberalismo e a desregulamentação dos estados, com o fim dos estados de bem-estar que buscavam a conciliação de classes. Uma vez desaparecida a intenção de integrar as classes perigosas, ou de “comprá-las”, segundo Immanuel Wallerstein, há um retorno da periculosidade. Paralelamente, cresce a desigualdade e o 1% mais rico não confia mais na polícia estatal para proteger os seus interesses.
O aspecto central, a meu ver, é o fim da cooptação/integração de classes perigosas, em um processo que começa nos anos 1970 e se completa com o Consenso de Washington, em 1989, que coincide com a implosão da União Soviética. Deste ponto de vista, o policiamento privado tem o duplo papel de proteger os mais ricos e controlar os mais pobres, complementando-se com a polícia estatal.
Em segundo lugar, o policiamento privado está fora de controle e de qualquer prestação de contas. Muitas vezes, participa da repressão de manifestações e ocupações, como aconteceu recentemente nos Estados Unidos com o movimento pela Palestina.
Se a polícia estatal se degradou com a corrupção e a criminalidade, é fácil imaginar que a privada é um terreno fértil para as piores práticas. Mais ainda, há casos em que policiais públicos expulsos de suas forças são admitidos no setor privado sem o menor problema.
Não surpreende que muitas forças policiais privadas recrutem os seus membros entre policiais estatais afastados de seus cargos por corrupção e crime. Empresas militares privadas, como a estadunidense Blackwater e a russa Wagner, recrutam os seus combatentes entre prisioneiros comuns, sem importar a gravidade do crime cometido.
A terceira questão é nos perguntar onde fica o Estado, uma vez privatizada a violência “legítima”, com a evidência de que o Estado se tornou um apêndice da classe dominante e do capital. Eu me pergunto: o que realmente se busca quando se almeja ocupar alguma posição secundária dentro do aparelho estatal (como deputado, senador ou ministro), sem tocar na violência privatizada?
Estados inteiros como o Rio de Janeiro, no Brasil, são exemplos do tremendo poder da violência privada/privatizada que sustenta desde os negócios ilegais e obscuros até as muito legítimas autoridades eleitas, como prefeitos e governadores. A experiência nos diz que desmantelar estas redes de poderes irregulares é quase impossível por parte das instituições.
Por esta razão, os movimentos dos povos indígenas e negros mais conscientes decidiram defender os territórios com suas autodefesas comunitárias.
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A privatização do Estado. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU