29 Junho 2024
O pontificado do Papa Francisco enfatiza a emancipação do catolicismo global da dominação ocidental, ao mesmo tempo que navega em relações complexas com Igrejas emergentes do Sul global. Sua participação na Cúpula do G7 e seus comentários sobre a IA e a comédia destacaram esse equilíbrio dinâmico.
O comentário é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado por La Croix International, 20-06-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O movimento mais importante do pontificado do Papa Francisco foi proclamar a emancipação do catolicismo global do domínio das narrativas históricas, políticas e teológicas europeias e ocidentais. Ao mesmo tempo, esse movimento passou por diferentes fases e ênfases. O que aconteceu no dia 14 de junho diz algo significativo sobre a relação do Vaticano com o Ocidente e os modelos sociais, as culturas compartilhadas e os sistemas políticos em que o catolicismo vive.
Do ponto de vista político, o acontecimento mais importante daquele dia foi a participação de Francisco – a primeira vez de um papa – na Cúpula do G7, organizada pelo governo italiano de direita da primeira-ministra Giorgia Meloni. O papa da “Igreja para os pobres” teve que voar para Borgo Egnazia, uma falsa cidade medieval construída como um resort de luxo com suítes a 2.000 euros por noite, para se reunir com os chefes de governo das nações mais ricas do mundo e os não membros que foram convidados a participar. Teve reuniões bilaterais com alguns dos presentes na reunião da instituição, que representa o domínio do modelo constitucional e econômico ocidental no mundo. Porém, o primeiro motivo de sua presença no G7 foi para fazer um discurso sobre a IA (Inteligência Artificial).
Em um discurso cuidadosamente elaborado (no qual Francisco se manteve fiel ao texto e não improvisou) sobre as oportunidades e os riscos da IA, o papa falou sobre “a época de inovação tecnológica em que vivemos atualmente”. Ele ofereceu uma passagem muito interessante sobre a relação entre as possibilidades de controlar a tecnologia e a cultura ocidental:
“Além da complexidade de visões legítimas que caracterizam a família humana, surge um fator que parece unir essas diferentes instâncias. Registra-se como que uma perda ou, pelo menos, um eclipse do sentido do humano e uma aparente insignificância do conceito de dignidade humana. Parece que está se perdendo o valor e o significado profundos de uma das categorias fundamentais do Ocidente: a categoria de pessoa humana. E assim, nesta era em que os programas de inteligência artificial questionam o ser humano e as suas ações, é precisamente a fraqueza do ethos ligado à percepção do valor e da dignidade da pessoa humana que corre o risco de ser a maior ferida na implementação e no desenvolvimento desses sistemas” (grifo meu).
Ainda mais interessante, embora menos direta, foi a referência de Francisco à cultura ocidental em seu discurso no mesmo dia, quando se dirigiu a um grupo de cerca de 200 comediantes de todo o mundo (muitos deles da Itália e dos Estados Unidos), que foram ao Vaticano em um evento organizado pelo Dicastério para a Cultura e a Educação e pelo Dicastério para a Comunicação da Cúria Romana. Perto da conclusão dr seu discurso, Francisco disse: “Podemos rir de Deus? Claro que podemos, assim como brincamos e nos divertimos com as pessoas que amamos. A sabedoria sapiencial e literária judaica é mestra nisso! É possível fazer isso sem ofender os sentimentos religiosos dos fiéis, especialmente dos pobres”.
Seja dando uma alma à IA ou descrevendo o papel da comédia e do riso para interpretar e interagir com a realidade, o Papa Francisco estava operando implicitamente dentro de uma estrutura ocidental: a ideia filosófica e teológica da singularidade irredutível de cada pessoa humana e a suposição de que os religiosos e as autoridades políticas permitem uma liberdade de expressão que inclui a ironia quando se fala de Deus – o que significa ser capaz de sorrir e fazer os outros sorrirem para tudo.
Aqui vemos um dos grandes paradoxos do pontificado de Francisco. Ele tem falado frequente e vigorosamente contra a “colonização ideológica” do mundo pelas potências econômicas e culturais europeias e ocidentais e a favor da inculturação local. Ao mesmo tempo, mesmo na crítica de Francisco ao Ocidente, existe uma necessidade subjacente de defender as raízes ocidentais do humanismo cristão e, indiretamente também, alguns valores do iluminismo necessários para a defesa da justiça social e dos direitos humanos pela Igreja. É um apego à cultura ocidental que é certamente diferente do “Discurso de Regensburg”, de Bento XVI, em 2006. É uma ideia de Ocidente que difere das ideias liberais e neoliberais, mas também das versões iliberais e integralistas da relação entre o catolicismo e a cultura e a política contemporâneas.
Não obstante, há uma forte ligação com a cultura ocidental. É impossível imaginar o que Francisco disse no dia 14 de junho fora de um sistema liberal-democrático: sobre a IA, o papel da “política saudável […] capaz de supervisionar este processo”, e o papel do riso “contribuindo para a construção de uma cultura partilhada e criando espaços de liberdade.” As tiranias políticas, religiosas ou político-religiosas sempre tiveram uma relação difícil, para dizer o mínimo, com a linguagem da comédia, do humor e da ironia. Como Francisco lembrou aos seus convidados: “Vocês denunciam os excessos do poder; dão voz a situações esquecidas; evidenciam abusos; apontam comportamentos inadequados. Vocês fazem isso sem espalhar alarme ou terror, ânsia ou medo, como outros tipos de comunicação tendem a fazer; vocês despertam o senso crítico fazendo as pessoas rirem e sorrirem”.
Os comentários de Francisco sobre a IA e o papel da comédia foram também uma declaração indireta, mas clara, contra a teocracia, o fundamentalismo, a democracia iliberal, o populismo autoritário e diferentes formas de retrocesso constitucional e retrocesso democrático. O próprio papado aceitou a liberdade de pensamento e de expressão necessária em um longo processo histórico. Mesmo assim, parece haver algo em seu DNA proveniente da Roma Antiga – as culturas inter-relacionadas das culturas do riso “gregas” e “romanas” no Império Romano.
Sobre as raízes do Ocidente e de seu destino, existe um debate histórico e político que hoje atravessa todo o mundo ocidental, incluindo o espaço anglo-americano. A religião está sempre lá – como uma convidada ou não. O ensinamento de Francisco e a atividade diplomática da Santa Sé dizem-nos que existe uma inseparabilidade profunda entre a visão do Vaticano sobre o futuro da Igreja e o mundo ocidental. Roma deve navegar continuamente em uma relação muito complexa com as Igrejas Católicas emergentes nos países do “Sul global”. Isso provém de histórias de interações entre religião, política e cultura fora da Europa e das Américas que são essencialmente diferentes daquelas em que o Vaticano aprendeu sobre a modernidade nos últimos 250 anos.
Mas há também uma questão de curto prazo: desde o início do pontificado do Papa Francisco, há 11 anos, a situação internacional deteriorou-se. A crise política (e possivelmente constitucional) nos Estados Unidos, as guerras intratáveis na Ucrânia e no Oriente Médio e os desafios neoimperiais da Rússia e da China. Os discursos papais de 14 de junho de 2024 não visavam recriar uma unidade ideológica impossível do catolicismo por trás de uma liderança euro-americana do mundo global. Foram um lembrete aos católicos e ao ocidente de que ambos precisam um do outro – talvez mais do que estão dispostos a admitir.
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O Vaticano “global” ainda precisa do Ocidente: comediantes, IA e a Cúpula do G7. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU