24 Outubro 2024
"Aos 75 anos recém-completos e em seu 23º longa, evidenciamos o surgimento deste novo Pedro Almodóvar. Um cineasta que, sim, continua contando histórias emocionantes de mulheres que se apoiam umas nas outras, mas que dá preferência à sobriedade de vestuários, cenários e atuações. E, principalmente, que constrói personagens cada vez menos verborrágicas, mas com muito mais a dizer", escreve Bruna de Lara, jornalista, em artigo publicado por Outras Palavras, 23-10-2024.
Emoções escandalosas, cenários kitsch e cores vibrantes. Essas são três marcas de Pedro Almodóvar que você não encontrará em O Quarto ao Lado, primeiro longa-metragem do diretor em inglês. O filme, que entra em cartaz dia 24 de outubro, segue a tendência de contenção estética e narrativa adotada pelo diretor nos últimos dez anos. Sua única qualidade berrante se verifica em um aspecto praticamente inédito na filmografia do espanhol: os diálogos sobre política.
Protagonizado por Tilda Swinton e Julianne Moore, O Quarto ao Lado se baseia no livro O que você está enfrentando, da americana Sigrid Nunez, e narra a história de duas amigas que se reencontram quando uma delas (Martha, interpretada por Swinton) enfrenta um câncer brutal. Decidida a fazer uma eutanásia, ela pede a Ingrid (Moore) que lhe faça companhia em uma bela casa de campo até que a morte se concretize.
Fossem as personagens espanholas, seria um pedido difícil. Mas, vivendo as duas nos Estados Unidos, onde a eutanásia ainda é crime, ganha um quê de perigoso. E é dessa criminalização – uma das razões para o filme se passar em Nova York, e não na costumeira Madrid almodovariana, onde a eutanásia é legalizada – que advém a primeira camada política da obra.
Para Martha, garantir a si mesma uma morte digna significa acionar contatos que possam comprar ilegalmente o medicamento de que ela precisa na dark web. Um movimento que, ela conta à amiga, a faz sentir como uma criminosa. Já para Ingrid, significa estar sempre presente, mas sem deixar rastros de seu apoio, já que qualquer evidência de que sabia das intenções de Martha pode lhe render anos na prisão.
A questão política já é evidente na obra de Nunez: todos os segredos e o medo da punição desapareceriam se a eutanásia fosse legalizada. Mas Almodóvar leva o absurdo da situação ainda mais longe ao transformar a morte de Martha, de fato, em um caso de polícia. Em um interrogatório inexistente no livro, Ingrid é interpelada por um policial de intenções questionáveis, um fanático religioso que a provoca até extrair dela uma fala explícita sobre o direito a uma morte digna.
A defesa desse direito, junto à emocionante história de cumplicidade entre essas duas mulheres, é a essência de O Quarto ao Lado. A rigor, a fala categórica de Ingrid não era necessária para que a mensagem chegasse ao público. Mas o Pedro Almodóvar que emerge em 2024 sabe que, quando se trata de direitos e política, não importa quão evidentes alguns pontos sejam. Eles ainda precisam ser verbalizados.
É um Almodóvar profundamente diferente daquele surgido em 1980, identificado com o movimento punk e reconhecido como parte da Movida Espanhola – corrente marcada pela experimentação técnico-estética e por seus tons hedonísticos e, à primeira vista, apolíticos. Eufóricos com a morte do ditador Francisco Franco, após mais de 30 anos de regime (1939-1975), os jovens identificados com a contracultura acreditavam que a melhor forma de lidar com o passado recente era não fazendo menção a ele.
Em Conversas com Almodóvar, publicado originalmente em 2000 na França, o cineasta reforçou ao crítico Frédéric Strauss que seus filmes não reconheciam a existência de Franco. “É um pouco a minha vingança contra o franquismo: quero que dele não permaneça nem a recordação”, afirmou.
Ao assumir essa postura, o diretor se afastava propositalmente do modelo hegemônico de cinema que surgia na Espanha pós-ditadura: o do auteur diplomado e neorrealista que, após anos de luta contra a censura do Estado e da Igreja, se dedicava a filmes políticos, focados no lado perdedor da Guerra Civil (1936-1939), até então sem voz, e nas agruras do país sob Franco.
Um tipo de cineasta que tinha aversão ao cinema de gênero, como as comédias e os melodramas de Almodóvar, um autodidata da classe trabalhadora que ganhou o mundo, mas foi sempre considerado um artista menor em seu próprio país.
Embora nem a ditadura, nem a Guerra Civil fossem temas de seus filmes, um olhar atento, como o da pesquisadora Ana María Sanchez-Arce, revela que Almodóvar sempre produziu obras inerentemente políticas, preocupadas em evidenciar as diversas formas de hipocrisia da sociedade espanhola e as consequências do regime franquista.
Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão (1980), seu longa de estreia, narra a jornada de vingança de Pepi (Carmen Maura), jovem estuprada por um policial que descobre vasos de maconha em seu apartamento.
Em Que Fiz Eu Para Merecer Isto? (1984), também estrelado por Maura, Almodóvar retrata as dificuldades enfrentadas pela classe média baixa que deixou os povoados rurais da Espanha para procurar melhores condições em uma Madri inchada, incapaz de cumprir as promessas de progresso da democracia.
Esse é um tema recorrente em sua obra, assim como o dos policiais corruptos e cruéis. Muito antes do investigador que destratou Ingrid em O Quarto ao Lado, Almodóvar nos apresentou à dupla de policiais de A Lei do Desejo (1986): um jovem mais preocupado em fazer sua primeira prisão do que com descobrir a verdade e um agente sênior que, durante uma inspeção ilegal, cheira uma carreira de cocaína que encontra na casa do protagonista.
Em Carne Trêmula (1997), nos deparamos com um policial disposto a atirar em outro agente, que vinha tendo um caso com sua esposa, e a prender um inocente pelo crime. O longa é um marco na carreira de Almodóvar. Nas cenas iniciais, pela primeira vez em 17 anos de carreira, ele retrata o período da ditadura.
A ponto de dar à luz, a personagem Isabel – interpretada por Penélope Cruz, em sua primeira colaboração com o diretor – é obrigada a sair durante o toque de recolher imposto pelo governo, que acaba de declarar um Estado de exceção, e a parir em um ônibus. O regime franquista ganha a tela por poucos minutos, mas neles, Almodóvar faz questão de imprimir uma boa dose de realidade. A voz que ouvimos decretar o Estado de exceção no filme é a mesma que os espanhóis escutaram no rádio em 1969.
Ainda assim, não há um único diálogo sobre a ditadura. Mais de duas décadas teriam de passar antes que os anos mais sombrios da história espanhola chegassem aos lábios de suas personagens. Somente em 2021, assustado com o avanço da extrema direita no mundo e ciente de que a história que os participantes da Movida preferiam esquecer ameaçava se repetir, Almodóvar lançou seu primeiro filme explicitamente político: Mães Paralelas.
Estrelado por Cruz, o longa se divide em duas tramas. A primeira, a relação entre a protagonista Janis e Ana (Milena Smit), uma mulher e uma adolescente que dão à luz no mesmo quarto de hospital. A segunda, o esforço de Janis para uma equipe de antropólogos escavar o povoado em que vive sua família, onde vários homens foram sequestrados durante a Guerra Civil e enterrados em uma fossa comum.
É uma mistura do clássico Almodóvar, apaixonado por melodramas e histórias de maternidade, com o novo diretor e roteirista que vem se apresentando nos últimos anos, menos berrante, mas com uma vontade de marcar posição. Tanto que, pela primeira vez, uma personagem sua fala sobre o horror vivido na Espanha e assume um posicionamento político.
A fala se dá quando Ana, sem entender os esforços de Janis, lhe diz que o passado só serve para abrir feridas (soa familiar?). Indignada, a personagem de Cruz responde que não é possível deixar o passado para trás quando mais de 100 mil famílias foram impedidas de dar um enterro digno às pessoas que amam. A jovem, Janis arremata, precisa entender em que país mora – um recado que poderia muito bem ser direcionado ao Almodóvar dos anos 1980 e 1990.
As personagens de Almodóvar, sempre tão verborrágicas, nunca haviam se posicionado de forma tão aberta. Mas, ao que parece, seus dias de silêncio acabaram. Em O Quarto ao Lado, há uma outra camada política que chega aos diálogos, além da discussão sobre a eutanásia: a emergência climática.
Damian (John Turturro), um estudioso do tema e amigo de Ingrid, escreve e dá palestras em que defende, basicamente, que já não há esperança para a humanidade. Em um almoço com Ingrid, ele explica sua conclusão. Ano após ano, os alertas da ciência sobre a emergência climática continuam sendo ignorados, e as ações destrutivas da humanidade só fazem aumentar. Não bastasse, o neoliberalismo e a extrema direita, chamados de combinação explosiva para o planeta, estão conquistando cada vez mais espaço no cenário global. Conversando sobre a situação de Martha, Damian afirma ainda que a eutanásia será sim legalizada – quando o sistema de saúde inevitavelmente entrar em colapso e não puder atender todos os doentes.
São falas de tom alarmado, quase panfletário, ainda mais contundentes e didáticas que a repreensão de Janis em Mães Paralelas. Falas que, embora existam no livro de Sigrid Nunez, poderiam ter sido retiradas do filme se o diretor assim o desejasse. Almodóvar, afinal, nunca se preocupou em ser fiel às poucas obras que adaptou.
Não é por lealdade ao material original, portanto, que essas falas ganham voz em O Quarto ao Lado. É porque, como Damian, Almodóvar parece entender agora que, quando o sutil não é o bastante – quando nem a ciência e a história são suficientes – as coisas precisam ser ditas da forma mais inequívoca possível.
“A questão das mudanças climáticas não é uma brincadeira. Não sei de quantas provas precisamos para termos certeza de que é real”, cravou o diretor ao apresentar O Quarto ao Lado no Festival de Veneza em setembro – onde, a propósito, abocanhou o maior troféu da premiação, um feito histórico para o cinema espanhol. “Temos que parar as manifestações negacionistas, porque estamos em perigo”, ele reforçou, após condenar a postura da extrema direita em relação aos imigrantes.
Antes de chegar à boca das personagens e do diretor, essa nova maneira de ler o mundo já podia ser observada na contenção estética e narrativa que Almodóvar vem adotando desde 2016. Conhecido pelos diálogos rápidos de suas comédias e pelas emoções abundantes de seus melodramas, ele estreou naquele ano um drama seco sobre uma mulher que perde contato com a filha alguns anos após a morte do marido – Julieta, longa inspirado em três contos da escritora canadense Alice Munro, falecida este ano.
“Não queria lágrimas”, ele contou ao El País ter dito às atrizes Adriana Ugarte e Emma Suárez, que interpretam a protagonista em diferentes fases da vida. Tampouco vemos lágrimas em Dor e Glória (2019), Mães Paralelas ou O Quarto ao Lado. Em uma entrevista recente à Vogue Espanha, Almodóvar explicou a nova contenção: “Eu amo o melodrama, mas nesse momento, na minha idade e tendo feito 22 filmes, era essencial para mim ter esse controle. E, também, não cair em sentimentalismos”.
Assim, vemos desaparecer os elementos kitsch que marcavam sua estética desde os anos 1980 e desvanecerem as cores vibrantes presentes em seus filmes desde Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988). Desde Julieta, o vermelho, o verde, o azul e o amarelo seguem sendo cores predominantes na cenografia e no vestuário, mas em tons muito mais sóbrios.
Mas é o pôster de O Quarto ao Lado que mostra a extensão da mudança pretendida por Almodóvar. Nele, o diretor abandona não só a paleta supersaturada, como suas quatro cores típicas, para deixar reinar um bege absoluto, muito próximo da cor da pele das protagonistas. É como se o diretor anunciasse de cara que, nesta obra, se despe da estética que o consagrou para dar absoluto destaque à emoção das atrizes que encarnam a história que deseja contar.
No longa em si, as quatro cores aparecem de forma discreta. Estão nas roupas, nos sofás da casa de campo e, principalmente, nas cadeiras da varanda. Mas seus tons são tão escuros que em quase nada lembram a famosa paleta almodovariana. A cor mais memorável deste novo filme é o verde da vegetação abundante que cerca a casa escolhida por Martha para sua eutanásia – e não é por acaso.
Ao longo de sua carreira, o diretor explicou diversas vezes seu uso de cores supersaturadas. Almodóvar queria ver em seus filmes os tons technicolor que vira nos filmes de sua infância e adolescência, cores berrantes que se opunham à austeridade do povoado em que cresceu.
Mas, como o diretor apontou em seu discurso em Veneza, Martha é uma mulher agonizante em um mundo agonizante. Nesta obra, ele não está mais se opondo mais à aridez de sua infância. Está, em grande medida, fazendo justamente o contrário, ainda que em uso de seus signos estéticos: reforçando a severidade do mundo, um mundo em franca decadência. O verde das árvores representa o refúgio das amigas e o oásis de um planeta em que a floresta queima.
A contenção estética e narrativa do diretor coincide com sua decisão de abordar temas políticos de forma cada vez mais gritante, pois elas se complementam perfeitamente. Não são mais as contradições pós-Franco o foco do cineasta – o fim da ditadura, mas a permanência de forças policiais fascistas; o otimismo com a liberdade, mas a violência duradoura e hipócrita contra a mulher; a recuperação e a conquista de novos direitos, mas os impedimentos econômicos para vivê-los plenamente.
Almodóvar retrata agora um mundo em colapso, em que não é possível fingir que o passado fica no passado e em que o futuro promete ser ainda mais desastroso. Como Ingrid, porém, ele é partidário da ideia de que não se pode dizer às pessoas para não terem esperança. É isso que diz a personagem em resposta ao pessimismo de Damian, contrapondo, de forma bastante ingênua, o desespero causado pelo iminente apocalipse climático à calma de sua amiga enquanto a morte se aproxima.
O Quarto ao Lado poderia ser um filme lúgubre. Um drama pesado e repleto de lágrimas sobre uma mulher à beira da morte e a amiga que a vê morrer. Em vez disso, produziu um longa marcado pela leveza, que despertou risadas das centenas de espectadores que o viram durante o Festival do Rio, mesmo nos momentos mais dolorosos. Um filme que emocionou pelo carinho genuíno entre suas protagonistas.
Vale pontuar que é justamente quando Martha se prepara para sua eutanásia – o momento em que finalmente se livrará da agonia da doença e da do mundo ao seu redor – que vemos pela única vez cores vibrantes ao estilo tradicional de Almodóvar. Um amarelo alegre na roupa que veste a personagem de Swinton e o batom vermelho vivo que ela passa durante um close-up de seus lábios.
Aos 75 anos recém-completos e em seu 23º longa, evidenciamos o surgimento deste novo Pedro Almodóvar. Um cineasta que, sim, continua contando histórias emocionantes de mulheres que se apoiam umas nas outras, mas que dá preferência à sobriedade de vestuários, cenários e atuações. E, principalmente, que constrói personagens cada vez menos verborrágicas, mas com muito mais a dizer.
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Um Almodóvar contido e politicamente gritante. Artigo de Bruna de Lara - Instituto Humanitas Unisinos - IHU