05 Setembro 2024
"A carta 'militar' é plenamente legítima e, na verdade, necessária para alcançar o resultado de uma Palestina finalmente livre, muitas vezes representada em mapas que atribuem a ela um território que se estende do mar até o Jordão e que 'apagam' o Estado de Israel", escreve Paolo Naso, sociólogo italiano da Comissão de Estudos da Federação das Igrejas Evangélicas na Itália e professor da Universidade de Roma “La Sapienza”, em artigo publicado por Confronti, 04-09-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Trégua? Sim? Não? Até quando? Quão decisiva? Enquanto se discute sobre os últimos avanços diplomáticos possíveis, quase um ano após os atentados de 7 de outubro e da reação israelense, é mais do que evidente que a crise do Oriente Médio atingiu um abismo moral e político com raros precedentes. O envolvimento do Irã, a extensão do teatro de guerra para o Líbano e uma maior radicalização das partes em conflito, a ponto de impedir qualquer perspectiva de paz, são algo mais concreto do que meros riscos e definem um cenário sem perdedores nem vencedores, mas com milhares de vítimas e milhões de derrotados, tanto entre israelenses quanto entre palestinos: os primeiros obrigados a viver inseguros sob o pesadelo de atentados e ataques militares; os segundos, humilhados por décadas de ocupação e negação dos direitos humanos fundamentais, privados do Estado que as resoluções da ONU previram desde 1948, mas que, na realidade, continuou sendo uma miragem enganosa.
Nesse contexto, a perspectiva de “dois povos para dois Estados”, que definiu o rumo de todos os processos de paz que regularmente fracassaram ao longo do tempo, perdeu ainda mais consistência e consenso. Mesmo antes de 7 de outubro, isso era confirmado pelos dados de uma dupla pesquisa realizada por pesquisadores independentes do Pew Research Center de Washington, segundo a qual, em comparação com dez anos antes, essa fórmula perdeu o consenso tanto entre os árabes israelenses (-33%) quanto entre os judeus israelenses (-14%). Quanto à população palestina da Cisjordânia e de Gaza, de acordo com a agência palestina Policy and Survey Research (www.pcpsr.org), pouco menos de 20% ainda acreditam em um caminho negociado e pacífico; cerca de 30% confiam em uma luta popular que exclua os atos terroristas; 53% confiam na continuação da luta armada. A mesma agência confirma que dois terços da população de Gaza expressam uma opinião positiva sobre os ataques de 7 de outubro, que teriam tido o mérito de colocar a “questão palestina” novamente no centro da agenda internacional. A pesquisa também mostra a queda na popularidade de Abu Abbas e da Autoridade Nacional Palestina (ANP). Com base nesses dados, observadores e circuitos ativistas decretam a morte da fórmula estratégica “dois povos, dois Estados”, considerada irrealista e prejudicial para o povo palestino, além de perigosa e ameaçadora para os judeus israelenses.
Essa opinião se baseia em três fatos: o primeiro é o fracasso dos Acordos de Oslo de 1993, construídos precisamente sobre a arquitetura dos “dois povos, dois Estados”, o que provaria que não há nenhuma intenção séria do lado israelense de chegar a um acordo definitivo sobre o status de territórios agora permanente e estavelmente “ocupados”. Além disso, os assentamentos judaicos na Cisjordânia e a construção do muro que fecha centenas de milhares de palestinos em uma prisão a céu aberto privaram a Cisjordânia da continuidade territorial e, portanto, o Estado palestino seria o símbolo de um espaço “em confetes”, em si insignificante e difícil de governar. A dificuldade de imaginar uma conexão entre a Cisjordânia e Gaza reforça esse argumento.
Por fim, também graças à cobertura dos Estados Unidos, Israel fortaleceu seu aparato militar e iniciou programas de ocupação em franco contraste com as normas internacionais, sem que isso gerasse sanções significativas ou qualquer reação eficaz do Ocidente, da União Europeia ou dos Estados Unidos.
Disso tudo decorre o ressurgimento de ideias e projetos que pretenderiam enterrar para sempre a arquitetura “dois povos, dois Estados” para relançar outras propostas. A primeira, cada vez mais popular no campo palestino, é a da “resistência até a vitória” que, por mais irrealista e ingênua que possa parecer, continua a convencer - é o que dizem as pesquisas - pelo menos metade da população palestina, hoje mais do que ontem disposta a confiar no fundamentalismo do Hamas e nas suas estratégias militares e terroristas. Um argumento corolário dessa tese é que, do lado israelense, se reage com a mesma lógica e, portanto, a carta “militar” é plenamente legítima e, na verdade, necessária para alcançar o resultado de uma Palestina finalmente livre, muitas vezes representada em mapas que atribuem a ela um território que se estende do mar até o Jordão e que “apagam” o Estado de Israel.
A força dessa hipótese é diretamente proporcional à fraqueza política - e, em muitos aspectos, também moral, considerando os inúmeros escândalos financeiros e a natureza paternalista e clientelista do governo da Cisjordânia - da ANP, considerada responsável por um fracasso estratégico que também é medido pela gravidade de uma crise social e econômica cada vez mais aguda. Naturalmente, a hipótese dos “dois povos, dois Estados” é combatida pela direita israelense, que imagina uma eliminação das infraestruturas da sociedade e das instituições dos palestinos, reduzidos a uma massa de refugiados à mercê das decisões israelenses e da benevolência de alguns Estados árabes. Um sinal claro da plausibilidade dessa hipótese é a votação majoritária de 18 de julho, na qual o Knesset [parlamento israelense de câmara única] sancionou que a hipótese de um Estado palestino, uma “ameaça existencial para Israel”, não está de forma alguma no horizonte político da atual maioria do governo de Netanyahu. Paradoxalmente, a hipótese da superação da opção “dois povos, dois Estados” encontra cada vez mais espaço principalmente em alguns ambientes da esquerda radical que assumiram a solução do “Estado binacional para dois povos”: uma entidade política única e secular que reconheça igual legitimidade a judeus e palestinos. Vão nessa direção os apelos da One Democratic State Campaign, uma rede cuja figura principal é o historiador e ativista israelense Ilan Pappé, que após uma condenação vive na Grã-Bretanha.
O paradoxo é que essa hipótese - que não é nova, a ponto de a própria Organização para a Libertação da Palestina (OLP) tê-la defendido na década de 1960 - está sendo proposta no momento de máxima radicalização política e religiosa entre o islamismo jihadista do Hamas e o fundamentalismo militarizado da direita israelense, a que está no governo e aquela cada vez mais influente que se organiza nos assentamentos da Cisjordânia. Assim, se para alguns o “Estado binacional para dois povos” é uma profecia empolgante, em nível popular parece ser uma provocação política - uma receita para uma guerra civil eterna e virulenta - que desencadeia reações de indignação iguais das duas partes.
Israelenses e palestinos, hoje, precisam de respostas urgentes e imediatas: os reféns ainda nas mãos do Hamas atestam o fracasso da estratégia da tabula rasa de Gaza adotada por Netanyahu; o preço de vítimas e destruição pago pelos palestinos não associados ao Hamas - muitas vezes, aliás, vítimas inocentes de um regime despótico e militarizado que domina a Faixa desde 2007 - ultrapassa qualquer limiar sustentável de tolerância e humanidade. Diante dos riscos de uma escalada, é necessário pelo menos uma direção de rota, uma estrela norteadora para orientar estratégias urgentes de proteção e socorro para a população palestina e de tranquilidade para a população israelense. Embora carregada de incógnitas e obstáculos gigantescos, a opção “dois povos, dois Estados” indica um percurso. Longo, doloroso, cheio de renúncias para uns e para outros, mas até o momento é o mais realista e sustentável do ponto de vista político. A história nos ensina que os muros podem ser derrubados, as fronteiras podem ser revistas, os assentamentos podem ser deslocados ou indenizados, a comunidade internacional pode desempenhar um papel de garantia e mediação.
A paz tem um preço altíssimo, mas é sempre menor do que o preço desumano e imoral da guerra.
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Dois povos, dois estados. A utopia mais razoável. Artigo de Paolo Naso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU