27 Setembro 2024
Os direitos identitários são importantes: de gênero, etnia, religião, para proteger toda minoria.
A entrevista é de Enrico Franceschini, publicada por La Repubblica, 26-09-2025.
Mas são muito importantes também os direitos sociais, coletivos e universais: o direito ao trabalho, a uma casa, à saúde, à educação e a uma existência digna para todos. E, nas últimas décadas, a esquerda os negligenciou: se os progressistas não voltarem a oferecer uma cultura política no campo social, correm o risco de não ganhar mais uma eleição, deixando para a direita a tarefa de se apresentar como defensora dos mais fracos.
Essa é a mensagem de alarme lançada por dois renomados cientistas políticos ocidentais, o estadunidense Yascha Mounk e o francês Olivier Roy, em dois livros publicados simultaneamente na Itália nos últimos dias pela Feltrinelli, respectivamente La trappola identitaria e L'appiattimento del mondo (A armadilha identitária; O achatamento do mundo). Uma advertência sobre a qual ambos retornam nesta conversa para a qual La Repubblica os convidou, para refletir sobre os desafios de nosso tempo.
Vamos começar com uma notícia recente: como avaliam a vitória do partido AfD (Alternative fur Deutschland) na votação da Turíngia, a primeira vez que um partido de extrema-direita se afirma em uma eleição regional na Alemanha desde o nazismo até hoje?
MOUNK: Embora tenhamos assistidos à ascensão da direita populista em toda a Europa há algum tempo, a Alemanha parecia ter contido o fenômeno: agora não é mais a exceção. Com o fator agravante de que o AfD é um partido mais extremista do que Giorgia Meloni, na Itália, ou Marine Le Pen, na França. Reúne consenso em toda a Alemanha, mas principalmente na Alemanha Oriental: prova de que o processo de reunificação funcionou do ponto de vista econômico, mas não conseguiu criar uma cultura compartilhada entre as duas Alemanhas.
ROY: O problema, não apenas alemão, é a perda da memória histórica. Na Alemanha, a novas gerações não sabem quem foi Hitler ou não se importam. Como se o passado não tivesse mais importância: isso também vale para a Itália, com relação a Mussolini e ao fascismo. Os alemães orientais, depois do nazismo e do comunismo, receberam a oferta do consumismo dos alemães ocidentais: uma cultura sem valores. É por isso que sentem o fascínio da extrema direita, que propõe a cultura da raiva.
A direita assusta na Alemanha, está no governo na Itália e chegou perto da façanha na França: isso é culpa da esquerda europeia?
M: Parcialmente, sim. E o fenômeno não se limita à Europa: o populista Modi está no poder na Índia, o populista Trump poderia estar de volta nos Estados Unidos. A esquerda pode culpar aqueles que votam na direita ou se olhar no espelho e se perguntar se a culpa é sua. Se é porque não consegue explicar às pessoas os benefícios da imigração. Se é por causa da distância entre as elites e as massas...
R: Para mim, a chave é o neoliberalismo: a aceitação pela esquerda de políticas como a desindustrialização, que deixou a classe trabalhadora indefesa. Os perdedores se sentem abandonados pela esquerda. Por isso, votam na direita, que, pelo menos em palavras, promete os defender.
Em 2016, a candidata democrata Hillary Clinton perdeu a eleição presidencial em parte porque atacou o que ela chamou de “cesta dos deploráveis”: racistas, homofóbicos e misóginos. Mas por que não se pode dizer que um racista homofóbico é um indivíduo deplorável?
M: Você pode dizer, em nossas sociedades há liberdade de expressão. Mas é uma atitude errada por dois motivos. O primeiro é que, se quiser reconquistar os votos dessas pessoas, não adianta ofendê-las. E o segundo é que isso não é totalmente verdade. Não são todas terríveis, mesmo que votem em partidos terríveis.
Viajei muito pela Itália recentemente. Na Toscana, me encontrei com muitas pessoas boas que já votaram no partido comunista e agora votam em Giorgia Meloni. E são as mesmas pessoas.
R: De qualquer forma, o rótulo de deplorável não se aplica a todos. Os coletes amarelos na França: aqueles manifestantes não eram racistas, homofóbicos, misóginos. Eles estavam lutando por questões econômicas.
Em algum lugar da Europa, a esquerda venceu: no Reino Unido, onde Keir Starmer levou o Partido Trabalhista de volta ao governo, abandonando o radicalismo de seu antecessor, Jeremy Corbyn.
M: Foi a linha certa para ampliar o consenso, mas também é preciso dizer que a popularidade dos conservadores vinha caindo há algum tempo, pagando pelo caos do Brexit e pela deriva radical-populista de seu partido, que alienou o apoio dos moderados. Corbyn fracassou devido à falta de patriotismo, um elemento importante para a maioria dos britânicos, e porque propunha um modelo de esquerda estatista dos anos 1970 que a maioria rejeita atualmente.
R: Era difícil para o Trabalhista não vencer, depois de 14 anos de catástrofe conservadora. Mas, para vencer com ampla vantagem, Starmer não tinha outra escolha a não ser conquistar o centro do eleitorado.
O que há de errado com a defesa total dos direitos identitários, Mounk?
M: Não há nada de errado: é correto defender os direitos das minorias. Mas Martin Luther King lutava pela inclusão dos afro-americanos na sociedade EUA, enquanto hoje alguns grupos identitários parecem fechados sobre si mesmos, empenhados em excluir os outros em vez de serem incluídos. E não prestar atenção aos direitos universais para se concentrar nos direitos identitários é um erro pelo qual a esquerda ocidental corre o risco de pagar caro.
Em que sentido o mundo se “achatou”, professor Roy?
R: No sentido de que não há mais nada acima e abaixo: os valores desapareceram, apenas se mantêm os egoísmos pessoais. Não há mais nenhum sentido histórico, como se tivéssemos feito uma tabula rasa. 1989, o ano da queda do Muro de Berlim, tornou-se o ano zero para a Europa: perdemos o rastro de tudo o que existia antes e o substituímos por nada do ponto de vista cultural. Vivemos em um mundo achatado pelo dinheiro e pelos consumos, no qual as pessoas ficaram sem nada de que se orgulhar.
E se tudo isso for simplesmente culpa da Ásia? Graças à globalização, este será o século asiático, no qual o declínio da classe média ocidental é inevitável. Portanto, o ocidental médio está com raiva e vota nos populistas...
M: Uma tese que não me convence. É verdade que o milagre econômico do pós-guerra, dos Estados Unidos à Itália, foi algo único e provavelmente irrepetível. Mas os Estados Unidos continuam sendo a maior potência econômica do mundo, seus salários estão crescendo, mas as pessoas estão com medo e descontentes.
Voltando ao que Roy estava dizendo: a incapacidade dos partidos de massa atuais de sugerir uma política e uma cultura compartilhadas. Patriótica, sem fechar a porta para os imigrantes. Determinada a proteger as minorias, sem se tornar sua escrava. Pronta para condenar os erros do passado, como o colonialismo, sem pretender reescrever a história.
R: “O Ocidente está em uma crise de valores, em uma crise demográfica, em uma crise econômica. No entanto, a cultura ocidental continua a dominar o mundo, no cinema, nas artes, na música e nas novas mídias. Se recuperar uma identidade cultural, o Ocidente não parece condenado a um papel secundário na competição com a Ásia.
O Ocidente se tornou prisioneiro do woke, do politicamente correto?
M: Sim. Ele se tornou escravo. Acredito que o direito de palavra deva ser mais amplo, o que não significa o direito de dizer coisas ofensivas. Na Itália, por exemplo, parece-me que hoje quase todo mundo fale de gays e lésbicas de uma maneira diferente de dez anos atrás, e isso é um grande progresso. O problema surge quando o politicamente correto nos impede de enfrentar problemas reais. Quando impede uma livre discussão. Quando uma pequena parte da população adota uma posição e tenta impô-la a todos.
R: Como a própria palavra diz, o politicamente correto é a correção de velhos preconceitos, portanto, é uma tendência positiva. Mas, como sempre, quando há uma virada cultural, pode haver excessos.
Podemos concluir que os direitos identitários são importantes, mas que a esquerda deve voltar a defender vigorosamente também os direitos sociais, o direito ao trabalho, a uma casa, à saúde e à educação?
M: Essa é a razão pela qual, hoje, muitos que costumavam votar na esquerda votam na direita: não se sentem mais protegidos no campo social. Mas é possível defender ambos os direitos ao mesmo tempo: proteger a inclusão das minorias e a tolerância em todos os níveis e, ao mesmo tempo, lutar pela proteção social de toda a coletividade. Também porque a direita oferece proteção em palavras, mas raramente melhora a vida dos cidadãos efetivamente.
R: Antigamente os direitos sociais estavam no centro da mobilização progressista: eram o coração do ideal da esquerda, embora nas suas diferentes explicitações, socialdemocrata, socialista, comunista. Hoje, a esquerda tem pouco a dizer sobre esse campo. E assim, mesmo quando governa, tem pouco a oferecer, pouco para se diferenciar da direita.
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“Os direitos de que precisamos”. Entrevista com Yascha Mounk e Olivier Roy - Instituto Humanitas Unisinos - IHU