18 Outubro 2024
"Desta forma, sete anos depois, os perdedores da aplicação do choque liberalizante sobre o mercado de trabalho nacional são facilmente identificados – a força de trabalho brasileira ocupada na faixa etária até 60 anos, submetida ao cardápio contratual saído da legislação moldada pela terceirização generalizada e reforma da CLT; os trabalhadores conta-própria; e, o pequeno empresariado do país, voltado ao mercado consumidor interno", escreve Lúcia Garcia, economista e assessora técnica do Instituto Trabalho e Transformação Social.
A recuperação econômica do Brasil e os resultados gerais da ocupação e massa de rendimentos, sistematicamente positivos, delineiam o abandono dos dias mais tormentosos do mercado de trabalho nacional, o que, certamente, justificariam o otimismo popular e a felicidade geral dos trabalhadores. Indo além, em 2024, este seria um substrato fértil para a retomada da esperança em projetos coletivos e restabelecimento da confiança na institucionalidade que alicerça nossa cambaleante democracia.
Porém, é evidente que este nexo esperado entre geração da riqueza e melhoria de bem-estar dos contingentes médios da classe trabalhadora, vem sendo corroído. Desta forma, embora se reconheça os esforços públicos para retomar políticas redistributivas importantes para os segmentos estruturalmente excluídos e aqueles jogados à pobreza na última década, a força de trabalho do país ocupa um lugar diferente, pois, perde direitos, reconhecimento e perspectiva – literalmente interpretando o crescimento econômico recente como caviar, do qual “só ouve falar”.
Em grande parte, o encadeamento destas questões é dado pelo conjunto de reformas estruturantes de 2017, que visaram a redução dos custos trabalhistas como requisito para prosperidade econômica. Uma ideia que, para além da falácia da eficiência, realmente sustenta o rebaixamento de despesas operacionais de empresas na vulnerabilidade institucional dos trabalhadores e na utilidade desta lógica reducionista para um modelo econômico agroexportador e tecnologicamente subordinado.
Sabe-se, também, que parcela dos pequenos e médios empresários apoiou as reformas, em busca de soluções imediatas para seus problemas em uma economia estagnada, e, hoje, amargam com os desdobramentos do avanço pachorrento da renda média e aumento da concorrência de capitais internacionais no varejo e nos serviços sobre o faturamento de seus negócios. Desta forma, sete anos depois, os perdedores da aplicação do choque liberalizante sobre o mercado de trabalho nacional são facilmente identificados – a força de trabalho brasileira ocupada na faixa etária até 60 anos, submetida ao cardápio contratual saído da legislação moldada pela terceirização generalizada e reforma da CLT; os trabalhadores conta-própria; e, o pequeno empresariado do país, voltado ao mercado consumidor interno.
Por outro lado, ainda figura no plano dos desafios a expectativa de que a recuperação das capacidades estatais, investimentos públicos, crescimento e novo padrão industrial possam amenizar os efeitos de fissuras tão profundas na organização socioeconômica. Ao promover enorme esforço neste sentido, o governo, sem dúvidas, melhora, mas não transforma a vida da população. Afinal, mesmo que ganhos nominais e absolutos do crescimento possam ser alcançados, a arquitetura montada pelas reformas garante que, na distribuição relativa dos resultados econômicos, os trabalhadores em média estarão no final da fila. Diante de um quadro tão nítido, em que os especialistas quase perdem sua utilidade, a classe trabalhadora tem se dividido entre o pragmatismo, a resignação desalentada e o ressentimento.
Nesta marcha perigosa para o tecido social, o debate sobre a Reforma Trabalhista se torna uma tarefa necessária, mas o ponto que requer maior urgência para retomar a centralidade do trabalho nesta conjuntura é, sem dúvida, a terceirização. Isto se deve a amplitude e repercussão geradas pela estratégia de reduzir os custos, transferir a gestão de pessoal e/ou partilhar riscos através da contratação de trabalho triangulada – que insere um terceiro em relações de emprego. Muito denunciada pela evidente precarização que produz, esta estratégia empresarial precisa ser compreendida a partir do papel estratégico que desempenha na liberalização do mercado de trabalho.
Tomada nesta perspectiva, entende-se que a usinagem para que a terceirização assumisse os moldes atuais esteve presente nas três ondas liberalizantes do trabalho no Brasil – na ditadura militar, através da legislação que veio a normatizar o trabalho temporário (Lei 6019/74); na introdução da flexibilização originada no poder executivo de Fernando Henrique Cardoso, quando a terceirização passou a ser contida pelo Superior tribunal do Trabalho (Súmula 331/93); e, na fase atual, quando as manobras para aprovação de dois Projetos de Lei semelhantes resultaram na aprovação da Lei 14.429, em 2017, enquanto se tentava conter a Reforma da CLT (Lei 14.467) [1] DROPPA, Alisson; BIAVASCHI, Magda Barros; TEIXEIRA, Marilane Oliveira. A terceirização no contexto da reforma trabalhista: conceito amplo e possibilidades metodológicas. Caderno CRH, v. 34, p. e021030, 2021.
Com isto, na longa história de resistências à adaptação do trabalho brasileiro aos interesses econômicos, a terceirização deixou de ser uma excepcionalidade e vem se tornando predominante, embora sua visibilidade ainda seja ofuscada pela multiplicidade de formas assumidas por esta estratégia empresarial.
No momento, o alcance da terceirização parece estar diretamente associado a capacidade adaptativa ou plástica adquirida pelas estratégias de arregimentar e intermediar a execução do trabalho através de empresas terceiras. Esta capacidade, por sua vez, resulta da combinação de liberações legislativas e potencialidades oferecidas pela generalização do digitalismo. Desta forma, a variedade dos modos de contratação e flexibilizações de condições de trabalho, previstas na Reforma da CLT [2] DIEESE, 2017. A Reforma Trabalhista e os impactos para as relações de trabalho no Brasil. Nota Técnica nº 178. maio. 2017. , se combinam com a natureza das atividades exercidas por terceirizados em relação ao foco principal da produção, advindas da Lei 14.429, e com a vigilância e relocalização espacial do trabalho, derivados da tecnologia digital.
Ao contrário de propalada modernização das relações de trabalho, estes fatores tornaram a terceirização atual mais abrangente e danosa para trabalhadores. Para além das empresas especializadas na prestação de serviços de apoio, a terceirização livre passou a incluir trabalhadores temporários alocados via agências e assalariados recrutados por empreiteiras para o desenvolvimento de atividades fim. Neste rol também foram incorporados autônomos envolvidos em atividades essenciais; parcelamentos da produção, posteriormente deslocados para execução de ex-funcionários/consultores; criação de Organizações Sociais de ocasião e cooperativas fraudulentas [3] KREIN, José Dari. Tendências recentes nas relações de emprego no Brasil: 1990-2005. 2007. Tese de Doutorado.
Finalmente, a contratação atomizada de trabalhadores através de plataformas digitais, para alguns serviços on demand e de gerenciamento de microtarefas, compõem a constelação.
Muitos são os desafios que emergem deste quadro que dista muito da divisão do trabalho nítida do fordismo. Algumas destas dificuldades, entretanto, tendem a se destacar, como às associadas ao rastreamento dos novos limites setoriais da produção e, por consequência, seus encadeamentos; as diretamente ligadas a identidade do trabalhador e sua organização sindical; e, a disposição para o debate das lacunas, omissões e incongruências da legislação trabalhista ante a realidade fática trazida pela terceirização.
No Rio Grande do Sul, onde processos obscuros de terceirização, recentemente, desaguaram em situações análogas à escravidão, o debate da terceirização está na ordem do dia, entre especialistas, assessores e dirigentes do mundo do trabalho.
Atualmente, no âmbito da Superintendência Regional do Ministério Trabalho e Emprego, vige um Pacto que reúne entidades sindicais de trabalhadores e patronais visando soluções para edificar boas práticas no ambiente da terceirização. A articulação vem acompanhada de frentes parlamentares dedicadas ao assunto no legislativo estadual e do município de Porto Alegre.
No âmbito dos sindicatos, recentemente foi realizada uma Roda de Escuta, que procurou sistematizar percepções de dirigentes de categorias de terceirizados e de segmentos que vem sendo atingidos pela nova terceirização. Além disto, um Seminário organizado pelo Instituto Trabalho e Transformação Social (ITTS) e Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho/4ª Região reuniu, nesta semana, especialistas e representantes sociais procurando avanços em vários novos temas trazidos pela realidade de uma economia em que progride a triangulação do emprego.
Deste movimento, depreende-se que os segmentos organizados do trabalho estão despertos para o tema e procuram o alinhamento necessário para elucidar os nexos entre terceirização e a marcha aviltante empreendida sobre a vida, nos últimos anos. Certamente, este é um primeiro passo de uma caminhada difícil, que se embrenha em uma realidade que desvaloriza o papel social do trabalho e na qual predominam os esforços de ocultação do caráter essencial das disputas econômicas da atualidade. Além disto, nem todos os representantes e segmentos envolvidos nestas iniciativas de discussão visualizam o sentido estratégico desta reorganização do emprego, enquanto outros buscam meras soluções para seus interesses corporativos.
Entretanto, este é a função desenvolvida pelo debate de questões concretas, em que boa parte dos bons resultados se traduz em iluminar caminhos. De tudo, fica a esperança que a avaliação precisa e realista que a classe trabalhadora já faz, através de suas representações mais genuínas, possa sensibilizar os agentes públicos mais bem posicionados na escala de poder.
Embora não seja a única, elucidar o trabalho terceirizado é tarefa urgente de nosso tempo. Para interromper um liame potente da degradação do trabalho, mas, sobretudo, para que os trabalhadores possam desfrutar da mesa do crescimento.
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Terceirização, desesperança e o crescimento caviar. Artigo de Lúcia Garcia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU