13 Junho 2024
A reconstrução requer uma virada socioambiental e orçamento robusto para a população atingida. São tempos de ouvir as experiências das camponesas, indígenas e quilombolas: nelas podem estar alternativas reais ao capitalismo extrativista e patriarcal.
O artigo é publicado por Centro Feminista de Estudos e Assessoria - CFEMEA, 12-06-2024.
CFEMEA é uma organização feminista antirracista, fundada em, 1989, por um grupo de mulheres feministas que assumiram a luta pela regulamentação de novos direitos conquistados na Constituição Federal de 1988. Em 30 anos de existência, a organização desenvolveu ações de advocacy; articulação e comunicação política; ações de formação e mobilização; controle social das políticas para as mulheres e, mais recentemente a promoção do autocuidado e cuidado entre ativistas.
As mulheres que lutam olham o mundo com os olhos de quem quer transformar tudo o que nos oprime, o que nos violenta. O que vemos no colapso socioambiental que está em curso no Rio Grande do Sul (RS), provocado pela negligência do poder público em prever e se preparar para as chuvas intensas, é o sintoma do capitalismo extrativista que arranca da vida dos seres humanos, dos animais e da natureza toda a possibilidade de viver dignamente.
Ao estender nossa solidariedade a todas as vítimas do desastre, queremos dizer que estamos juntas na mobilização das mais diversas formas. Nesse momento de maior urgência, em especial, pela sobrevivência imediata com agasalhos, alimentação, produtos de higiene e limpeza, recursos financeiros, abrigos seguros a todas as pessoas, famílias inteiras que perderam tudo, e, muitas delas, inclusive seus entes queridos. Escolhemos falar do colapso ambiental denunciando o capitalismo extrativista patriarcal, racista, LGBTfóbico, heteronormativo, incompatível com a vida e o Bem Viver.
É necessário que a reconstrução do RS seja radical, com participação ativa de quem, antes, durante e depois enfrenta a crise: as mulheres, em especial as mulheres negras e as populações de periferia, que estão sustentando a vida no cotidiano da enchente. São essas as pessoas que estão nas cozinhas comunitárias, na arrecadação de comida, no cuidado com as crianças, que por um longo tempo não terão escola. São as mulheres que, majoritariamente, mobilizam solidariedade e cuidados com as pessoas afetadas, desesperadas, doentes e as que ainda vão perecer com as doenças físicas e mentais provocadas pelo alagamento e pelo trauma.
A reconstrução necessariamente precisa incluir políticas públicas sustentadas com recursos dos municípios, do estado e da União. Como sabemos, as grandes empresas e o agronegócio, defensores do Estado Mínimo, das privatizações das empresas públicas, não tardaram a falar dos prejuízos e já começaram a colocar as contas na mesa do Governo Federal. Todo mundo sabe, foram as mulheres que seguraram o cuidado e a defesa da vida durante a pandemia, sobrepondo-se ao governo negacionista, irresponsável, genocida.
Agora, também são as mulheres que seguram as crises, e precisam ser ouvidas, contempladas na reconstrução do Estado. Esses grandes empresários, alguns deles predadores ambientais, já falam da crise como uma oportunidade, e precisamos coletivamente ficar atentas. A história nos mostra que nas crises de qualquer tipo, a tendência é de os ricos ficarem mais ricos e os pobres mais pobres. Foi assim na pandemia, tem sido assim com os processos de reconstrução após tragédias e guerras.
Ao falar do desastre socioambiental que está acontecendo há mais de 30 dias no RS, é importante lembrar como ele se conecta com o restante do Brasil, o que tem em comum e como é impactado pelo desmatamento da Amazônia, a mineração assassina em terras indígenas, a presença predatória do agronegócio no Cerrado, a ofensiva constante contra o Bioma Pampa e Mata Atlântica. O colapso provocado pelas chuvas é parte de uma tragédia provocada pela ganância, a mesma que envenena os Yanomamis e que contamina os lençóis de água doce do cerrado.
É consenso entre os movimentos sociais e acadêmicos que estudam as mudanças climáticas que a conduta dos governos é a principal responsável pela tragédia que já causou mais de 170 mortes de cidadãs e cidadãos gaúchos, sem contar as mortes de diversas espécies animais e vegetais, além de milhares de pessoas desalojadas e desabrigadas que precisarão reconstruir suas casas, ou que não têm sequer um lugar para voltar. Em 2019, o governo gaúcho apoiou, incentivou e implementou a demanda dos grandes empresários, muitos do agronegócio, na promoção das quase 500 mudanças no Código Ambiental do RS. De um lado, os movimentos sociais, ambientalistas, ecologistas, feministas, sindicalistas denunciavam e protestavam contra o desmonte da legislação pioneira de proteção ambiental do RS; do outro lado, o governador Eduardo Leite (PSDB), parabenizava sua bancada na Assembleia Legislativa, composta por 37 deputados (PSL, PTB, PSDB, MDB, PP, DEM), por ter aprovado uma legislação “moderna sem debate”, inclusive na própria Comissão de Saúde e Meio Ambiente.
O principal argumento de Eduardo Leite foi de que a legislação precisava se modernizar para acelerar o desenvolvimento do estado e atender as demandas dos setores “produtivos”. Ou seja, o estado, através do seu governante máximo, agiu para que o trâmite dos interesses privados seguisse com a maior agilidade e legalidade possível. A ganância capitalista tem pressa, não quer correr riscos, e para isso elege os seus. Certamente, estamos falando de um governante que devolve com juros os apoios que recebe dos setores econômicos que o elegeram e formaram a maioria para assegurar a sustentação do seu mandato.
A crise climática estava no horizonte de uma parte da população brasileira. Os alertas dos ambientalistas, ecologistas, feministas, população negra e outros grupos na constante denúncia do racismo ambiental, contudo, foi sistematicamente negado por outra parte da população. Agora, infelizmente, são o cotidiano de populações inteiras. Nessa nova realidade, quem mais sofre são as mulheres, pessoas negras, comunidades periféricas empobrecidas, historicamente empurradas para bairros distantes sem infraestrutura, sem moradia adequada, sem trabalho, sem direitos.
Os governos, com raras exceções de alguns prefeitos que se preocupam e investem em prevenção e proteção, preferem ignorar os estudos sobre o clima e as suas recomendações técnicas para lidar com a crise socioclimática e ambiental. O Relatório do Painel Brasileiro de Mudanças do Clima, publicado em 2015, já apontava a probabilidade de chuvas muito intensas no Rio Grande do Sul no ano de 2023 e 2024. Já haviam ocorrido desastres climáticos de grandes proporções na região serrana do Rio de Janeiro em 2011, no litoral de São Paulo em 2023, concomitantemente ao RS e no Maranhão, onde as chuvas deixaram mais de 30 cidades em estado de emergência. É importante registrar que o maior nível de devastação do Bioma Cerrado ocorreu no Maranhão, tudo para favorecer o plantio de soja. O estado de Santa Catarina, principalmente no Vale do Itajaí, também sofre constantemente com as enchentes nos últimos anos.
Ou seja, os desastres ambientais estão acontecendo em larga escala em todo o país. Ao mesmo tempo, assistimos à flexibilização das legislações ambientais, a precarização dos órgãos públicos incumbidos da fiscalização, monitoramento, prevenção e controle dos desastres. Tudo bem regado ao negacionismo em relação às consequências dos desmatamentos, da mineração, do extrativismo capitalista de todo o tipo. Para agravar ainda mais a situação, a impunidade parece ser a regra após tragédias, como vimos em relação aos responsáveis pelas catástrofes de Mariana e Brumadinho em Minas Gerais, da Braskem em Maceió, entre outras. Os desastres espalham-se, aumentando as vítimas de um sistema excludente que empurra os pobres para uma vida precária, para serem os primeiros a morrer.
No Congresso Nacional a boiada continua passando. São diversos projetos de lei da “bancada do agro” para ampliar seu domínio e liberar à privatização os bens comuns da natureza para ampliar seus lucros. Um dos mais impactantes trata-se do PL n° 3334, de 2023, de autoria do senador Jaime Bagattoli (PL/RO), que propõe alterar o Código Florestal de 2012 para reduzir a área de preservação da Amazônia Legal. Esse bloco de capitalistas negacionistas não tem nenhum escrúpulo ou compromisso com o Brasil, já que seu único objetivo é aumentar o lucro dos grupos econômicos e manter seu poder político em todas as esferas. Para eles a preservação dos biomas, das praias, dos manguezais, dos rios, é despesa, e explorar e devastar à exaustão é receita privada para poucos. Nunca é tarde para dizer que esse bloco de parlamentares é o mesmo que ataca as mulheres nos seus direitos, inclusive impedindo o acesso delas à justiça e aos direitos reprodutivos e sexuais. São eles também que atacam os povos indígenas e quilombolas nos seus direitos originários e de povos tradicionais a manterem sua cultura e seus territórios ancestrais, bem como o acesso dessas populações aos seus meios de viver.
A participação ativa das mulheres na reconstrução do RS, pode se tornar um exemplo para o Brasil – inclusive as próprias mulheres camponesas gaúchas, que já praticam a agricultura sustentável interdependente entre humanos e natureza, elas podem dizer e ensinar muito para reconstruir. As populações indígenas do RS, pouco lembradas, também têm muito a dizer, especialmente com sua cosmovisão que não separa humanos e natureza. As comunidades quilombolas, em resistência contínua, também precisam ser ouvidas na reconstrução, por seu histórico de sobrevivência. Em todos esses grupos, as mulheres atingidas pelas enchentes, as que acolheram, alimentaram e continuarão cuidando, são a parte fundamental de quem se reconstrói todos os dias e, por isso, precisam estar na primeira fileira para opinar, fiscalizar e colocar seus projetos na reconstrução.
É hora do Congresso Nacional que recebeu do Governo Federal a proposta a Lei de Diretrizes Orçamentárias PLDO, N° 3 de 2024, que dispõe sobre os gastos e investimentos do orçamento para o próximo ano, olhar para os interesses da população atingida pelas enchentes priorizando a reconstrução com responsabilidade socioambiental. Dessa forma, o Parlamento, que na sua maioria tem tido como principal preocupação a defesa dos interesses dos capitalistas extrativistas, fundamentalistas, pode passar a se comprometer com a reconstrução do desastre que o negacionismo ambiental se encarregou de ampliar em todas as dimensões.
Estejamos atentas/es: o pessimismo é reacionário, embota a nossa imaginação política, tornando mais fácil acreditar na inevitabilidade do fim da vida no planeta do que na possibilidade de construção de resistências e alternativas ao capitalismo patriarcal, racista e ambientalmente insustentável. É hora de fortalecer as resistências e mostrar a capacidade dos movimentos organizados em sonhar e fazer novos tempos, começando agora, antes que as rapinas do liberalismo econômico extrativista deem as cartas e fiquem ainda mais ricos às custas da vida das populações e da natureza.
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A tragédia no RS e a luta das mulheres pelo bem-viver - Instituto Humanitas Unisinos - IHU