26 Junho 2024
"A natureza monolítica de Israel é outra razão e mais uma demonstração da derrota. A maior parte da opinião pública israelense judaica, incluindo os opositores de Benjamin Netanyahu, é prisioneira da ideia de que uma vitória total deve ser a resposta ao massacre de 7 de outubro", escreve Amira Hass, em artigo publicado por Internazionale, 15-06-2024. A Tradução é de Luisa Rabolini.
Amira Hass é uma jornalista israelense. Vive em Ramallah, na Cisjordânia, escreve para o jornal Haaretz e colabora com o Internazionale. A única israelense a denunciar o antissemitismo dos judeus israelenses em relação aos palestinos – que também são semitas – feroz e generalizado especialmente entre os colonos, de que ninguém fala.
O Estado judaico perdeu porque os seus políticos estão levando à fome dois milhões e trezentos mil seres humanos e porque as doenças estão se disseminando em Gaza. Israel foi derrotado, e a sua derrota continua.
E não porque, após nove meses de guerra, o Hamas ainda não tenha sido neutralizado. O símbolo da derrota aparecerá para sempre ao lado daqueles do judaísmo, como a menorá e a bandeira de Israel, porque os líderes, os comandantes e os soldados israelenses mataram e feriram milhares de palestinos, semeando desolação na Faixa de Gaza. Porque a Força Aérea bombardeou edifícios cheios de crianças, mulheres e idosos. Porque os israelenses acreditam que não há alternativa.
O Estado judaico perdeu porque os seus políticos estão levando à fome e à sede dois milhões e trezentos mil seres humanos, porque espalham-se em Gaza a sarna e as inflamações intestinais.
Perdeu de forma esmagadora porque o seu exército concentra centenas de milhares de palestinos em áreas cada vez menores, rotuladas como zonas humanitárias seguras, antes de bombardeá-las. Porque milhares de pessoas tornadas permanente deficientes e crianças desacompanhadas estão presas naquelas áreas.
Porque ali estão se acumulando montanhas de lixo e a única maneira de eliminá-las é queimá-las, liberando emissões tóxicas. Porque rios de esgoto e excrementos escorrem pelas ruas.
Porque quando a guerra acabar, as pessoas voltarão para as casas em ruínas cheias de bombas não explodidas e o solo estará saturados de substâncias nocivas. Porque milhares de pessoas sofrerão de doenças crônicas.
Porque muitas daquelas corajosas equipes médicas da Faixa de Gaza, homens e mulheres, médicos, enfermeiros, motoristas de ambulância e paramédicos (e sim, mesmo aqueles que apoiavam o Hamas ou recebiam o seu salário do seu governo) foram mortos pelas bombas e pelos tiros de canhão de Israel.
Porque as crianças terão perdido anos preciosos de estudo. Porque os livros e os arquivos públicos e privados acabaram em chamas e os manuscritos, desenhos e bordados dos artistas de Gaza estarão perdidos para sempre.
Porque é impossível imaginar o dano psicológico infligido a milhões de pessoas.
A derrota consistirá no fato de um Estado que se considera herdeiro das vítimas do genocídio realizado pelos nazistas ter produzido este inferno em menos de nove meses, sem qualquer sinal de fim. Chamem isso de genocídio. Ou não chamem isso de genocídio. O fracasso estrutural não reside no fato dessa palavra ter sido agora associada ao nome de Israel nas denúncias apresentadas pela África do Sul no Tribunal Internacional de Justiça. O fracasso reside na recusa da maioria dos israelenses de ouvir os sinais de alarme daquele recurso. Eles continuaram a apoiar a guerra, fazendo com que aquela denúncia se tornasse uma profecia.
A derrota está nas universidades do país, onde se formaram juristas que justificam como “proporcional” todo bombardeio que mata crianças.
São eles que fornecem aos comandantes um colete à prova de balas, repetindo o clichê "Israel respeita o direito internacional, tomando cuidado para não prejudicar os civis” sempre que é dada a ordem de expulsar a população.
As caravanas de deslocados, a pé, com carroças, com caminhões carregados de pessoas e colchões, com as cadeiras de rodas que transportam pessoas idosas ou amputadas são um fracasso para o sistema de educação do estado judaico, pelas suas faculdades de direito e pelos seus departamentos de história. Esta derrota é também um fracasso da língua hebraica: a expulsão tornou-se “evacuação”; uma blitz militar é “uma atividade”; o bombardeio de bairros inteiros é “um bom trabalho dos nossos soldados”.
A natureza monolítica de Israel é outra razão e mais uma demonstração da derrota. A maior parte da opinião pública israelense judaica, incluindo os opositores de Benjamin Netanyahu, é prisioneira da ideia de que uma vitória total deve ser a resposta ao massacre de 7 de outubro.
É verdade, o Hamas cometeu ações horríveis: não há palavras para o sofrimento dos reféns e das suas famílias. É verdade, ter transformado Gaza num enorme depósito de armas prontas para o uso é exasperante.
Mas a maior parte dos judeus israelenses ficou cega pela sede de vingança. A recusa de ouvir e saber está no DNA desta derrota. Os nossos comandantes oniscientes não apenas não ouviram as soldados de reconhecimento que deram o alarme sobre um possível ataque, mas acima de tudo não foram capazes de ouvir os palestinos.
As sementes desta derrota estão naqueles manifestantes que protestam contra a reforma da justiça israelense, mas hesitam em admitir que não pode haver democracia sem pôr fim à ocupação dos territórios palestinos. É um fracasso já escrito nos primeiros dias após 7 de outubro, quando qualquer um que tentasse apontar o “contexto” era considerado um traidor ou um apoiador do Hamas. Aqueles traidores eram os verdadeiros patriotas, mas a derrota também é deles.
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A verdadeira derrota de Israel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU