30 Setembro 2024
Ao tomar posse como presidente, em 10 de dezembro, Javier Milei garantiu que com ele começava o fim da decadência da Argentina. Seis meses depois, em meio a um ajuste fiscal sem precedentes, o país apresenta outra realidade: uma pobreza em que sucumbiram 5,2 milhões de pessoas, atingindo 52,9% da população.
A reportagem é de Ana Delicado Palácios, publicada por El Salto, 30-09-2024.
São quase 25 milhões de habitantes que não têm rendimentos suficientes para cobrir o cabaz de compras, depois de a pobreza ter disparado 11,2 pontos percentuais no primeiro semestre, segundo informou esta semana o Instituto Nacional de Estatística e Censos (INDEC).
Num país habitado por 47 milhões de pessoas, a pobreza aumentou ainda mais ao subir 8,8 pontos percentuais, o equivalente a 4,1 milhões. Os que não têm o mínimo para sobreviver são um total de 8,8 milhões, 18,8% da população argentina.
A pobreza é ainda mais implacável na infância. Afeta seis em cada dez crianças com menos de 14 anos (66,1%) e quase uma em cada três (27%) vive na pobreza. Existem mais de 7 milhões de crianças na Argentina que não atendem às suas necessidades básicas.
“É importante compreender que tudo isto não aconteceu no período Milei, porque no quarto trimestre de 2023 já havia 45% de pobreza e 15% de miséria”, esclarece o sociólogo Agustín Salvia ao El Salto. “O primeiro trimestre foi o mais explosivo, o mais crítico, com a pobreza que subiu para 55% e a indigência que subiu para 20%, só no segundo trimestre tendeu a cair um ou dois pontos”, avalia.
O diretor do Observatório da Dívida Social Argentina da Universidade Católica, cujo órgão permitiu medir a evolução da pobreza na ausência de estatísticas oficiais confiáveis da intervenção do INDEC durante o governo de Cristina Fernández de Kirchner (2007-2015), alerta que o país enfrenta o fim de um ciclo político e econômico.
Esse modelo, estabelecido a partir da conversibilidade que igualou o peso argentino ao dólar durante a gestão do ex-presidente Carlos Menem (1989-1999) e que resultou na explosão social e econômica de 2001, baseia-se no déficit público e na inflação elevada, segundo Sálvia.
“É um esquema que se apoiava no consumo e no endividamento, ou na emissão de dinheiro. Eram desequilíbrios macroeconômicos que geravam um certo bem-estar, a ilusão de mobilidade social, ou pelo menos de contenção, através de programas de reforma e de trabalho no mercado interno com baixa produtividade”, disse o sociólogo argentino.
Os pensionistas já não têm o que comemorar com a atual gestão, cujo presidente acaba de vetar uma lei que aumentou as pensões. No último ano, a taxa de pobreza entre as pessoas com mais de 65 anos mais do que duplicou, saltando de 13,2% para 29,7%.
No início de sua gestão, Milei desvalorizou o peso oficial em 54% em relação à moeda norte-americana, o que elevou os preços em 25,5% em dezembro e 20,6% em janeiro. A inflação continuou a diminuir até oscilar nos 4% nos últimos meses, sem que os salários conseguissem sequer chegar perto.
A queda dos salários reais, precisamente, é um problema que remonta a 20 anos e faz com que a produtividade média seja muito baixa, segundo o diretor do Observatório da Dívida Social.
“Existem diferenças entre setores muito dinâmicos que competem no mercado internacional, como os exportadores ou produtores industriais de serviços e os negócios globalizados, enquanto surge uma população excluída, confinada a empregos informais que criam a sua própria estratégia de sobrevivência”, detalha Salvia.
O sociólogo contrasta o exemplo dos migrantes informais que vivem na Europa e que geram o seu próprio emprego com pequenas vendas ou com a produção de serviços pessoais, sem aceder ao pleno emprego mesmo que haja procura. “No caso argentino, não há demanda para que essa população tenha acesso a melhores empregos. Não é que esteja segmentado pela sua origem, mas sim que não há atividade econômica suficiente de pequenas e médias empresas para poder incorporá-lo”, observa.
Duas gerações argentinas passaram por esse processo. “A situação tende a piorar, porque para sustentar um clima de bem-estar é preciso manter um elevado nível de consumo, atualizar os programas sociais, gerar melhorias salariais e implementar investimentos públicos que impulsionem a economia”, disse Salvia.
Estas políticas não são sustentáveis quando a dinâmica é sustentada com emissão monetária, déficit público, inflação e endividamento interno ou externo, argumenta o especialista argentino. Mas esta situação agravou-se com o Governo de Alberto Fernández (2019-2023).
“Milei chega a ser o resultado de um fim de ciclo”, afirma o diretor do Observatório. “Quem quisesse governar tinha que baixar a inflação e desarmar a armadilha da pobreza que estava implícita naquele modelo, embora não esteja claro se isso acontecerá com as regras propostas pelo atual presidente”.
A construção de uma nova Argentina, como Milei prometeu há seis meses, não é algo que possa ser visualizado neste momento, e o país começa a ressentir-se do desgaste econômico e social que se acelerou nos últimos meses, de acordo com as últimas pesquisas: Pela primeira vez desde a sua assunção, há uma clara erosão da imagem positiva do presidente de extrema-direita.
No final de um regime que dá os seus últimos suspiros, o desemprego ainda é relativamente baixo (7,6%), mas coexiste com uma informalidade que afeta 50% das profissões, e que tem vindo a crescer sistematicamente nos últimos doze anos, desde concordo com Sálvia.
Prevê-se um conflito social maior na Argentina. Tomemos como exemplo a defasagem salarial dos trabalhadores das universidades públicas, que é de 50% em relação à inflação, e está longe de ser assumida pelo Governo. Aliás, Milei anunciou que vai vetar uma lei sancionada no Congresso que aumenta o orçamento dos centros de ensino superior e atualiza os salários dos professores e funcionários administrativos.
A comunidade universitária convocou uma marcha para o dia 2 de outubro, um sinal de alerta para o Executivo que tem um precedente não tão distante: no dia 23 de abril, uma grande marcha encheu o centro de Buenos Aires e as principais cidades do país, com a presença de 800 mil pessoas só na capital e um milhão de pessoas em todo o território, naquela que foi talvez a maior manifestação dos últimos anos.
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Argentina vê seu maior nível de pobreza em 20 anos com Milei como presidente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU