11 Setembro 2024
Prestes a completar os cinco anos do tão esperado evento eclesial, é tempo de recolher os frutos e fazer um balanço dos avanços e entraves existentes. Com esse fim, alguns questionamentos são fundamentais, tais como: a Igreja da Amazônia aumentou seu comprometimento com as causas sociais, não só por meio de recursos financeiros e de estruturas à serviço, mas também pelo maior e mais qualificado engajamento de agentes pastorais e pessoas liberadas para a missão? Quais foram os progressos efetivos na vida concreta das dioceses e prelazias, comunidades e pastorais que fizeram a Igreja mais encarnada e plural? O processo sinodal se incorporou nas práticas e decisões missionárias, pastorais e litúrgicas tornando o exercício da autoridade mais inclusivo, circular e horizontal?
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
“Louvado sejais, Senhor, por esta obra maravilhosa dos povos amazônicos e por toda a biodiversidade que estas terras contêm!”, exclamou o Papa Francisco quando, em janeiro de 2018, viajou até Puerto Maldonado, no Peru. Nesse encontro histórico com os Povos Indígenas, o pontífice insistiu na importância de “estarmos juntos no coração da Igreja, solidarizarmo-nos com os vossos desafios e, convosco, reafirmarmos uma opção sincera em prol da defesa da vida, defesa da terra e defesa das culturas”. [1] E, assim, em outubro próximo se celebram os cinco anos da realização do Sínodo para a Amazônia.
Pela primeira vez uma amostra diversificada das culturas e das preocupações amazônicas se transplantou para o coração da Cidade Eterna. Lideranças indígenas e ribeirinhas ocuparam as basílicas romanas com seus cocares e cores, essências e sementes de uma das regiões mais plurais do planeta. Diante do choque de alguns prelados conservadores, Francisco provocou: “que diferença há entre usar plumas ou o tricórnio de alguns chefes de dicastério?”
O evento eclesial, que possibilitou uma ampla e inédita escuta dos territórios pan-amazônicos, significou um inquestionável marco na história de luta e proteção da biodiversidade e dos direitos dos povos que habitam o bioma. A realização do sínodo e toda a sua preparação permitiram que, pelo menos por algum tempo, os olhos do mundo cristão se voltassem para os dramas e as ameaças que afligem a região.
Esses ataques são perpetrados por um modelo que Nancy Fraser chama de capitalismo canibal. Ou seja, refere-se “à relação entre a economia capitalista e os territórios não econômicos do sistema: famílias e comunidades, habitats e ecossistemas, capacidades estatais e poderes públicos que têm sua substância consumida pela economia para inflar o próprio sistema”. Cercada por todos os lados, a Amazônia enfrenta um cruel e exterminador “processo pelo qual o capital atrai para sua órbita a riqueza natural e social de zonas periféricas do sistema-mundo”. [2]
O que muitos religiosos e religiosas, leigos e leigas engajados já denunciam há décadas por meio de um desinteressado, comprometido e, muitas vezes, não reconhecido trabalho das pastorais sociais, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da Rede um Grito pela Vida, ganhou um espaço impensável na pauta da Igreja universal. Os gritos sufocados por um sistema político cúmplice com a destruição puderam finalmente ecoar com força pelos salões entorpecidos dos centros financeiros mundiais. Nesse sentido aponta a filósofa alguns dos perigos do canibalismo capitalista:
“’Capitalismo’ (...) designa melhor algo maior, uma ordem social que autoriza uma economia movida pelo lucro a predar os apoios extraeconômicos de que necessita para funcionar: a riqueza expropriada da natureza e dos povos sujeitados; as múltiplas formas do trabalho de cuidado, que enfrenta uma desvalorização crônica – isso quando não é inteiramente rejeitado –; os bens e os poderes públicos que o capital exige e, ao mesmo tempo, tenta restringir; a energia e a criatividade do povo trabalhador”. [3]
Necessário reconhecer que na denúncia de uma necroeconomia que põe em risco toda a vida da Casa Comum, o Papa Francisco tem sido um incansável profeta e conclamado os cristãos e as cristãs a avançarem rumo a uma economia do cuidado. Em vários documentos impactantes, tais como Laudato Si’, Fratelli Tutti, Querida Amazônia e Laudate Deum, o pontífice parece apontar que “uma ecopolítica que busque evitar a catástrofe precisa ser anticapitalista e transambiental”. [4]
Todavia, prestes a completar os cinco anos de tão esperado evento eclesial, é tempo de recolher os frutos e fazer um balanço dos avanços e entraves existentes. Com esse fim, alguns questionamentos são fundamentais, tais como: a Igreja da Amazônia aumentou seu comprometimento com as causas sociais, não só por meio de recursos financeiros e de estruturas à serviço, mas também pelo maior e mais qualificado engajamento de agentes pastorais e pessoas liberadas para a missão? Quais foram os progressos efetivos na vida concreta das dioceses e prelazias, comunidades e pastorais que fizeram a Igreja mais encarnada e plural? O processo sinodal se incorporou nas práticas e decisões missionárias, pastorais e litúrgicas tornando o exercício da autoridade mais inclusivo, circular e horizontal?
Para continuar percorrendo esse longo e complexo itinerário, de uma Igreja cada vez mais servidora e amiga dos povos amazônicos, é preciso um amplo e detalhado diagnóstico dos passos dados e daquilo que ainda é impedimento para caminhar. Só assim se poderá discernir para quais águas mais profundas se deverá singrar e quais os melhores modos de o fazer. Trata-se de uma tarefa para os teólogos e os sociólogos da religião, o desenvolvimento de estudos que se detenham nas diferentes perspectivas cabíveis para analisar as questões envolvidas e oferecer as opções mais apropriadas.
Dentre os desafios candentes apontados na exortação apostólica pós-sinodal Querida Amazônia, vale destacar três deles que permanecem atuais e incompletos: a inculturação, o diálogo inter-religioso e ecumênico, e uma formação renovada do clero e da vida religiosa consagrada local. Testemunhar a Boa Nova da Libertação implica em um profundo diálogo com as várias culturas da região, em um mergulho sensível no ethos amazônico. Ou seja, é preciso despir-se das concepções trazidas de outros lugares para se deixar tocar pelas interpelações dos novos encontros.
Assim, “a Amazônia desafia-nos a superar perspectivas limitadas, soluções pragmáticas que permanecem enclausuradas em aspectos parciais das grandes questões, para buscar caminhos mais amplos e ousados de inculturação”. [5] Para tanto, os missionários e as missionárias precisam de longos anos de presença na região, com abertura para aprender as cosmovisões, as línguas e os costumes dos povos indígenas e das populações tradicionais. Ademais, diz o papa:
“A inculturação deve desenvolver-se e espelhar-se também numa forma encarnada de realizar a organização eclesial e o ministério. Se se incultura a espiritualidade, se se incultura a santidade, se se incultura o próprio Evangelho, será possível evitar de pensar numa inculturação do modo como se estruturam e vivem os ministérios eclesiais? A pastoral da Igreja tem uma presença precária na Amazônia, devido em parte à imensa extensão territorial, com muitos lugares de difícil acesso, grande diversidade cultural, graves problemas sociais e a própria opção de alguns povos se isolarem. Isto não pode deixar-nos indiferentes, exigindo uma resposta específica e corajosa da Igreja”. [6]
Acontece que as dioceses e prelazias nem sempre possuem os meios adequados para colocar essas orientações em prática. Embora se deva reconhecer que há grande carência de pessoas com formação e experiência mínimas para dar concretude aos apelos do Sínodo, também não se pode ignorar que as estruturas tradicionais de governo da Igrejas locais, começando pelos próprios bispos, inclusive, se não colocam obstáculos diretos tampouco se envolvem com o ânimo e o empenho imprescindíveis nesses processos de transformação tão exigentes e radicais.
A velha Igreja sacramentalista, fundada no onipresente clericalismo e no vazio ritualismo pré-conciliar teima em não abrir espaço para a Igreja sonhada pelo Sínodo. As resistências estão na porção considerável do clero formado nas últimas três décadas e amante dos incensos e rendas, em parte do episcopado acomodado e pouco ousado depois de anos de rígido controle romano e na própria hierarquia da Santa Sé, que por meio de seus dicastérios e nunciaturas não compreende as especificidades e necessidades da Amazônia.
Outro desafio que pouco avançou nos últimos anos foi a promoção do diálogo inter-religioso e ecumênico, como tão bem vem fazendo o pontífice em suas viagens e encontros pelo mundo. “Numa Amazônia plurirreligiosa, os crentes precisam de encontrar espaços para dialogar e atuar juntos pelo bem comum e a promoção dos mais pobres”, [7] afirma Francisco na Querida Amazônia.
Embora muitas igrejas neopentecostais não reflitam de forma crítica sobre nem se posicionem contra a exploração predatória do território e de seus povos, embasados na teologia da prosperidade, a pluralidade do mundo evangélico não permite se fiar em generalizações injustas e em preconceitos superficiais. Diante do mal que se abate ameaçador, insta o papa argentino: “como não lutar juntos? Como não rezar juntos e trabalhar lado a lado para defender os pobres da Amazônia, mostrar o rosto santo do Senhor e cuidar da sua obra criadora?” [8]
Por outro lado, o respeito às sementes do Verbo presentes nas culturas indígenas é inegociável. A arrogância dos antigos e novos colonialismos deve estar sepultada definitivamente, para que não se repitam posturas violentas e inaceitáveis para a compreensão pós-Vaticano II. Como vem promovendo há mais de cinquenta anos o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o diálogo intercultural, o apoio e a valorização das espiritualidades originárias são centrais na construção de uma Igreja amazônica mais humilde e discípula do Deus de Rosto Indígena.
Um terceiro ponto citado na exortação apostólica consiste na inadiável e profunda revisão da formação do clero e da vida religiosa consagrada oriundos da região. Em razão dos poucos recursos econômicos das dioceses e prelazias, impõe-se até como condição de credibilidade do testemunho cristão a solidariedade entre as Igrejas particulares, principalmente, daquelas com maior capacidade financeira. Nessa esteira alerta o pontífice:
“Esta premente necessidade leva-me a exortar todos os bispos, especialmente os da América Latina, a promover a oração pelas vocações sacerdotais e também a ser mais generosos, levando aqueles que demonstram vocação missionária a optarem pela Amazônia. Ao mesmo tempo, é oportuno rever a fundo a estrutura e o conteúdo tanto da formação inicial como da formação permanente dos presbíteros, de modo que adquiram as atitudes e capacidades necessárias para dialogar com as culturas amazônicas. Esta formação deve ser eminentemente pastoral e favorecer o crescimento da misericórdia sacerdotal”. [9]
Seria emblemático se os prefeitos e os principais assessores dos dicastérios para os Bispos, para o Clero e para o Culto Divino pudessem conhecer melhor essas partes dos trópicos, com visitas generosas às comunidades indígenas e ribeirinhas. Certamente a partir daí poderiam decidir com maior propriedade sobre os candidatos ao episcopado, bem como as normativas pertinentes para a formação do clero e o rito amazônico.
Infelizmente, a reformulação dos seminários e dos programas formativos pouco evoluiu desde então. Também aqui se constata pouca criatividade e horizontes restritos por parte dos bispos e formadores, características que também pertencem à vida religiosa consagrada. Os modelos antigos prevalecem, com fórmulas que não servem mais para ler o mundo e que pouco acrescentam aos desafios missionários atuais.
Uma quarta e última questão que nenhum avanço teve é o não lugar a que as mulheres estão relegadas na Igreja. Primeiro, postulando uma maior corresponsabilidade laical se solicitou que fosse “criado o ministério instituído da ‘mulher dirigente da comunidade’ e que este seja reconhecido a serviço das novas exigências da evangelização e do cuidado das comunidades”. [10] Afinal, as comunidades eclesiais na Amazônia são quase todas sustentadas e dirigidas por abnegadas mulheres de fé.
Além de que “o papel fundamental da mulher religiosa e leiga na Igreja da Amazônia e em suas comunidades foi reconhecido e enfatizado, devido aos múltiplos serviços prestados”. Diante disso, se reforçou a necessidade de considerar a instituição do diaconato feminino. [11] Contudo, não bastasse o fato de nada ter progredido nessa dimensão, o Papa Francisco parece ter fechado essa porta de discussão e deliberação para a segunda e última sessão do Sínodo sobre a Sinodalidade, a ser realizada daqui a algumas semanas. Depois de tantos anos, para frustração de muitos, o debate ainda parece obstruído.
Se “é verdade que, ‘embora estes processos sejam sempre lentos, às vezes o medo paralisa-nos demasiado’ e acabamos como ‘espectadores duma estagnação estéril da Igreja’”. O papa jesuíta pede para que “não tenhamos medo, não cortemos as asas ao Espírito Santo”. [12] Apesar disso, há um grande risco de que as pequenas mudanças encampadas pela hierarquia episcopal e pela cúria romana não sejam suficientes para que os grupos historicamente excluídos realmente sejam integrados à mesa da comunhão.
Parafraseando Nancy Fraser, [13] será que se conseguirá vislumbrar um projeto emancipatório e contra-hegemônico de transformação eclesial de envergadura e visão suficiente para coordenar as lutas de múltiplos movimentos sociais e eclesiais, paróquias e comunidades, pastorais sociais e outros atores coletivos – um projeto com o objetivo de enterrar o canibal de uma vez por todas? O canibalismo que não é somente econômico, mas também possui uma forte vertente eclesial e há tempos vem devorando a vitalidade de uma Igreja em saída. Fechada sobre si mesma, corre o perigo de se consumir em um ciclo vicioso cada vez mais empobrecedor e estéril.
Mas “há muitos caminhos / que levam a Roma; / Belém e o Calvário / saíram de rota”, já denunciava o bispo-poeta Casaldáliga sobre o risco de se perder nos meandros do poder. Mesmo com o ar fresco de Francisco, “nossa Madre Igreja / melhorou de modo, / mas tem muita cúria / e carisma pouco”. Afinal, seus auxiliares, “frades e conventos / criaram vergonha, / mas é mais no jeito / que por via nova”. Apesar de existirem ainda, “muitos tecnocratas / e poucos poetas. / Muitos doutrinários / e menos profetas”, [14] a profecia resiste no coração simples de muitos leigos e leigas, religiosas e religiosos, padres e bispos da Amazônia. Homens e mulheres da aurora que continuam saindo ainda de madrugada, mesmo que o novo dia pareça estar longe de clarear. Podem até adiar os sonhos de uma Igreja renovada, mas jamais lhes enterrarão a esperança!
[1] PAPA FRANCISCO. Encontro com os Povos Indígenas da Amazônia. Puerto Maldonado, 19 jan. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 9 set. 2024.
[2] FRASER, Nancy. Capitalismo canibal: como nosso sistema está devorando a democracia, o cuidado e o planeta e o que podemos fazer a respeito disso. São Paulo: Autonomia Literária, 2024, p. 14.
[3] Idem, ibidem, p. 14-15.
[4] Ibidem., p. 164-165.
[5] PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica Pós-sinodal Querida Amazônia, nº 105.
[6] Idem, ibidem, nº 85.
[7] Ibidem., nº 106.
[8] Ibidem., nº 110.
[9] Ibidem., nº 90.
[10] Documento Final do Sínodo para a Amazônia, nº 102.
[11] Idem, ibidem, nº 103.
[12] PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica Pós-sinodal Querida Amazônia, nº 69.
[13] FRASER, Nancy. Capitalismo canibal: como nosso sistema está devorando a democracia, o cuidado e o planeta e o que podemos fazer a respeito disso. São Paulo: Autonomia Literária, 2024, p. 17.
[14] CASADÁLIGA, Pedro. Oração a São Francisco, em forma de desabafo.
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Cinco anos do Sínodo para a Amazônia. Um sonho adiado? Artigo de Gabriel Vilardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU